
Sem a obstinada ajuda da insónia, teria Marcel Proust escrito os sete volumes do seu Em Busca do Tempo Perdido? E teríamos a culpa e redenção do Lord Jim, o horror do Coração das Trevas se o polaco Joseph Conrad não tivesse as insónias que tinha? E de que cabeça, senão de uma cabeça insone como era a de Charles Dickens, teriam irrompido personagens como o Oliver e o seu fiel Jack Dawkins, ou o desumano e avarento Ebenezer Scrooge, que renasce, pão-duro, a cada Natal.
Diz-me como dormes, dir-te-ei como escreves! Quase juro que o sono ou a falta dele é a musa inspiradora dos grandes criadores. Eu disse musa e devia ter dito afrodisíaco. Balzac levantava-se à uma da manhã, o que explica a sua obra prolífica. Às 4, levanta-se Murakami, e levantava-se a inquieta Sylvia Plath. Com a pontualidade de um relógio de cuco, o filósofo alemão Kant levantava-se às 5. Já Nabokov, acordado por Lolitas, tal qual Edith Wharton e Flannery O’Connor, levantava-se às 6 da manhã. Joyce às 10, Scott Fitzgerald às 11, Charles Bukowski, às 12, são exemplos de despertar tardio.
Em insidiosa concubinagem com o sono, Joyce escrevia na cama, como aos domingos Nabokov. Domingos ou dias úteis, Franz Kafka conta que, ao dormir, uma dor vertical subia-lhe em flecha da cana do nariz ao crânio, como se uma ferida lhe rasgasse a fronte, e já nada mais podia fazer que não fosse perseguir a dor que o cortava em pedaços: nessa dor estavam as suas histórias, se não as agarrasse durante a noite, desvaneciam-se de dia.
Na cama, no remanso da noite, e foi Stephen King, de quem nem sequer sou leitor, que muito bem o disse, aprende-se a ficar estático e a encorajar a mente a libertar-se do bulício racional do dia. Ouvem-se então, digo eu, o farfalhar das paredes a libertarem o calor acumulado do dia, os canos da água a resfolegar, o sussurro dos fantasmas nos móveis (a que António Lobo Antunes, deu voz, magistral, em O Tamanho do Mundo), o latido de um cão longínquo, um carro a gemer solidão na noite, o primeiro avião, vindo talvez de Casablanca, que voa sobre a Praça de Espanha antes que o primeiro raio de sol acorde Lisboa.
E já estou aqui a querer louvar a doçura do sono, mais do que a subversiva insónia. Mesmo um grande poeta como era W. B. Yeats cantou o regalado deleite que é o limbo em que caímos, quando estamos simultaneamente a dormir e acordados. Chamou-lhe transe hipnótico. E, se quisermos ser justos, o que seria da literatura sem o sono conjugal?
Na gentil escuridão da noite começa a subtil batalha pela cama dividida, a perna que força outra perna – ainda tenho as pernas bonitas, perguntas, e se digo sim, dizes: mas nem sequer olhaste, e eu, estamos a dormir, queres que acenda a luz? – a redonda nádega que vem invadir o meu lado e que a distraída mão logo assedia, prova que todos os conflitos fronteiriços começam na cama, o “vira-te para o outro lado” quando o ressono estremece o quarto, os sonhos de que acordamos em êxtase, mesmo se, que saiba, nunca tenha tido o privilégio do pequeno milagre que é o teu riso no meio de um sonho.
Bem sei que a literatura gosta de cultivar uma transgressiva imagem neurótica, alcoólica, excessiva e impulsiva, mas não é menos literário saber que Salman Rushdie, que já leva quatro casamentos, se levanta e vai, ainda de pijama, logo escrever: para fazer sair “esse pequeno volume de energia criativa” que o sono conjugal alimentou. Ainda assim, que ninguém despreze o aviso de Virginia Woolf: “Ninguém pode pensar bem, amar bem, dormir bem, se não tiver jantado bem.”
Concordo com Virgínia Woolf, embora ela tenha cara de niquenta. Mas, é claro que o “jantar bem”, é muito subjectivo; a Dona tem ar de comer uma azeitona ao jantar.
Insónias criativas não me perseguem. Cerces e justas, são apenas insónia crescente, coisa de brandos costumes a alargar os dias. Que grande chatice.
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As “in-criativas” insónias só podem ser mesmo uma chatice. Tenho a sorte de mal as conhecer. As melhoras, Bea.
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