Joana Maluca

Luanda

Vindo da minha última crónica, saio da casa militar dos malucos de Luanda e desato a deambular pelas ruas da minha infância e adolescência, pela Missão de São Paulo, o gárrulo e multi-aromático mercado de tantas quitandeiras desse bairro, ou pelos areais e ruínas entre o Liceu Feminino e o Hospital Militar, e em todas essas ruas, areais e ruínas só me aparece, insistente, o vulto da Joana Maluca.

 A Joana Maluca era a louca de Luanda, tormento da minha infância. Foi nela que primeiro vi o esgar que um dia descobri ter também atormentado o pintor norueguês Edvard Munch e o levou a pintar o terrível “Grito”. Que anjos negros e espessos, que anjos brancos, albinos, translúcidos como medusas, embalaram Munch e embalaram Joana, mulher negra e louca da minha infância?

Munch pintou quatro “Gritos”, neles variando a angústia, o fundo alucinado e as cores dessa hora desvairada que é cada crepúsculo. Discípula de Munch, Joana trazia no avental rasgado quatro pedras que atirava à turba de miúdos, fossem pretos, mulatos ou brancos, que lhe gritassem em coro, “Joana Maluca, Joana Maluca”.  Soprada pela loucura, levantava os panos que a cobriam e expunha a nudez desamparada e íntima aos gritos de “Querem ver cinema, querem?” E os miúdos que éramos, ríamos, perturbados por esse entontecedor cocktail de medo, loucura e baixa vergonha. E fugíamos das pedras fulminantes.

Não sei o que atirou aquela mulher de rosto munchiano para a esquina da amargura. Uns diziam que uma história de amor com um branco ruim, outros com um atleta japonês, outros falavam da morte do seu bebé. Munch contava que o seu romance com a loucura era romance de toca e foge: as alucinações iam e vinham como migrantes no oscilante Mediterrâneo. Trataram-no, leio, a electrificação, não sei se a inóspitos e célebres electrochoques, se a variante mais moderada. A terapia da Joana Maluca era a pedrada multirracial. E que ninguém fosse queixar-se aos pais. Toda a piedade estava reservada a essa mulher nómada, errante, Joana Maluca, que a cidade venerava como a aldeia venera o seu louco, permitindo que acompanhasse as procissões ao lado do arcebispo.

E eis que, na independência, conheci o branco maluco. Matriculei-me na Faculdade de Direito de Luanda, ali mesmo, Marginal sobre a baía, em frente o amado Atlântico Sul, cálido lençol azul e verde, estendido até às Américas. Era um mais velho que ficara, sem retorno, sem família. Na cantina davam-lhe a refeição que em Luanda já escasseava.

O mais velho era pacífico, mas de repente vinha um atlético anjo munchiano e ele dava uma espectacular cambalhota – quase um flic-flac – no pequeno jardim do pátio ao pé da cantina. E o branco maluco, a seguir, soltava os seus anjos guinchantes e despejava a odiosa desordem rácica, com insultos em que “pretos de merda” era só o amuse-bouche. Os meus colegas negros, a maioria, sentados já na sua pátria independente, tratavam, então, o mais velho branco maluco com a mesma santidade que a cidade colonial dedicara a Joana. Toleravam-no e acalmavam-no: o espectáculo da loucura é uma fada sinistra que nos assombra e nos provoca, seja qual for a nossa cor ou pátria, uma perturbadora epilepsia interior, secreta, que não sabemos como parar.

Tenho a vaidade de pensar que a Joana Maluca, com a boca que a insanidade torcera, foi o anjo da guarda da minha infância, e que o circense e paroxístico branco maluco da faculdade de Luanda foi um Anjo Gabriel, desenhando a fronteira da tolerância aos meus vinte anos extremistas e totalitários.

Publicado em “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios

 

Não somos doidos, somos judeus

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Paul Éluard e Nusch, fotografados por Man Ray

O cheiro a nazi empestava Paris. Era o desembestado ano de 1943 e da mão do poeta Paul Éluard nascera um poema, “Liberdade, escrevo o teu nome”, cuja fragância tricolor fez dele um alvo. Dizia: “Sobre os campos, sobre os horizontes /sobre as asas das aves / sobre os moinhos de sombras, / escrevo o teu nome”. Ele a sua amada, Nusch, passaram à clandestinidade: “Creio que somos forçados a ir uma temporada para o campo”, anunciou com desprendido humor.

Foram esconder-se em Lozère, no Sul de França. Não propriamente na aldeia, mas num hospital psiquiátrico, o asilo de Saint-Alban-sur-Limagnole. O director, o Dr. Lucien Bonnafé, velho amigo dos surrealistas, tinha uma visão inovadora da psiquiatria, apóstolo da psicoterapia institucional, que ligava o hospital à aldeia. Os internados abriam-se ao exterior, trabalhavam nos jardins do asilo, desenvolviam talentos artísticos. Ao mesmo tempo, Bonnafé, acolhia clandestinos, protegendo-os sob a propícia capa da loucura. A Éluard e Nusch deu-lhes outra identidade, Eugène e Marie Grindel, diagnosticando ao poeta uma conveniente nevrose ligeira. Como Éluard, havia clandestinos que enchiam uma ala e a fusão com os loucos legítimos era perfeita. Um dos clandestinos, um médico judeu, inimigo da discrição, passeava-se pelos corredores gritando: “Eu não sou doido, eu sou judeu. Os doidos vão ser perseguidos, mas eu sou judeu.”

Os meses que Éluard viveu no asilo foram gloriosos. Ali, entre alucinados, catatónicos e dementes, Éluard confessa: “Trabalhei como um louco, se posso usar esta forma de falar”. Continua a escrever para a Resistência – os ingleses chegam a lançar de paraquedas papel para que a tipografia clandestina possa funcionar. Impressionado pelos rostos em ruínas dos pacientes, Éluard escreve as “Lembranças da Casa dos Loucos”, em que canta as ondas de amargura daqueles corpos, a face talhada em madeira dessa mulher que oferece aos ratos as carícias do fim da sua velhice.

Eu tinha 16 anos e não estava na poética clandestinidade de Éluard. Mas no meu bairro de Luanda, na Vila Alice, debruçada sobre a Estrada de Catete, havia uma casa de loucos. A tropa portuguesa alojara ali os cacimbados da guerra. Durante um ou dois anos, o meu bando de amigos e eu vínhamos aos sábados ou domingos de manhã conversar com eles. Lembro-me que vínhamos de bicicletas, salvo eu que, num gesto pingarelho contra o elitismo da bicicleta, usava uns heterodoxos patins. Portanto, vinha eu nuns patins antifascistas e os meus saudosos avilos nas bicicletas de alta estirpe e ficávamos do lado de fora da alta barreira de arame a conversar com os loucos da tropa.

Depressa fizemos triunfar as nossas ideias de “psicoterapia institucional”, emulando o então desconhecido Dr. Bonnafé de Éluard: abriram-nos as portas e passámos a ser internos. Descobrimos, claro, um Napoleão e um Jesus Cristo, mas descobrimos sobretudo o prazer das conversas, umas vezes singelas, outras bizarras: muito cacimbo, medo e, em vez das sombras dos moinhos de Éluard, as sombras e os relâmpagos da nossa guerra tropical.

Faltava o passo seguinte: pô-los a trabalhar. Desafiámos os malucos da tropa para um jogo de futebol num pelado improvisado que ficava entre o beco da minha Alberto Correia e o largo Camilo Pessanha. Meio bairro veio comer o pó desse trumuno. Já não me lembro do resultado, mas acho – se o suor, os esfolanços dos joelhos e os abraços contam –, que ganhámos todos. Mesmo as nossas espantadas famílias, que a seguir lhes deram o jantar.

Publicado em “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo” no Jornal de Negócios