A irlandesa, a irlandesa, senhores!

Lucia Joyce

Ficaram amigos em Paris. Foi pouco antes de começarem a correr os anos 30 do século XX e eram dois irlandeses expatriados. Unia-os a negra paixão da literatura e davam pelos nomes de Joyce e Beckett, James e Samuel. O mais jovem, Beckett, foi até, de Joyce, o fiel secretário. Com eles, a literatura faz a mais tonitruante das viagens, das disruptivas transgressões modernistas ao abismo do absurdo. E as mãos de Beckett ajudaram mesmo as mãos de Joyce na elaboração do indecifrável, por impenetrável, “Finnegans Wake”. Joyce ia ditando partes da obra e Samuel escrevia, mas alguém bateu à porta e Joyce disse “Entre!”, o que Beckett logo passou ao papel. Ao reler, Joyce espantou-se: “O que é este ‘Entre!’?” Beckett jurou que ele o tinha dito e assim ficou.

O diabo foi haver uma filha. Lucia, filha de Joyce, bailarina. Dizia-se em Paris: “Quando ela atingir toda a sua capacidade rítmica, só nos vamos lembrar de James Joyce por ser pai dela.” E agora sirvam-se, para ver, dos olhos de Beckett: a 28 de Maio de 1929, num festival de dança, Lucia é uma das seis finalistas e o júri atreve-se a não lhe dar o primeiro lugar. Os 23 anos de Beckett desarvoram aos gritos na plateia, logo apoiados pela multidão francesa que clama: “A irlandesa, a irlandesa! Um pouco de justiça, senhores do júri.” Não admira que Lucia derramasse amor e fogosa paixão por Beckett. Ele, consequente com a obra futura, deixou-a à espera de Godot.

Roubo de um almanaque um incidente: um dia, Beckett bateu à porta de Joyce. Abriu-a Lucia e trazia no assimétrico olhar a doce exaltação de pastorinhos a quem aparece a Virgem numa azinheira. Era preciso não conhecer Beckett para acreditar que a cúpida transcendência o afagaria. Com a sensibilidade de um cajado de pastor, Beckett disse a Lucia: “Estou aqui para ver o teu pai, não a ti.”

Temo que não seja verdade e, ciente de que os alemães, por amor ao trabalho, fazem horas extraordinárias não pagas, mergulhei na pesquisa e eis o que descobri. Lucia e Beckett talvez tenham chegado a ser amantes. Lucia, na ausência de pai e mãe, levou-o a jantar e estendeu-lhe o tapete para um pedido de casamento.

O que travou Beckett? Outra mulher, com quem mantinha já intrínseco comércio amoroso? Escuto, aqui, o que se disse em Paris: Beckett talvez se tenha assustado com a liberalidade dos 21 anos de Lucia, com a sua beleza selvagem, que o doce estrabismo só realçava; talvez o tenham encolhido as histórias de outros affaires de Lucia. Pior ainda: Beckett não se sentia capaz de rivalizar com a subliminar pulsão erótica daquela relação pai e filha, que só iria fazer dele figura de pai-substituto.

E irrompe a violência esquizofrénica: rejeitada, Lucia há-de abandonar a dança, entregar-se à promiscuidade, largar fogo a algumas casas, bater com uma cadeira na mãe no jantar de 50 anos do pai, a que Beckett não faltou. Pela mão de Joyce, veio Carl Jung consultá-la. “A minha filha mergulhou nas mesmas águas que eu”, explicou-lhe Joyce. “Mas enquanto você nada, ela afoga-se nelas”, respondeu o psicanalista.

Morreu James Joyce e uma conspiração familiar fechou Lucia num hospício. Irmão e mãe entregaram-na aos piores tratos de uma psiquiatria bárbara. De longe embora, só Beckett não a abandonou. Doou parte dos seus direitos para pagar o hospital no qual Lucia esteve enclausurada 30 anos. E quando Samuel Beckett morreu, entre os seus papéis encontrou-se a fotografia de uma bailarina, vestida com um coleante e prateado fato de sereia. Não me obriguem a dizer se era ou não a erotíssima Lucia Joyce…

Publicado no Jornal de Negócios

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