Comandante em chefe

Esta prosa publicou-a o Expresso em Dezembro de 1991. Vai fazer 29 anos, portanto. É, à minha maneira, um elogio do senhor Cecil B. DeMille. E é também um elogio à sua forma de entender o papel do produtor no cinema.

De Mille a dar ordens a Moisés


O comandante em chefe
DeMille foi um autor? Talvez, mas o seu estilo é de produtor

Quando, para se lançar no negócio do cinema, se associou a Jesse Lasky e a Samuel Goldwyn, Cecil B. DeMille devia ter visto dois filmes em toda a sua vida. Meses depois, antes de iniciar a rodagem de The Squaw Man, o seu primeiro filme, DeMille como preparação passou um dia num estúdio a ver filmar algumas cenas. Já não voltou no dia seguinte e escreveu aos seus sócios dizendo: «Se isto é que é filmar, dentro em breve vão ter de me condecorar!»

DeMille não se enganou — e se se enganou foi só por modéstia. Mas o seu sucesso, que não está isento de controvérsia, não se deve apenas à sua inclinação para a mise en scène. Um aspecto negligenciado pelos comentadores (defensores e detractores) tem sido o papel que desde o começo DeMille assumiu na produção de todos os filmes da Lasky Feature Company, a empresa que fundou com os mencionados Lasky e Goldwyn, e da qual foi director-geral. Essa designação vaga escondia uma realidade mais prosaica, a saber, DeMille tinha e teve que suar as estopinhas para que os filmes — realizados por ele ou por outros — aparecessem feitos. As tarefas da empresa estavam assim divididas: Lasky tratava da administração, e Goldwyn, latas debaixo do braço, tentava vender os filmes que DeMille tinha posto lá dentro.

The Squaw Man. E os tiros?

Foi preciso inventar tudo. Lembro que a filmagem de The Squaw Man ocorreu em 1913. Nessa altura, filmar envolvia riscos. Por exemplo, levar um tiro dos homens do Trust, controlado por Edison, se não se tivesse obtido autorização prévia de rodagem. Para escapar às balas da lei era forçoso procurar locais onde o longo braço do Trust não chegasse. Foi assim que DeMille, para filmar The Squaw Man, só parou na Califórnia. Fez de um celeiro um estúdio e vestiu calças de couro e botins para se proteger das silvas e das serpentes. As decisões que DeMille teve de tomar, nessa altura, marcaram de forma indelével a sua concepção de cinema. Ao contrário da ideia europeia de realizador — a personalidade a quem se atribui a autoria artística de um filme, concepção que a vaga autorista dos anos 50 e 60 estendeu aos americanos, de Griffith até aos realizadores sob contrato dos grandes estúdios — DeMille habituou-se, desde 1913, a entender como uma unidade a organização económica e artística de cada filme.

Depois da rodagem de The Squaw Man, e para sediar as actividades da Lasky Company na Califórnia, DeMille estabeleceu relações estreitas com os poderes políticos e, numa segunda fase, envolveu-se com os meios financeiros; em 1922, integrava já a Administração do Federal Trust and Savings Bank, de Hollywood. Mais tarde, quando se separou de Lasky e Goldwyn — e também da Paramount, de Adolph Zukor, à qual a Lasky se associara entretanto — DeMille provou que era capaz de dar boa conta de todos os ofícios que constituem o cinema. Em 1924, comprou os estúdios de outro pioneiro, Thomas H. Ince, e rebaptizou-os com o seu nome: DeMille Studios. Nessa fase, que durou até 1927, data em que vendeu o estúdio a Joseph P.Kennedy, o pai da «ínclita geração» da política americana, DeMille foi sobretudo o produtor executivo dos filmes do seu estúdio. Os filmes eram, todavia, publicitados com base no seu nome. No genérico, lá estava invariavelmente a legenda «Apresentado por Cecil B. DeMille», o que nos dá a exacta medida do que ele pensava sobre «autorias».

Fidelidade à Bíblia? Fidelidade ao technicolor!

Para DeMille, e sem prejuízo da criatividade que realizar um filme exige, filmar era um teatro de guerra. Como tal, alguém tinha de estar no comando. Chamando-se realizador, produtor executivo ou supervisor, DeMille assumiu sempre esse papel nos filmes em que participou. Foi o comandante em chefe. E já agora permitam-me uma digressão anedótica: quando estalou a I Guerra Mundial, e vendo recusado o alistamento, DeMille formou a «Lasky unit», uma unidade cinematográfica de propaganda patriótica. Essa concepção castrense contaminou a mise en scène das suas cenas favoritas, as cenas de massas que, do King of the Kings a Sansão e Dalila, passando pelos Dez Mandamentos, fizeram a popularidade do cineasta. Como já sei que não acreditam em mim, dou a palavra a DeMille: «Para controlar cenas de massas, um realizador depende de um largo número de assistentes. Não é possível dar ordens a 500 ou mil pessoas e esperar que as cumpram com diversidade e vida. Uma multidão deve dividir-se em companhias de cem, cujo comando se entrega a um assistente capaz. Entre esses cem figurantes, deve haver dez bons actores. A cada um desses actores estarão vinculados nove figurantes, aos quais o actor transmite as ordens que por sua vez recebeu do assistente que por sua vez as recebeu do realizador.»

Organizar a multidão, separar as águas. Os Dez Mandamentos

Nos filmes que mais o celebrizaram, DeMille sublinhou descaradamente as opções de produção — escolheu logo no argumento os episódios mais espectaculares, das lutas com leões à destruição de um templo, embora ele e alguns «autoristas» fanáticos nos quisessem fazer crer que essas opções eram ditadas pela própria história. Já no mudo se distinguiu de Griffith porque, mais do que a evolução dos processos narrativos, a DeMille interessou estabelecer os fundamentos económicos da indústria e fazer evoluir os valores de produção, caso da iluminação de The Cheat, cuja inovação está directamente ligada à utilização de um recente invento técnico, as luzes de arco.

O estilo de DeMille é o estilo de um produtor. As escolhas dele não diferem das que David O.Selznick fez quando se convenceu que só ele mesmo poderia criar E Tudo O Vento Levou. Querem ouvir outra vez DeMille? Quando o acusaram de desfigurar a Bíblia, no cinema, ele respondeu: «Os meus filmes não são orações. Filmo o drama, e os sermões só entram se tiverem onde cair.»

Cresce e aparece

A velha BSA

Há quantos anos não ando de pendura com o meu pai nesta moto? Mas era uma assim, BSA, que o jovem pai Artur tripulava, com uma aisance irrepetível, mesmo quando nos espalhámos aparatosamente nas areias que levavam a uma praia fora de Luanda, logo a seguir ao Morro dos Veados, onde íamos, ainda não eram as seis da manhã de um domingo, apanhar caranguejos.

Neste ano da graça de 2020, o meu pai já teria 98 anos. Ando a juntar anos para forçar o reencontro, mas é só burocracia. Não aceitam qualquer um nesse além que talvez seja muito lá em cima ou porventura aqui ao lado. É uma questão de tempo, dizem e dizem que são mais dez anos e depois logo pedem outros 20. A última exigência é que, se eu quiser juntar-me, tenho de saber tocar bandolim com metade do estilo dele, dançar a valsa como se tivesse nascido em Viena, ser amado como um irmão e seguido como um chefe por cães e gatos e até mesmo canários, uma arara e um saguim, fazer rir perdidamente as netas, ser capaz de fazer com as próprias mãos uma cadeira, uma janela ou uma casa. Em alternativa, basta superar a prova por que passaram todos os príncipes que já venceram dragões: ter desenhada na mente a mais humana bondade, no rosto o mais humilde dos sorrisos.

De lá, seja onde for, se calhar por ele lhes soprar aos ouvidos, as meninas que gerem aquilo mandam-me para trás e dizem-me: “Ó filho, cresce e aparece!”

Com a bênção de Hemingway

Marlene sentou-o à mesa, a Gabin

Não eram de se render. Marlene Dietrich não se rendeu a Hitler, Jean Gabin não se rendeu à pata nazi, na Paris ocupada. Juntou-os a América, que ainda não sabia se ia ou não à guerra. Ou talvez tenha sido um involuntário Hemingway a apresentá-los, num selecto clube de Nova Iorque.

Era uma noite de 1940 ou 41. Bem sei que o preconceito enxameia a alma dos nossos literatos, mas Hemingway pedia a Marlene o que não pediria a nenhum deles, que lhe lesse, em provas, os seus romances, antes de os publicar. Confiava na inteligência dela.

Gabin ia a passar. Marlene sentou-o à mesma mesa de Hemingway e explicou-lhe em francês que, afinidades literárias à parte, entre ela e Hemingway era só um amour platonique. A cara de Gabin não mudou de expressão. Só tinha, aliás, uma expressão e sempre a mesma cara, a cara que um homem devia ter nesses anos de guerra. Ou seja, a cara de um trombalazana. Em todo o caso um trombalazana de uma gentileza nonchalant.

Se Marlene sabia o que era uma bela mulher, muito mais sabia o que era um belo homem e agarrou-se a ele como uma lapa. Prometeu pôr Hollywood a seus pés e propôs-se ensinar-lhe inglês com pronúncia americana. E sabem todos os meus leitores o árduo exercício a que uma língua se entrega para adquirir uma adorável pronúncia.

Ali, à frente da cara macha de Hemingway, a alemã andrógina e o cavador francês refugiaram-se um no outro da expansão nazi. “Acorrento-me a ele, mas também à minha última oportunidade de ser uma verdadeira mulher”, escreveu Marlene ao marido ultramilionário que tudo lhe sustentava. E atirou-se, como o forcado ao touro, ao que de mais francês havia em Gabin.

Ele deixou Hollywood para se juntar à resistência. Foi canhoneiro num barco de guerra, treinou fuzileiros em Argel e avançou, Alemanha dentro, com a divisão Leclerc. Ela não se desacorrentou. Veio à ópera de Argel dar espectáculo a cinco mil soldados americanos e foi dormir com ele na Paris libertada, numa suíte do Plaza Athénéee, que os lugares do amor não são indiferentes ao brilho do amor que se tem.

Separou-os a paz e Hollywood que Gabin odiava. Marlene nunca o esqueceu. Veio morar e morrer em Paris, num apartamento donde podia ver o quarto do Plaza Athénée em que o amara, e comprou um talhão no Pére Lachaise para, ao menos na morte, voltar a dormir a seu lado. Gabin, marinheiro, pediu que o cremassem e deitassem as cinzas ao mar.

o brilho do amor que se tem


Um museu de lágrimas

Este é um texto a que perdi o rasto. Entreguei-o para publicação num livro que ou já é ou será um tributo a um professor da faculdade de letras cuja cinefilia admiro, o prof. Mário Jorge Torres. Não sei se a publicação resistiu à pandemia ou não. Resgato-o, por isso, para esta Página Negra, em estreia.

 

a paisagem onde somos peregrinos, desiludidos e vencidos

A um educativo ménage à trois:
ao Prof. Mário Jorge Torres,
ao Prof. Manuel Cintra Ferreira,
ao Prof. João Bénard da Costa.

É que não encontrarão em mim nem um pingo de anti-americanismo. Dessa moderna doença europeia lavaram-me a alma as épicas chuvadas tropicais, deixando-me de mente cândida, coração pioneiro e peregrino. Eu conheci a América, em Luanda, no esplêndido design dos Chevrolets, os Bel Air e o Impala, e da Plymouth Station Wagon do meu professor primário que nos despachava porta a porta depois da escola. Eu conheci a América, sempre em Luanda, na escavacada rua e apedrejado consulado yankee, em 1961, pelo putativo apoio aos putativos terroristas da UPA. Levou-me o meu pai, de motorizada, aos sete anos, a ver esse vingativo torvelinho colonial acendendo em mim o surdo e pequenino fogo que só verdadeiramente compreendi quando, tantos anos mais tarde, noutra África, a África de Casablanca, ouvi Ricky, a quem também chamam Humphrey Bogart, dizer a Ilsa, que eu sei ser a sueca Ingrid Bergman: “I’m no good at being noble, but it doesn’t take much to see that the problems of three little people don’t amount to a hill of beans in this crazy world.” Ou em escalavrado português: “Não sou lá muito bom a passar-me por idealista, mas não é preciso ser um ás para entender que os tormentos de três zés ninguéns não valem a seca casca de um caracol neste mundo maluco.”

A sala das metamorfoses

E dizendo meia-verdade e só a verdade ainda não disse toda a verdade. Se conheci a América no tamanho e beleza dos intermináveis carros e se a conheci na acirrada defesa de três zé ninguéns que para o nosso mundo louco não valem um pataco ou um tostão furado ou a seca casca de um caracol, conheci-a sobretudo na tumultuosa sala das metamorfoses. Eram esplanadas abertas sobre a redonda doçura de uma baía, eram salas violentamente brancas e tinham o condão, como a larva em borboleta, de se transformar, por obra e graça de uma súbita escuridão, num inocente e terrível animal nocturno.  Eis como, na sala de cinema, mais do que em nenhum outro lado, conheci a América: entrou-me pela porta da alma, projectada em luz e sombras nessa cósmica parede de cal viva que a alma tem do seu lado direito.

Comi filmes com a mesma sincera alegria com que os dentes do menino pobre afiambram a muito amarela e brilhante fatia de pão-de-ló. Ah, a doçura intransponível desses dias já mais adolescentes do que infantis!  Eis o meu chuto: nessas salas namorei com Natalie Wood e Elizabeth Taylor – entreguei-lhes, à mão, a minha virgindade. E se não digo Marilyn, foi por não a ter então encontrado, e por não ter eu vocação de Manuela de Freitas, incapaz por isso de ser a personagem que ela tão bem vestiu em O Passado e o Presente, no qual, por perversão do senhor Manoel de Oliveira, a Manuela só amava maridos mortos. Marilyn Monroe já estava morta, mas à minha adolescência ainda não tinha sido dada licença para visitas ao purgatório: era lá que ela recebia as visitas de Di Maggio, Arthur Miller e JFK, esse pequeno e tenebroso rosário de maridos e amantes.

Paro um instante e, deste futuro em que vivo e então não imaginava, num instante volto a esse passado tão tenro. Desfazia-me, lembro-me, nessa sala das metamorfoses. De tão maleável e elástico como o mapa que num célebre conto de Jorge Luis Borges se transforma no território, eu era, à escala de um para um, igualzinho ao James Dean de Rebel Without a Cause, ao Paul Newman de The Hustler. E já era, desde os seis anos, o cowboy. Comecei a montar cedo, colt à ilharga: conheci o cowboy pela mão dos meus padres capuchinhos italianos, no incipiente cinema da Missão de São Domingos, que eles ofereciam ao musseque de Luanda. Conheci o cowboy mas não a cabeça de cowboy de que quero falar, a cabeça do John Wayne de The Searchers. Nessa cabeça estala o zumbido infrene de todos os tumultos que nos submergem a alma numa noite de insónias. Apagam-se as luzes da sala, a larva começa a transformar-se em borboleta, e o realizador John Ford dá-nos a ouvir a partitura de Max Steiner. Mas não é a música de Max Steiner que os ouvidos do cavaleiro John Wayne escutam. Nós ouvimos essa música, mas que sons e gritos munchianos espremem o crânio duro, obcecado e inconfessável de John Wayne?

Expulsar a infância

Cheguei onde queria e tinha-me prometido já não sair daqui, mas não resisto a voltar um passo leninista atrás, a uma catolicíssima confissão, tão sincera e simples com as que fiz aos meus padres capuchinhos italianos: posso ter pecado por pensamentos, palavras e obras, por silêncios e omissões, mas todos os ardentes entusiasmos físicos, todos os velozes e repentinos risos, todas as soluçadas lágrimas da minha sala das metamorfoses foram realíssimos, tintados a autenticidade, emoção em estado selvagem. As mulheres persas, quando os maridos estavam ausentes na guerra, guardavam as lágrimas de saudade e inquietação em delicadíssimas garrafas de vidro colorido e translúcido, de longo gargalo e boca a abrir-se em sofrida corola. Essas garrafas, as ashkdan, são hoje peças de museu. Eu trago guardado comigo o meu museu de ashkdan. Juntam risos e lágrimas, medo e exaltação, compaixão e desejo. É neste sacrário de infância, em filmes colhido, que a minha vida adulta ritualmente comunga.

Essa é a novidade da vida adulta: expulsar a infância. Eu deveria, lisamente, ter perdido na vida adulta esse amor infantil ao cinema americano. Há uma sofisticação grã-fina, ideológica, estética, cínica, que destrata o cinema americano. A mesma sofisticação que fez escritores e pensadores europeus do século XX fazer a vénia ao pai dos povos, cujo lamentável bigode aqui evoco, enquanto desdenhavam as terríveis iniquidades capitalistas americanas. E é neste ponto, e se outras razões não houvesse, que eu aqui me encontro com o Prof. Mário Jorge Torres. Fazemos parte de uma geração que teve a felicidade de transitar de um cinema americano bom selvagem da infância para uma visão interpretativa, compaginável com a transmissão do mais universal da cultura filosófica, literária e artística ocidentais, que não só não menorizou essa imagem idílica do cinema americano como lhe emprestou facetas inesperadas, que roçam o sublime, a provocação, a bela perversidade, por vezes o delírio.

Esse milagre, não duvidando que Jesus Cristo tenha caminhado sobre as águas, não o devemos ao Filho do Homem, mas sim ao bando felizmente terrorista que escreveu os Cahiers du Cinéma de capa amarela e que faria depois, com glória desigual, os filmes da Nouvelle Vague.

E há um dia, já em Lisboa, já adulto, já de Filosofia feita na Universidade Clássica de Lisboa, que simboliza na minha vida essa branda confluência das águas da infância e da vida adulta, o dia da exibição de The Searchers, no ciclo de cinema americano dos anos 50, no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian. Éramos mais de mil e duzentos seres humanos, vestidos com as nossas infâncias e vidas adultas. Houve quem as tivesse de sentar no chão, que não chegavam as cadeiras para tanta infância e idade madura. E eu sei que nessa sala estavam o João Bénard da Costa, que foi ao palco, e estava o Manuel Cintra Ferreira, os dois estudiosos de cinema, historiadores informais, se assim os quisermos chamar: e com eles tanto trabalhei e tanto me identifico. E estava, tenho a certeza, o Prof. Mário Jorge Torres, fidelíssima presença nesses ciclos.

Gostando, venerando, fazendo desse filme uma religião, ou levantando-lhe objecções, numa coisa comungámos: naquela prodigiosa sala de metamorfoses, aquele animal que vinha do escuro, a polifémica figura de John Wayne, os cavalos, a intolerável paisagem de Monument Valley, os atormentados índios, eram muito mais do que um entretenimento. O rio de solidão, crueldade, ódio e raivosa vingança que ali corria tinha uma auréola de tragédia grega, há quem diga de Odisseia.

Os amarelíssimos franceses

Quem nos ofereceu as ferramentas, o bisturi, para assim, em carne viva, o dissecarmos foi essa geração francesa, amarelíssima, dos Cahiers du Cinéma. Ajudaram-nos a prolongar a emoção de infância, conferindo-lhe novos prazeres. Em Portugal, na minha geração (ou nas gerações que com a minha fazem tangente), Mário Jorge Torres junta-se a João Bénard da Costa e a Manuel Cintra Ferreira, nessa forma de ver, pensar e transmitir o cinema.

É este o filme americano, quase um modesto western, que junta tudo o que de arrebatadoramente sublime espero da arte. Há uma porta que se abre, abrindo The Searchers, e vemos aproximar-se a solidão cansada de John Wayne. Depois numa sequência breve, em poucos planos, desenha-se em surdina um antigo amor inconfessável e proibido. E agora John Wayne voltou a casa e levanta no ar a nova sobrinha que ainda não conhecera. Essa breve alegria logo se apaga com o irreparável e irrevogável ataque dos índios e massacre da família. O que se segue, e os siderados olhos de mil e duzentos seres humanos seguiram no Grande Auditório da Gulbenkian, é uma peregrinação ad loca infecta em busca dessa sobrinha que uma cena atrás Wayne levantara aos céus e é agora a única sobrevivente, raptada pelos índios. É uma busca comandada pela raiva e pelo desejo de vingança. John Wayne leva às costas um alforge de ódio e de preconceito. Quer encontrar Debbie, a sobrinha, para a matar, poupando-a, quer ao opróbrio da vida com os índios, quer à vergonha que seria voltar a trazê-la para o meio dos brancos, depois da perda da inocência com os selvagens.

O cinema americano pode ser um cinema de inocência, mas poucas vezes o cinema filmou um olhar tão carregado de maldade, como o dos olhos maus e impiedosos de John Wayne. E é a maldade desses olhos que nos leva, em estado de hiperventilação, para a cena de redenção. Wayne não mata a sobrinha. Agarra-a e ergue-a em peso, já ela é uma jovem mulher, a Natalie Wood com que namorei na minha adolescência. Como na cena inicial, em que a conheceu, levanta-a aos céus, para depois a segurar contra o peito. Esse gesto resgata-nos de todo o preconceito, de toda a amargura e ressentimento. Quando a voz descrente e grave do John Wayne solta um manso, “let’s go home, Debbie”, por mais desgraçada que seja a caverna onde estamos, por mais desértica que, como as montanhas de Monument Valley, seja a paisagem onde somos peregrinos, desiludidos e vencidos, todos acreditamos que também nós voltaremos um dia a casa, aos braços de quem nos ame e proteja.

Princípio e fim

Todos menos John Wayne. A porta que, abrindo-se, abriu o filme em luz e para a luz, como o útero materno de que saímos, fecha-se em escuridão, como na hora da nossa morte, ámen. Toda a família se recolheu. Cá fora, ficou ele, John Wayne, agarrado ao seu próprio cotovelo. A porta fechada empurra-o, sem delicadeza, para um imóvel oceano de solidão. Ethan Edwards, a personagem de John Wayne, está desamparado e só: a solidão do começo é a solidão do fim.

Por onde vagueará hoje, Ethan Edwards? Acontece-me fechar os olhos, às vezes, e voltar à sala de metamorfose que a Gulbenkian foi nesse dia em que mil e duzentos vimos The Searchers. E sonho então que, como da lua cai um leão, em O Fazedor, texto do cego Borges, do céu a que levantou a minha Natalie Wood, ou da lua que só pés americanos já pisaram, cai Ethan Edwards, John Wayne, cavalo e cavaleiro, mamíferos e inteiros.

Sopra um deus no trompete

O melhor amor da vida de Gréco

Quando agora Juliette Gréco chegou ao céu, Deus quis vê-la. Não sei o que a Gréco levava vestido, mas sei que Deus logo lhe pediu que cantasse Deshabillez-moi. Talvez ela levasse vestidas as roupas de homem que, em 1943, a pouparam ao frio Inverno de Paris. A Gestapo prendera-lhe a mãe e a irmã por serem da Resistência, e a ela, por só ter 16 anos, correram-na a bofetadas, mandando-a para o meio da rua, com uma blusinha e nem um franco no bolso da saia, se é que a saia tinha bolsos. Abrigou-a outra resistente que lhe deu o que se arranjou, masculiníssimas calças largonas, casaco e um prosaico par de chanatos. Ironia de Deus, creio, inaugurar-se-ia, assim, um estilo.

E sou forçado a revelar um facto histórico. Paris tinha, então, um dantesco buraco na sua malha citadina. Foi a Gréco quem, desinstruída embora em urbanismo, preencheu esse horroroso vazio, inventando, com as suas deambulações, a sua inocência e o seu espanto, as ruas, as caves, os telhados, o encanto e a nocturna cintilação de St. Germain-des-Prés.

Mas reparem! Era bonita, o que Deus confirmou, embora, com a franqueza polimorfa de quem é de todos os géneros e não é de nenhum, logo tenha corrigido, e cito, «mas também não és de uma pessoa olhar para ti e se pôr a uivar de quatro». A experiência de Deus em coisas terrenas é, sabe-se, relativa, e a verdade é que a nocturna Juliette uivava à lua. Ou, como Jacques Brel confessou, enquanto todos os humanos se esgadanham para tomar banhos de sol, Juliette, franja na testa, cabelos pelas costas, camisola e calças em segunda pele, banhava-se à lua de St. Germain-des-Prés, deixando em êxtase existencial Sartre e a santa Simone, Camus ou Mauriac, Prévert e Boris Vian.

Bicho sedutor a cantar em palco, no dia em que, escrita e composta por Aznavour, cantou Eu odeio os domingos, na abertura de um caveau existencialista com o digno nome «Boi no Telhado», passou ao estatuto de lenda, para Paris o que Eneias foi para Roma, Heitor para Tróia. E já Deus me dá uma cotovelada, a sentir-se secundarizado – são ululantes os seus complexos de inferioridade em assuntos humanos! Exige que eu puxe o lustro ao que se passou na segunda noite de Gréco no céu, ilustração da máxima «reúne Deus quando quer o que o bruto homem separou». Faço-lhe a vontade, não sem fazer um flash-back, que não sou menos do que um Coppola ou um Scorsese.

Ou foi em 1949 ou no ano seguinte, Michèle e Boris Vian trouxeram a Paris um trompetista americano. Juliette veio, dos bastidores, vê-lo tocar.  Era um deus a soprar no trompete, o homem mais bonito que Gréco, disse ela, já vira em 22 anos da sua vida. Ele tinha 23 e chamava-se Miles Davis.

Nenhum falava a língua do outro. E logo as línguas dos dois se enredam e se deitam, línguas e tudo, na mesma cama, nos intervalos passeando de mão dada na fímbria do Sena, como Lídia com Ricardo Reis, pedindo eu desculpa pelo derrame sentimental do parágrafo, escrito a pedido e concessão ao gosto literário de Deus.

Foi o melhor amor dos cem amores da vida de Gréco. «Por que não te casas com ela?» perguntou o padre Jean-Paul Sartre a um Miles em enlevo. «Para ela não ser a puta de um preto», foi a resposta amarga de Miles, que conheceu a dignidade do amor em Paris, mas sabia da sordidez racial da América. Nos 50 anos seguintes, telefonaram-se, cruzaram-se em espectáculos, Miles veio até passar dois dias com ela antes de morrer. Deus, na sua santa inocência, jura que os juntou agora, nesse céu que é só passado, sem presente, nem futuro.

Publicado no Jornal de Negócios

O meu primeiro Borges

o primeiro Borges

Se não tinha 18, não teria mais de 19 anos, e dançava nas minhas mãos o livro cuja capa está ali em cima. Foi o primeiro Borges, convertido, do esplendor imperial da língua espanhola, por outro poeta, Ruy Belo, à marinheira língua portuguesa. Amei este livro como se acaricia um gato ou se ama outra pessoa.

Souberam-no os árduos alunos de Pitágoras era o primeiro verso do livro, o primeiro do poema a que Jorge Luis chamou A Noite Cíclica, dedicando-o a uma mulher, Sylvina Bullrich, aristocrata, lindíssima e escritora de bestsellers, sei-o hoje. Mas quem dedicava assim a uma mulher um poema, que logo no primeiro tão estranho verso se enchia de árduos alunos? Soube depois, na árdua forma de conhecer que então havia, que este era um livro pessoalíssimo, antologia escolhida pelo próprio, e era o livro de um poeta cego.

Este livro, cujo segundo poema, guerreiro, se intitula Página à memória do Coronel Suárez, vencedor em Junin, (Que importam as penúrias, o desterro / a humilhação de envelhecer, a sombra crescente / do ditador sobre a pátria, a casa de Buenos Aires…) acompanhou, fidelíssimo, as minha penúrias e os meus desterros, De Luanda para Lisboa, de Lisboa para Luanda, de Luanda para o Huambo, do Huambo para o Lobito, do Lobito para Luanda. Por fim, e sou capaz de jurar que sim, sei que o trouxe quando definitivamente regressei a Lisboa, a capital do já tão pequeno Portugal.

Mas tê-lo-ei, de facto, trazido, se eram tantas e são-no ainda mais hoje as dúvidas sobre o que é ou não é definitivo? O que, aliás, aprendi na mais bela quadra que Borges nesse livro escreveu:

Olhar o rio que é de tempo e água
E recordar que o tempo é outro rio
Saber que nos perdemos como o rio
E que os rostos passam como a água.

Talvez o tenha deixado ao Jorge Sá, meu kamba, que nem água nem rio fez jamais sair de Luanda! Talvez o tenha emprestado a quem o tenha guardado no dormido sono que é a morte dos livros. Que interessa! Tive, depois, e tenho, hoje, as Obras Completas de Borges em espanhol, em português, também. O esplendor dourado desses volumes nunca me fez esquecer a mágoa de não ter a dançar nas mãos a pobreza singela, mas imortal, deste pequeno livro, o número 20 dos cadernos de poesia das publicações dom quixote, colecção de que o número 19 era a Vocação Animal de Herberto Helder, que ainda hoje guardo.

Não quero já falar dos incertos factos. A mágoa de ter perdido este livro, que amava como se acariciasse um gato ou como quem ama outra pessoa, inscreveu-se-me, patética, literária, na pele e nas minuciosas rugas do rosto.

Há quatro anos, porque o tempo é outro rio, o Ilídio Vasco, para comemorar um aniversário da Guerra e Paz editores, onde comigo trabalha, foi resgatar, ao tempo e ao rio e provavelmente a um alfarrabista, estes Poemas Escolhidos, este livrinho tão modesto como eterno.

É a prenda mais bonita que um amigo me podia dar. Por mais que os rostos passem como a água, é cristalina que vejo a água do rosto do meu amigo Ilídio. Como um rio, dançou das mãos dele para as minhas, tão agradecidas, um livro.

Voltou a ser meu o meu primeiro livrinho de Jorge Luis Borges. Tão simples, tão velho, tão denso como o poema que o encerra e me ensinou o que são limites:

Há uma linha de Verlaine que não mais recordarei,
Há uma rua próxima vedada aos meus passos,
Há um espelho que me viu pela última vez,
Há uma porta que eu fechei até ao fim do mundo.
Entre os livros da minha biblioteca (estou a vê-los)
Algum existirá que já não abrirei.
Este verão farei cinquenta anos;
A morte, incessantemente, vai-me desgastando.

A irlandesa, a irlandesa, senhores!

Lucia Joyce

Ficaram amigos em Paris. Foi pouco antes de começarem a correr os anos 30 do século XX e eram dois irlandeses expatriados. Unia-os a negra paixão da literatura e davam pelos nomes de Joyce e Beckett, James e Samuel. O mais jovem, Beckett, foi até, de Joyce, o fiel secretário. Com eles, a literatura faz a mais tonitruante das viagens, das disruptivas transgressões modernistas ao abismo do absurdo. E as mãos de Beckett ajudaram mesmo as mãos de Joyce na elaboração do indecifrável, por impenetrável, “Finnegans Wake”. Joyce ia ditando partes da obra e Samuel escrevia, mas alguém bateu à porta e Joyce disse “Entre!”, o que Beckett logo passou ao papel. Ao reler, Joyce espantou-se: “O que é este ‘Entre!’?” Beckett jurou que ele o tinha dito e assim ficou.

O diabo foi haver uma filha. Lucia, filha de Joyce, bailarina. Dizia-se em Paris: “Quando ela atingir toda a sua capacidade rítmica, só nos vamos lembrar de James Joyce por ser pai dela.” E agora sirvam-se, para ver, dos olhos de Beckett: a 28 de Maio de 1929, num festival de dança, Lucia é uma das seis finalistas e o júri atreve-se a não lhe dar o primeiro lugar. Os 23 anos de Beckett desarvoram aos gritos na plateia, logo apoiados pela multidão francesa que clama: “A irlandesa, a irlandesa! Um pouco de justiça, senhores do júri.” Não admira que Lucia derramasse amor e fogosa paixão por Beckett. Ele, consequente com a obra futura, deixou-a à espera de Godot.

Roubo de um almanaque um incidente: um dia, Beckett bateu à porta de Joyce. Abriu-a Lucia e trazia no assimétrico olhar a doce exaltação de pastorinhos a quem aparece a Virgem numa azinheira. Era preciso não conhecer Beckett para acreditar que a cúpida transcendência o afagaria. Com a sensibilidade de um cajado de pastor, Beckett disse a Lucia: “Estou aqui para ver o teu pai, não a ti.”

Temo que não seja verdade e, ciente de que os alemães, por amor ao trabalho, fazem horas extraordinárias não pagas, mergulhei na pesquisa e eis o que descobri. Lucia e Beckett talvez tenham chegado a ser amantes. Lucia, na ausência de pai e mãe, levou-o a jantar e estendeu-lhe o tapete para um pedido de casamento.

O que travou Beckett? Outra mulher, com quem mantinha já intrínseco comércio amoroso? Escuto, aqui, o que se disse em Paris: Beckett talvez se tenha assustado com a liberalidade dos 21 anos de Lucia, com a sua beleza selvagem, que o doce estrabismo só realçava; talvez o tenham encolhido as histórias de outros affaires de Lucia. Pior ainda: Beckett não se sentia capaz de rivalizar com a subliminar pulsão erótica daquela relação pai e filha, que só iria fazer dele figura de pai-substituto.

E irrompe a violência esquizofrénica: rejeitada, Lucia há-de abandonar a dança, entregar-se à promiscuidade, largar fogo a algumas casas, bater com uma cadeira na mãe no jantar de 50 anos do pai, a que Beckett não faltou. Pela mão de Joyce, veio Carl Jung consultá-la. “A minha filha mergulhou nas mesmas águas que eu”, explicou-lhe Joyce. “Mas enquanto você nada, ela afoga-se nelas”, respondeu o psicanalista.

Morreu James Joyce e uma conspiração familiar fechou Lucia num hospício. Irmão e mãe entregaram-na aos piores tratos de uma psiquiatria bárbara. De longe embora, só Beckett não a abandonou. Doou parte dos seus direitos para pagar o hospital no qual Lucia esteve enclausurada 30 anos. E quando Samuel Beckett morreu, entre os seus papéis encontrou-se a fotografia de uma bailarina, vestida com um coleante e prateado fato de sereia. Não me obriguem a dizer se era ou não a erotíssima Lucia Joyce…

Publicado no Jornal de Negócios

O grande educador

quando se vira já está sem óculos…

Em “The Big Sleep”, quando Bogart sai de uma livraria, atravessa a rua e se refugia na livraria em frente, toda a cena é só alusão e vénia a Stanley Rose, fundador das duas. Uma antes, outra depois de ser preso por piratear uma antologia de humor escatológico. Da segunda, vituperava os sócios, pelos quais, generoso, se ofereceu à prisão, e que depois o traíram, deixando-o no cárcere e ficando-lhe com a quota da livraria primordial.

Na segunda livraria, invocando a procura de edições tão raras que nem existem, Bogart encontra a mais doce e lábil das livreiras. Deus terá criado muita coisa, mas essa cena, em que a livreira corre um estore, solta os cabelos e quando se vira já está sem óculos, cabelos em cascata, fazendo Bogart tirar do bolso uma firme garrafa de bourbon, essa cena, dizia, criou a atracção gravitacional dos corpos, a sedução e a plenitude do sexo. E Deus nem foi para ali chamado, que o estore estava bem corrido. Uma coisa é certa: antes, o sexo não existia e estou para saber como se terá a humanidade reproduzido nos séculos pretéritos.

Todavia, o que me interessa nessa cena é a garrafa de bourbon. Chandler, que escreveu “The Big Sleep”, Faulkner no argumento, Hawks na realização, mentiram. A garrafa de bourbon não se bebia na livraria do choque afrodisíaco. Foi na outra, na primeira a que Bogart vai, que Stanley Rose inventou o back-room.

A garrafa de bourbon era o sacrário dessa sala das traseiras: à volta dela ouviam-se actos de contricção, hossanas e porventura uma salve-rainha. Eram líricas e líquidas orações masculinas. Tanto saíam da boca de Nathanel West, Steinbeck, William Saroyan, como de Dashiell Hammett, ou dos campeões do mutismo que eram Faulkner e Scott Fitzgerald ou da gárrula boca inglesa de Aldous Huxley. Aos escritores juntavam-se actores, Edward G. Robinson, os Barrymore, Marlene Dietrich e Marion Davies. O surrealismo pôs ali um pé e multiplicaram-se olhos para ver exposições de Matisse, Chagall, Klee, Braque, Picasso e Miró.

Sem fronteiras entre filmes, livros e pintura, Hollywood era culta e Stanley Rose o grande educador. Dava livros e esquecia-se de os cobrar. Corre que nunca leu ele mesmo um livro, mas levava os leitores à caça e aos bordéis mais bizarros. Morreu novo. Saroyan, último amigo, jura que foi de “copos, putas e solidão”.