Esta prosa publicou-a o Expresso em Dezembro de 1991. Vai fazer 29 anos, portanto. É, à minha maneira, um elogio do senhor Cecil B. DeMille. E é também um elogio à sua forma de entender o papel do produtor no cinema.

O comandante em chefe
DeMille foi um autor? Talvez, mas o seu estilo é de produtor
Quando, para se lançar no negócio do cinema, se associou a Jesse Lasky e a Samuel Goldwyn, Cecil B. DeMille devia ter visto dois filmes em toda a sua vida. Meses depois, antes de iniciar a rodagem de The Squaw Man, o seu primeiro filme, DeMille como preparação passou um dia num estúdio a ver filmar algumas cenas. Já não voltou no dia seguinte e escreveu aos seus sócios dizendo: «Se isto é que é filmar, dentro em breve vão ter de me condecorar!»
DeMille não se enganou — e se se enganou foi só por modéstia. Mas o seu sucesso, que não está isento de controvérsia, não se deve apenas à sua inclinação para a mise en scène. Um aspecto negligenciado pelos comentadores (defensores e detractores) tem sido o papel que desde o começo DeMille assumiu na produção de todos os filmes da Lasky Feature Company, a empresa que fundou com os mencionados Lasky e Goldwyn, e da qual foi director-geral. Essa designação vaga escondia uma realidade mais prosaica, a saber, DeMille tinha e teve que suar as estopinhas para que os filmes — realizados por ele ou por outros — aparecessem feitos. As tarefas da empresa estavam assim divididas: Lasky tratava da administração, e Goldwyn, latas debaixo do braço, tentava vender os filmes que DeMille tinha posto lá dentro.

Foi preciso inventar tudo. Lembro que a filmagem de The Squaw Man ocorreu em 1913. Nessa altura, filmar envolvia riscos. Por exemplo, levar um tiro dos homens do Trust, controlado por Edison, se não se tivesse obtido autorização prévia de rodagem. Para escapar às balas da lei era forçoso procurar locais onde o longo braço do Trust não chegasse. Foi assim que DeMille, para filmar The Squaw Man, só parou na Califórnia. Fez de um celeiro um estúdio e vestiu calças de couro e botins para se proteger das silvas e das serpentes. As decisões que DeMille teve de tomar, nessa altura, marcaram de forma indelével a sua concepção de cinema. Ao contrário da ideia europeia de realizador — a personalidade a quem se atribui a autoria artística de um filme, concepção que a vaga autorista dos anos 50 e 60 estendeu aos americanos, de Griffith até aos realizadores sob contrato dos grandes estúdios — DeMille habituou-se, desde 1913, a entender como uma unidade a organização económica e artística de cada filme.
Depois da rodagem de The Squaw Man, e para sediar as actividades da Lasky Company na Califórnia, DeMille estabeleceu relações estreitas com os poderes políticos e, numa segunda fase, envolveu-se com os meios financeiros; em 1922, integrava já a Administração do Federal Trust and Savings Bank, de Hollywood. Mais tarde, quando se separou de Lasky e Goldwyn — e também da Paramount, de Adolph Zukor, à qual a Lasky se associara entretanto — DeMille provou que era capaz de dar boa conta de todos os ofícios que constituem o cinema. Em 1924, comprou os estúdios de outro pioneiro, Thomas H. Ince, e rebaptizou-os com o seu nome: DeMille Studios. Nessa fase, que durou até 1927, data em que vendeu o estúdio a Joseph P.Kennedy, o pai da «ínclita geração» da política americana, DeMille foi sobretudo o produtor executivo dos filmes do seu estúdio. Os filmes eram, todavia, publicitados com base no seu nome. No genérico, lá estava invariavelmente a legenda «Apresentado por Cecil B. DeMille», o que nos dá a exacta medida do que ele pensava sobre «autorias».

Para DeMille, e sem prejuízo da criatividade que realizar um filme exige, filmar era um teatro de guerra. Como tal, alguém tinha de estar no comando. Chamando-se realizador, produtor executivo ou supervisor, DeMille assumiu sempre esse papel nos filmes em que participou. Foi o comandante em chefe. E já agora permitam-me uma digressão anedótica: quando estalou a I Guerra Mundial, e vendo recusado o alistamento, DeMille formou a «Lasky unit», uma unidade cinematográfica de propaganda patriótica. Essa concepção castrense contaminou a mise en scène das suas cenas favoritas, as cenas de massas que, do King of the Kings a Sansão e Dalila, passando pelos Dez Mandamentos, fizeram a popularidade do cineasta. Como já sei que não acreditam em mim, dou a palavra a DeMille: «Para controlar cenas de massas, um realizador depende de um largo número de assistentes. Não é possível dar ordens a 500 ou mil pessoas e esperar que as cumpram com diversidade e vida. Uma multidão deve dividir-se em companhias de cem, cujo comando se entrega a um assistente capaz. Entre esses cem figurantes, deve haver dez bons actores. A cada um desses actores estarão vinculados nove figurantes, aos quais o actor transmite as ordens que por sua vez recebeu do assistente que por sua vez as recebeu do realizador.»

Nos filmes que mais o celebrizaram, DeMille sublinhou descaradamente as opções de produção — escolheu logo no argumento os episódios mais espectaculares, das lutas com leões à destruição de um templo, embora ele e alguns «autoristas» fanáticos nos quisessem fazer crer que essas opções eram ditadas pela própria história. Já no mudo se distinguiu de Griffith porque, mais do que a evolução dos processos narrativos, a DeMille interessou estabelecer os fundamentos económicos da indústria e fazer evoluir os valores de produção, caso da iluminação de The Cheat, cuja inovação está directamente ligada à utilização de um recente invento técnico, as luzes de arco.
O estilo de DeMille é o estilo de um produtor. As escolhas dele não diferem das que David O.Selznick fez quando se convenceu que só ele mesmo poderia criar E Tudo O Vento Levou. Querem ouvir outra vez DeMille? Quando o acusaram de desfigurar a Bíblia, no cinema, ele respondeu: «Os meus filmes não são orações. Filmo o drama, e os sermões só entram se tiverem onde cair.»