Vamos bater em Dostoievski!

Agora que todos cortamos no açúcar e no sal, eis o que vos quero dizer: a surpresa é a pimenta da vida.

Ia começar por mim, mas logo me deparei com o escândalo de dois escritores. Dostoievski tinha a excitação do espancamento. Os seus romances são vastas e abismais paisagens de injúria e humilhação, em que os actos masoquistas se multiplicam como estrelas no céu. Surpresa: só nos “Irmãos Karamazov” há setenta e cinco cenas – e atrevam-se a desmentir-me, se puderem – em que personagens se aviltam, dobrando-se, ajoelhando-se ou beijando o chão face a outras personagens. Ou seja, sofrem fisicamente e gostam de sofrer, como Dostoievski gostava de ser punido: bastava-lhe até que a castigo físico fosse mimado para ele se excitar.

E falo agora da professora de Jean-Jacques Rousseau, que nunca leu esse Dostoievski ainda por nascer. Descobriu, surpresa e assustada, que o menino Jean-Jacques adorava que ela lhe batesse. Com palmatória? Nas mãos, no filosófico posterior? Ela descobriu, diz-se, tarde de mais: Rousseau ficou adicto, um espancófilo. É ele que há de escrever “Emílio ou a Educação” propondo uma nova pedagogia ao mundo. Nas “Confissões”, o apologista do remorso que é Rousseau, anuncia candidamente que só o espancamento lhe desperta a sexualidade.

E, antes de falar de Alexandre Dumas, cravo-me eu aqui, entre escritores. Peço desculpa, mas não me dobro, ajoelho ou beijo o chão: nem tenho nenhuma confissão a fazer. Lembro-me só de uma das mais misteriosas surpresas da minha vida. Vivia no Lobito, em 1975. Na guerra da independência de Angola, tomei partido e tive de recuar – Mark Twain, com o seu gosto pelo exagero, diria fugir – quando Unita e África de Sul atacaram a cidade. Voltei, meses depois. O meu velho dois cavalitos tinha sido queimado e, no apartamento, por onde passara o caos, sobrevivia, ileso, o meu exemplar do “Pequeno Livro Vermelho”, do abominável Mao Tsé-tung. Há a lenda de que a uma explosão nuclear só as baratas resistem: aquele livrinho era o indemne insecto no meio da sala apocalíptica.

Há quem saiba transformar em doce a amarga surpresa. Alexandre Dumas, o pai, nunca foi um exemplo de fidelidade. Casara-se com Ida Ferrier atraído por um dote que lhe pagou muitas dívidas: Ida foi o seu banco bom. Uma noite de tempestade fê-lo voltar a casa. Encontrou na cama de Ida outro homem, o seu melhor amigo Roger de Beauvoir, padrinho desse casamento. Ainda houve um segundo de paralelepipédica fúria córnea, e quem sabe se Alexandre Dumas não teve até vontade de bater em Dostoievski, mas ouvindo a gelada angústia do vento e da chuva lá fora, Alexandre Dumas deixou que tombasse a pax romana naquele quarto: “Ajeitem-se, por favor, e arranjem espaço para mim!”

E deixem-me contar uma história que, por bem trovata, merecia, não o sendo, que fosse verdadeira. É a história que se conta de todas as actrizes mais mediáticas ou pulposas do que propriamente talentosas. Acreditemos, então, que Pia Zadora representava o “Diário de Anne Frank” num palco nova-iorquino. A peça arrastava-se e a Zadora daria de Anne Frank uma imagem catequista e intragável. Espectadores engoliam punhos para afogar o tédio troiano. No palco, batem à porta, Zadora esconde-se. Logo, à procura da adolescente, entram os faunescos – perdão, ciclópicos – nazis. O mais ultrajado dos espectadores, sem tempo a perder e para evitar surpresas, grita do meio da sala: “Ela está escondida no sótão!”

A verdade não tem graça nenhuma: Pia Zadora nunca representou “O Diário de Anne Frank”. Tem mais graça bater em Dostoievski.

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