Os lençóis de Aragon

Os Aragon, Elsa e Louis

A mãe de Louis Aragon era sua avó. Sua irmã, sim, era a mãe.

Recapitulando, o pai, que nunca o perfilhou, foi seu padrinho de baptismo. Seduzira a mãe, tinha ela 17 anos. Para salvar a honra de todos os conventos, a avó apresentou a criança ao mundo como seu filho adoptivo. Aragon viveu nessa mentira piedosa e cruel, a de ter a mãe como irmã, até aos 19 anos. Soube de tudo só e quando ia partir para as trincheiras da I Grande Guerra, a dantesca morte de boca aberta à sua espera.

Embuste e decepção, esses lençóis de infância e adolescência, hão de sempre ser a cama em que se deitará a vida de Aragon, figura tão amada como odiada das letras francesas.

E nem é preciso começar pela sua traída e traiçoeira relação com o surrealismo. Vejam-no apaixonado pelo requintado perfil e alto pescoço da libérrima Eyre de Lanux, designer vanguardista americana. Logo ela, conhecendo o futuro fascista Drieu de la Rochelle, amigo do peito do futuro comunista Aragon, deslarga este para dormir com aquele. Aragon lambe as feridas indo lamber a densa beleza e os requebros metafísicos de Denise Lévy, que depressa se casa com Pierre Naville, outro amigo de Aragon. Com amigos assim, para que precisaria Aragon de inimigos?

Já o infatigável Aragon se volta a deitar. Agora com a milionária herdeira da Cunard, glória da marinha mercante inglesa. Nancy Cunard é poeta, anarquista, e vai com sede ao pote que é a vida, e da vida ao entranhado sexo. Já com dois anos de salgado conúbio, Aragon descobre que o transatlântico Cunard pára em vários cais de Veneza. Os romances de Nancy arrebatam a cidade: um firme e anónimo moço da hotelaria, um conde italiano e, num Everest amoroso, o pianista negro Henry Crowder. A mãe de Nancy, a toda em ouro Lady Cunard, terá esta tirada de prata: “Mas a minha filha conhece um negro?”. Aragon suicida-se. E já me modero e corrijo: tenta suicidar-se.

Num bar de Paris, vem ter com ele uma exilada de luxo, a escritora russa Elsa Triolet. Queria conhecê-lo e às duas da manhã, expulsos pelo operariado hoteleiro, estão nas ruas de Paris, a lua a murmurar-lhes coisas inconfessáveis. Acabam, ou começam, no quarto de Elsa, no hotel Istria. Na manhã seguinte, com fome de brioches, chocam na rua com Maiakovski, espécie de Neymar da revolução literária soviética, mais quedas no gramado do que golos na redes. Fora com ele que a virgem Elsa se iniciara nos mistérios em que toda a vergonha se perde e todo o corpo se empolga. Mas logo ele, conhecendo a irmã mais velha de Elsa, lhe partiu o coração, abandonando-a pela outra.

Desabafo: Elsa e Louis foram depois, um ou outro petit-déjeuner ou lanche mais desavindo, o casal unânime e o par amoroso por aclamação. Antes de a conhecer, já ele era comunista, como os outros surrealistas. Todos, menos ele, deixariam de o ser. Com Elsa, e viajando à União Soviética, a paixão ideológica asfixia-o: incensa o Pacto de comunistas e nazis, vai de violino pelos telhados a cantar Estaline, com uma pulsão erótica que nem Camões a cantar Vénus. Nada o detém, nem os campos de concentração, em que vê a excelsa reeducação do homem pelo homem, sinal da grandeza de Estaline.  Quando André Gide denuncia em livro os gulags, o seu secretário, Pierre Herbart, está em Madrid, em plena Guerra Civil espanhola. Aragon telefona à embaixada soviética para que o apanhem e fuzilem. André Malraux salva-o. Herbart veio depois a casa de Aragon. O poeta poderá ter-se esquecido de muita coisa, dessa visita, jura Herbart, guardou para o resto de vida sentida memória.

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