
Ou bem que transformamos a nostalgia numa arte ou então a nostalgia é uma emoção morta.

A Página Negra de Manuel S. Fonseca
Blog de escrita e de reflexão lúdicas. Um lema: chatices não!
Ou bem que transformamos a nostalgia numa arte ou então a nostalgia é uma emoção morta.
Quando eu escrevi esta crónica, ainda lá vivia José Eduardo dos Santos. Sei quem lá vive hoje, mas não sei onde vive José Eduardo dos Santos. Uma coisa é o que se sabe, outra coisa é o rumor das recordações, das velhas lembranças, a afagar o lobo temporal medial, sei lá se o hipocampo. Esta é, está bem de ver, uma crónica epicurista.
Agora vive lá José Eduardo dos Santos. Ou ali tão perto. Era uma das casas do quilómetro 14, em que me aboletava para festas e praia. Já longe de Luanda, Morro da Luz na colina à esquerda de quem ia em direcção ao sul, sol e sal. Em frente à casa, o areal e o mar imóvel, não mais do que um rumor de seda nas noites desse Verão, que fervia, tropical, de Dezembro a Abril. Não sei se foi nesse ano que vi no cinema o Summer of 42, filme da mulher casada que ensina a um adolescente o amor adulto, salivado, terno e nu. Foi talvez em 1970 e julgo que não haveria então, no mundo, ninguém que tivesse mais de 17 anos.
Eu não era só muito novo. Estava interiormente cheio dessa estrondosa timidez de rapaz que se sublimava em jogos de futebol, sonhos de revolução e a alarvidade juvenil de vinte imperiais numa só noite. Dancei com ela, com os 16 ou 17 anos dela, sem saber quem era. O cabelo louro podia ser de uma francesinha de Estrasburgo, os olhos tão mansos e líricos como os da miúda de calções de outro inesquecível Verão, o de Bonjour Tristesse. Não sei, aliás, se foi nesse ano que vi no cinema o Summer of 42.
Estava habituado a dançar colado, sofregamente colado, primeiro o roço de uma contra outra perna, depois o braço a distrair-se num seio e, numa lógica afirmação das leis da natureza, logo a dar-se, irremediável, o perfeito e irrespirável encaixe de tudo o que era convexo e côncavo.
Mas ali, onde agora vive, ou tão perto, José Eduardo dos Santos, nessa noite que eu começava então a saber que era colonial, dancei-a ou dançou-me ela de outra maneira. Havia nela uma insustentável leveza loura, um delicado aroma mais metafísico do que Ambush ou Channel. Ela tocava-me só de vez em quando, como se fosse um afago de tule, embora chegasse a parecer fogo. E, coisa que eu sempre me proibira, ela falava. Eu era então muito novo e a palavra, esse mágico dom da velhice, era-me alheia.
A translúcida rapariga loura trouxe-me à varanda de madeira tosca, lá dentro a vaga luz do gerador, cá fora a estendida, imensa escuridão da noite, vigiada por uma tropa de estrelas – nunca vi tantas estrelas como as estrelas que vi no Morro da Luz.
Eu queria dizer-lhe “os teus olhos” ou “a tua boca” e morria-me a coragem num silêncio torpe. As palavras dela vinham devagar, sem peso, pousar em mim. Pousavam-me nos cabelos, na testa, nos ouvidos, indecifrável arrepio na pele nua dos meus braços.
“Não seriam mosquitos?”, perguntou-me depois o meu amigo Manuel Ramos, que tinha casa mais adiante, no Km 36. “Não eram, Manel.” Imobilizava-me a louca paixão de me ver assim, patético, cercado pelas palavras que a levíssima rapariga loura acendia como se fossem cigarros para queimar a noite do km 14, ali tão perto da que viria a ser a casa de José Eduardo dos Santos. E, no meu silêncio, a insustentável rapariga loura desfez-se, leve e aromática, dentro da noite que eu já sabia ser colonial.
Talvez tenha sido em 1970, e talvez eu ainda não tivesse visto no cinema o Summer of 42.
Todo o português é um Mark Twain, todo o português é um Rudyard Kipling. E antes que a ideia escorra a desbotar-se no parágrafo seguinte, juro ao leitor que, pelo português que já tanto sou, também mereço ser um bocadinho Twain e um bocadinho Kipling.
Falta dizer quem são ou foram estes Twain e Kipling. Twain era patrão de costa. Praticamente nascido num cesto a vogar sobre o Mississipi, o rio entrou-lhe pelos ouvidos e pelos ossos. O rumor das águas, as vozes dos escravos, a água a molhá-lo até ao fémur, colaram-lhe de amor a boca ao rio e não descansou enquanto não foi marinheiro o suficiente para ir ao leme de um barco a vapor a rasgar o fim do século XIX. Por acidente, foi também escritor.
Kipling foi, não o sendo, o último soldado do império britânico. «Um, dois, um, dois, esquerda… esquerda, direita volver», aprendeu a ser cadete e cantou o regimento que nunca teve em poemas como Gunga Din ou Mandalay. Nenhum soldado, capitão ou general os cantou ou cantará tão bem.
Ao leme não há Adamastor que apavore a incerta mão portuguesa, e estaria aqui, estaria a falar de impérios, se não tivesse prometido que vinha só falar do incêndio dos olhos que é o prazer de viajar.
E vejam, nem agora estamos a salvo do americano Twain e do colonialíssimo britânico Kipling. Eles viajaram à volta do mundo. Viajaram além e aquém dos séculos em que viveram, mostrando-nos que no tempo é que se viaja bem. Imito-os.
No dia 11 de Novembro de 1975, por aventurosas razões políticas que interessam tanto como um fiscal de linha num jogo de futebol, eu estava no Sumbe cercado pela UNITA e sul-africanos de que era inimigo. Tinha de fugir para Luanda que, por sua vez, estava cercada pela FNLA e os seus soldados de fortuna. Ali, naquela praia do século XX, só havia barcos a vapor de Mark Twain. “Go West”, gritava-me do século XIX a voz do escravo de Huckleberry Finn. Ainda hoje, essa viagem num barco de cabotagem é a mais epicurista das minhas memórias. Viagem de Angola ao Brasil, Atlântico dentro, eu ao leme a gritar ao Mostrengo: «Aqui ao leme sou mais do que eu / Sou um povo que quer o mar que é teu.» Viajei, glorioso, num barco que nunca saiu do cais.
No dia seguinte, já Angola independente, troquei Twain por Kipling. Vim dormir a Porto Amboim e na manhã de 13 de Novembro, antes de recuar para Luanda, vi o farol lá em cima do morro, na praia, as pedras do velho forte, e uma rapariga africana num silêncio sem desculpas a olhar o mar. Era, vinda de Kipling e de Mandalay, a minha rapariga birmanesa. Ter-me-á visto? E se me viu, terá ela pensado, no futuro que veio a ter, se algum futuro teve, que um dia evocaria a fugaz imagem de um perdido rapaz português, excrescência do império e de Kipling, à beira do mar em Porto Amboim?
By the old Moulmein Pagoda, lookin’ lazy at the sea,
There’s a Burma girl a-settin’, and I know she thinks o’ me
Tinha os olhos postos na minha pilinha. Olhava-a com uma inquietação de oito anos de idade. Ali estávamos, ela de olhar mais cego, a interrogarmo-nos um ao outro: estaria a façanha, na sua complexa articulação e intrincado encadeamento, ao nosso alcance?
Quando vi o filme Stand by Me gritei de inveja: também queria, como aquele bando de miúdos, ter descoberto um cadáver numa mata, para o lado do aeroporto de Luanda, onde íamos caçar pássaros. O cadáver dos meus oito anos foi uma calçadeira. Deixemos, para já, a calçadeira ao pé do que era então o meu único par de sapatos.
Da escola da Missão de São Paulo, eu vinha de frescas sandálias ou de imaculados quedes em dias de ginástica. Bando negro com miúdo branco, atirávamo-nos, com uma convicção de Garrinchas, Matateus e Iaúcas, a trumunos de sarjeta. Ou seja, a sarjeta era a baliza e o objectivo era, quem estivesse na posse da bola – uma lata, caixa, um bom caroço de manga – enfiá-la no buraco. Fazíamos da caminhada ramerranesca uma jornada de glórias e humilhações pessoais e uma afronta à manutenção dos esgotos camarários.
Íamos deixando os colegas moradores no musseque Rangel onde desaguava a Avenida dos Combatentes, e sobrávamos dois. Vila Alice à vista, sentávamo-nos com um vendedor de kitaba, paracuca e quifufutila. Largávamos um angolar e a língua deliciava-se entre o picante e o doce, enquanto oferecíamos os ouvidos ao nosso mestre vendedor. Era um mais velho ainda novo, nada de kota, mas sabia já o que nós não sabíamos e queríamos saber: aquilo.
Fazia render as revelações, do manso farfalho a tirar as cuequinhas, até que um dia contou o que sonhávamos que nos contasse. Era assim: corpos nus, abria-se o que é de sua natureza abrir-se e penetrava o que para isso é cilíndrico e de inflada ponta. Depois, obtido o perfeito encaixe, com uma calçadeira, eis que se enfiavam os redondos complementos do impante membro. Os meus dois ovinhos de perdiz também entrariam, portanto, na festa.
Acreditámos. E a calçadeira assombrou tanto a minha infância, como o espectro que Marx dizia assombrar a Europa no revolucionário século XIX. Só havia uma calçadeira em casa e seria perverso tocar-lhe. Com que cara e dinheiro iria eu, oito anos, comprar uma? E diga cá – já os estava a ouvir –, para que quer o menino a calçadeira?
Publicado no Expresso
Há dez anos, a 4 de Outubro, escrevi este texto de adeus – farewell my lovely – ao Dinis Machado. Não me levem a mal , mas vou juntar aqui as orações fúnebres dedicadas aos meus amigos que se meteram pelos labírinticos caminhos entre nuvens e estrelas. Temos de ir mantendo a conversa em dia: se faltam, é para aí 20 anos, até ir ter convosco. Um pingo de tempo, grão de areia da vossa eternidade.
Ps – Dinis, lembrei-me de te reenviar esta prosa ao tropeçar com as fotos de um fim de ano, na minha antiga casa da Teófilo Braga. Lembras-te? Era uma casa pequena, mas tinha um pavilhão lá atrás, a seguir a um quintal com canteiros e flores. Se estavas bem nas fotos? Lindo. Mas estávamos todos, éramos uns 14 ou 15, tão bem vestidas as mulheres, colos em que pousava a dourada cintilação de um colar, pernas felizes, bem torneadas. Há amor nos olhares. Que belas fotos. tenho de as mostrar ao António Setúbal, o nosso Gutierres, no próximo jantar.
Gostávamos todos do Dinis. Estabelecemos o pacto – pacto de grupo – em Tróia, no clássico festival de cinema, e depois andámos anos em jantares e aniversários. Bom sinal, tanto nos juntou a alegria de sucessos, como a tristeza dos fracassos.
Gostávamos todos do Dinis. Mas havia dois que o amavam. Primeiro, a Dulce, carinhosa e vigilante. Depois, o Pedro Bandeira Freire, que era, Dinis, teu irmão mais novo e teu irmão mais velho. Nunca vi ninguém tão desinteressadamente atento como ele o foi contigo. A vossa amizade, franca e forte, é uma das lições da minha vida. E iluminou-me mais do que tudo o que, de há uns anos a esta parte, tenho ouvido dizer de ti.
Sei bem que escreveste livros – que, aliás, li com gosto, eu que só tenho metade da mania de ler que tu cultivaste até à exaustão. Mas se queres que te diga, hoje que fui contigo dar a última volta até ao Alto de São João, do que me recordo mais é mesmo de teres sempre continuado a ser um puto de Lisboa (sei que eras do Bairro Alto, mas insisto que também eras de Alcântara, onde ias jogar pelo Atlético). Um puto de bairro, um bocadinho envergonhado com a gentileza que te inundava.
É disso que me vou recordar por mais uns anos, espero. E dos teus casacos de tweed, como o que levavas hoje. Das cigarrilhas, a que hoje te poupaste.
Morreste porque todos temos de morrer, é mesmo assim. Mas escolheste morrer como o Bogart, que morreu de cancro de pulmão por causa de milhões de cigarros e de whiskies a que nunca lhe passou pela cabeça resistir.
Morreste com estilo – “Encostei a cabeça para trás e fechei os olhos.” – como sempre escreveste com estilo.
Acreditavas na sorte. Com sorte, o Pedro está lá a tua espera. O Hammett de um lado e o Chandler do outro, que é a guarda de honra que mereces. Espero que gostes de um bom dry martini. Foi o que lhes sugeri para começo de conversa. With an olive, está claro.
Mas quem é que hoje ainda apanha um comboio? Eu sou do tempo em que até se apanhavam comboios para 1920. John Wayne apanhou um desses belíssimos cangalhos ronronantes e desembarcou em Inisfree. Foi a mando de John Ford e o comboio chegou com três descomprometidas horas de atraso.
Bem sei que é um filme e se chama “The Quiet Man”. E o que interessaria que houvesse filmes, se não fosse para nos restituir, a brilhar como olhos de tigre na noite escura da realidade, a chama e os fumos do sonho?
Há uma coisa que me confunde na ubiquidade de Deus. Não sei se ele é o mais transumante dos nómadas, se é o mais arreigado dos sedentários. Mas é nos sítios perdidos do mundo, que podemos ainda encontrar esse Deus de cascos equinos, cabra montesa a pastar montes.
Em Corvos, por exemplo. Se nalgum lado parasse, pararia aqui o comboio de Inisfree, de John Ford. E, nesse Alentejo, desviado umbigo de Deus, há um restaurante que leva o esforçado nome “A Paragem”. Escuso de dizer que comeriam ali os anjos se Deus ou Rabelais os agraciasse com o pecado da gula. Foi lá um grupo de alienígenas meus amigos. A patroa, com uma alacridade de Inisfree, gritou-lhes que eram muitos, não podia atendê-los: “Estou cá sozinha, até o meu vizinho, veio ajudar-me ao balcão.” E, depois, numa explicação consoladora, disse: “Os meus empregados foram todos à Festa do Avante.” Bem se vê, os empregados de “A Paragem” meteram-se, como se meteria o dono da estalagem de Inisfree, num comboio de 1920.
Desse mesmo comboio desceram, em Mértola, quatro viúvas quadricolores em fim de sexagenato, vestidas, mesmo no inclemente meio-dia de um domingo de Setembro, com os vestidos, folhos e colares de ir à missa, que devem ter ido buscar ao falecido guarda-roupa da minha querida mãe. Vinham de visita turística ao alcantilado castelo e o incendiado meio-dia pedia água fresca, fosse a um camelo, a mim, também a elas. O fru-fru das sedas não camuflava o guerrilheiro suor das axilas, a perlada testa. Onde seria mais fresco, ficar na esplanada ou ir para a sombra interior do café, perguntaram ao empregado? Era uma pergunta de 1920. Ora o empregado, nem era de comboios, nem tinha ido à Festa do Avante. Eis a ecológica resposta: “Se é para evitarem o enfarte de miocárdio, é melhor irem lá para dentro.”
Publicado no Expresso