
Quando agora Juliette Gréco chegou ao céu, Deus quis vê-la. Não sei o que a Gréco levava vestido, mas sei que Deus logo lhe pediu que cantasse Deshabillez-moi. Talvez ela levasse vestidas as roupas de homem que, em 1943, a pouparam ao frio Inverno de Paris. A Gestapo prendera-lhe a mãe e a irmã por serem da Resistência, e a ela, por só ter 16 anos, correram-na a bofetadas, mandando-a para o meio da rua, com uma blusinha e nem um franco no bolso da saia, se é que a saia tinha bolsos. Abrigou-a outra resistente que lhe deu o que se arranjou, masculiníssimas calças largonas, casaco e um prosaico par de chanatos. Ironia de Deus, creio, inaugurar-se-ia, assim, um estilo.
E sou forçado a revelar um facto histórico. Paris tinha, então, um dantesco buraco na sua malha citadina. Foi a Gréco quem, desinstruída embora em urbanismo, preencheu esse horroroso vazio, inventando, com as suas deambulações, a sua inocência e o seu espanto, as ruas, as caves, os telhados, o encanto e a nocturna cintilação de St. Germain-des-Prés.
Mas reparem! Era bonita, o que Deus confirmou, embora, com a franqueza polimorfa de quem é de todos os géneros e não é de nenhum, logo tenha corrigido, e cito, «mas também não és de uma pessoa olhar para ti e se pôr a uivar de quatro». A experiência de Deus em coisas terrenas é, sabe-se, relativa, e a verdade é que a nocturna Juliette uivava à lua. Ou, como Jacques Brel confessou, enquanto todos os humanos se esgadanham para tomar banhos de sol, Juliette, franja na testa, cabelos pelas costas, camisola e calças em segunda pele, banhava-se à lua de St. Germain-des-Prés, deixando em êxtase existencial Sartre e a santa Simone, Camus ou Mauriac, Prévert e Boris Vian.
Bicho sedutor a cantar em palco, no dia em que, escrita e composta por Aznavour, cantou Eu odeio os domingos, na abertura de um caveau existencialista com o digno nome «Boi no Telhado», passou ao estatuto de lenda, para Paris o que Eneias foi para Roma, Heitor para Tróia. E já Deus me dá uma cotovelada, a sentir-se secundarizado – são ululantes os seus complexos de inferioridade em assuntos humanos! Exige que eu puxe o lustro ao que se passou na segunda noite de Gréco no céu, ilustração da máxima «reúne Deus quando quer o que o bruto homem separou». Faço-lhe a vontade, não sem fazer um flash-back, que não sou menos do que um Coppola ou um Scorsese.
Ou foi em 1949 ou no ano seguinte, Michèle e Boris Vian trouxeram a Paris um trompetista americano. Juliette veio, dos bastidores, vê-lo tocar. Era um deus a soprar no trompete, o homem mais bonito que Gréco, disse ela, já vira em 22 anos da sua vida. Ele tinha 23 e chamava-se Miles Davis.
Nenhum falava a língua do outro. E logo as línguas dos dois se enredam e se deitam, línguas e tudo, na mesma cama, nos intervalos passeando de mão dada na fímbria do Sena, como Lídia com Ricardo Reis, pedindo eu desculpa pelo derrame sentimental do parágrafo, escrito a pedido e concessão ao gosto literário de Deus.
Foi o melhor amor dos cem amores da vida de Gréco. «Por que não te casas com ela?» perguntou o padre Jean-Paul Sartre a um Miles em enlevo. «Para ela não ser a puta de um preto», foi a resposta amarga de Miles, que conheceu a dignidade do amor em Paris, mas sabia da sordidez racial da América. Nos 50 anos seguintes, telefonaram-se, cruzaram-se em espectáculos, Miles veio até passar dois dias com ela antes de morrer. Deus, na sua santa inocência, jura que os juntou agora, nesse céu que é só passado, sem presente, nem futuro.
Publicado no Jornal de Negócios
Um convite muito bem cantado, todo explicadinho.
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Era assim a virtuosa Juliette…
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