Canção de despedida

Esta é a minha canção de despedida favorita. Porque, when the summer comes a-rollin’, tem de ser. I’ve got to ramble. Mas é a minha canção favorita porque, depois de a ouvir, já ninguém se quer ir embora: I never never gonna leave you baby.

A canção não é sequer dos Led Zeppelin. Pilharam-na, com modificações na letra, a uma folk singer berkeleyana, Anne Bredon. Andei à procura, mas não encontrei a Anne a despedir-se. Encontrei a versão da Joan Baez, igualmente pilhada, mas mais próxima do original (o que a mim não me faz gostar mais. O insuportável exibicionismo de Robert Plant vai mais com o meu gosto de despedidas e reencontros).

ps– Por honra das respectivas reputações, sublinhe-se que em segundos discos, tanto Baez como os Zeppellin acabaram por atribuir correctamente a autoria da canção à autora californiana. Ficam avisados: com uma canção destas não há mesmo ninguém que se separe.

 

A angústia da despedida

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Ninguém se despediu como Sócrates. Condenado pelos juízes, feito o discurso de adeus aos amigos, já a rude taça de cicuta à espera dos seus lábios, as últimas palavras de Sócrates rompem entre a vida e a morte: “Agora é tempo de partir. Eu para morrer, vós para viver. Quem vai para melhor nenhum de nós o sabe, sabem-no talvez os deuses.»

Poucas coisas são tão belas como a angústia da despedida. Foi o que pensei ao ouvir as vozes das Sopa de Pedra. Cantavam “Adeus, ó serra da Lapa. Ó minha terra, ó minha enxada, não faço gosto em voltar.” E não é verdade, faremos sempre gosto em voltar. A invectiva da despedida é quase sempre raiva de nos despedirmos cedo demais.

Para esse fulgurante segundo da despedida, o cinema inventa cenas que “são os olhos de uma rosa, parecem os do meu bem”. É mesmo dessa lassa e estremecida inclinação melodramática que eu gosto no cinema. E nas outras artes também. “Além daquela janela dois olhos me estão matando, matem-me devagarinho.”

Lembro cenas de filmes em que, devagarinho, me deixei morrer. “Teremos sempre Paris.” O excesso de nobreza que leva ao colo esta réplica de “Casablanca” é a mentira com que Bogart desiste do amor e entrega a estóica Ingrid Bergman à desgraçada virtude de Paul Henreid.

O aroma de “Stand By Me” é de adeus. Despede-se do que se despede, como eu me despedi do meu bairro de Luanda, como eu, copiando Richard Dreyfuss, me despedi da inocência e da infância: “Nunca mais tive amigos como os que tive aos 12 anos. Mas, oh meu Deus, alguém os voltou a ter?”

Toda a despedida é um sussurro. No meio da multidão em Tóquio, Bill Murray murmura ao ouvido de Scarlett Johansson uma frase, um rumor ininteligível: “Lost in Translation” e ainda bem.

Junto o adeus europeu ao adeus americano: em “La Dolce Vita”, Mastroianni despede-se da tão luminosa rapariga que lhe faz adeus na praia. Que estará ela a gritar? “Não se ouve”, diz ele, escolhendo o vazio. E só se ouve o mar. Em “The Searchers” na mais pungente das despedidas, John Wayne vira as costas à casa da família e avança para o deserto. Só se ouve o vento.

Cedo ou tarde, todos nos despedimos. Se um dia, e há-de ser um dia ou uma noite, se acabar esta crónica de cinema e vida, lembrem-me para dizer adeus com este verso: “Dou-te o meu lenço bordado quando de ti me apartar.”

Os meus sapatos não são os sapatos de Van Gogh

Foi há cinco anos. Despedi-me destes sapatos. Ainda hoje os meus pés morrem de saudades deles. Tombaram exangues. Os cemitérios dos sapatos não são como os dos humanos. Estes continuam insubstituíveis.

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Não vol­ta­rei a cal­çar estes sapa­tos. Os meus pés e estes sapa­tos têm uma rela­ção de quase 20 anos. A pala­vra rela­ção tem, neste caso, abso­luta e plena apli­ca­ção. Foi um entra e sai diá­rio — em cer­tos momen­tos, e não neces­sa­ri­a­mente só no começo da rela­ção, um entra e sai de várias vezes ao dia. Bem sei que eram sapa­tos de ata­ca­do­res mas, com a fami­li­a­ri­dade, já os meus pés neles entra­vam de luva. Para que conste, nunca foi pre­ciso calçadeira

Estão ali, aban­do­na­dos, uma deses­pe­rada ele­gân­cia, um bri­lho que dis­farça a velhice. Admito, é natu­ral, que lhes digam: “olha nem parece a idade que têm”. Mas abriu-se uma ines­pe­rada fenda, late­ral, mínima, o sufi­ci­ente para que o dedo min­di­nho do pé esquerdo pro­teste des­cri­mi­na­ção e risco. Tam­bém esse dedo min­di­nho requer interioridade, escu­ri­dão e um con­forto de veludo. O meu dedo min­di­nho entrava no seu sapato como quem entra numa sala de cinema. Agora, peque­nís­simo ras­gão no couro, vê de den­tro para fora, ina­cei­tá­vel expo­si­ção da sua inti­mi­dade. O que um dedo, mesmo min­di­nho, faz den­tro de um sapato, é para ficar den­tro do sapato.

Há outros sapa­tos mais famo­sos, mas a his­tó­ria dos meus pés e deste par de sapa­tos é uma his­tó­ria de feli­ci­dade. Dir-me-ão que todas as his­tó­rias de pés feli­zes são iguais, e que os pés infe­li­zes, esses sim, são infe­li­zes cada um à sua maneira. Mas nem mesmo neste momento amargo de des­pe­dida, estes meus sapa­tos se que­rem tols­toi­a­nos ou se resig­nam ao fata­lismo do par de sapa­tos de Van Gogh, a que Hei­deg­ger e Der­rida apli­ca­ram meto­do­lo­gia desconstrucionista.

Ao con­trá­rio do que Der­rida disse das botas cam­po­ne­sas de Van Gogh, os meus sapa­tos são mesmo um par de sapa­tos. Só um tem uma ligeira fis­sura. Podia, tal­vez, cal­çar o sapato direito e cami­nhar ao pé coxi­nho. Pois sim, que é como quem diz, pois não — recu­sa­ram separar-se. O ainda intacto sapato direito, anti-desconstrucionista, assu­miu como sua a fis­sura que só existe no esquerdo. Reformam-se, ou melhor, descalçam-se os dois. Fiéis, dei­xam agora, jun­tos, de cami­nhar, tão uni­dos como uni­dos esta­vam quando pisa­vam ligei­ros, engra­xa­dos, couro negro a bri­lhar ao sol, ou intré­pi­dos a mar­char sob a chuva. A estes nem a morte os separa.

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A grande alegria do Natal é a sua tristeza

Este é um longo artigo. Publico-o com prazer e pena. O prazer que me deu o convite do meu editor do Expresso, Miguel Cadete, para o escrever. A pena de ser, simbólica e nataliciamente, a minha despedida do Expresso. Despedida que se cumpre, em definitivo, com a publicação da crónica que sai hoje, sábado, dia 29 de Dezembro de 2018. A última. Saio por decisão minha, e para uma aventura que anunciarei no começo de 2019. Quando, para a semana que vem, publicar aqui a última crónica, a que sai este sábado, direi o muito bem que do semanário que acolheu a coluna “O Cinema Dá o que a Vida Tira” e de Francisco Pinto Balsemão tenho e quero dizer.

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Meet Me in Saint Louis

A grande alegria do Natal é a sua tristeza

O primeiro perfume de Natal foi um perfume de estábulo. Se quisermos ser fiéis ao evangelho segundo Lucas, diremos que foi numa manjedoura que nasceu o Jesus Menino, por estar então Belém como a hotelaria de Lisboa no Verão, com uma ocupação de cem por cento, não havendo lugar para a grávida Maria e para o abnegado José, nem sequer em hospedarias bed and breakfast. Para infelicidade da parturiente não se tinha ainda inventado a modalidade airbnb.

Era de noite e, no divino estábulo a que o casal se abrigou, estariam recolhidos os rebanhos, que a imaginação popular transfigurou em burro e vaquinha, parelha ainda hoje presente em qualquer presépio que se preze. Dir-se-á que é um cenário estranho e humilíssimo para o nascimento de um ungido, de um príncipe messiânico, mas temos de convir que tudo nesta história roça uma hiperbólica estranheza.

A mãe do menino era Virgem e Virgem ficará, por séculos e séculos, tendo concebido por obra e graça de um espírito, naturalmente santo. Um anjo veio em sonhos sossegar a rude e básica relutância de José, pai putativo, eventual carpinteiro a quem tanta fantasia procriadora não deixou de fazer alguma espécie. Para efeitos de figuração, aquele penetrante espírito terá assumido a forma de uma imaculada pomba, de um fulgurante raio de luz ou, para consolo da teoria da suspeita freudiana, de um sopro ou subtil rabanada de vento – fascinantes hipóteses pelas quais só mesmo a minha especulativa mente escolástico-hollywoodiana digna interessar-se.

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Pesadelos de Tim Burton

O triunfo dos bichos

Ia falar dos Reis Magos, mas ponho rédea curta no meu digressivo nomadismo temático e centro-me no estábulo e no meu editor, Miguel Cadete. Pediu-me ele uma reflexão sobre os filmes de Natal. Fui ver a oferta dos cinemas e canais televisivos e a presença de animais ou monstros, de Grinches, Shreks, e Gremlins é ufana, pujante e significativa. Não vale a pena evocar a catwoman natalícia que, no “Batman Returns”, foi a Michelle Pfeiffer de outros tempos – estamos a falar de outra coisa. E nem sequer devemos compará-los a “The Nightmare Before Christmas”, de Tim Burton, todo chocalhado a ossos ou viscosa geleia de fantasmas, goblins, zombies, vampiros e lobisomens. Os filmes a que me refiro são de uma geração diferente: não há Menino Jesus de espécie alguma naqueles filmes tocados por uma distanciação do humano que esfrega ombros, para não dizer beiços, numa quase animalidade. Como diriam os virginais camaradas maoistas dos meus tempos revolucionários de Angola, esta natalícia escolha da bicheza, em última instância, não é inocente.

É assim nos filmes, mas é também assim na vida. Nem que o diga de cócoras, abraçado aos meus próprios joelhos e encostado a uma parede, mas tenho de o dizer desta forma brutal: os cães erradicaram o Menino Jesus do Natal. Há para aí dez anos, tive a alegria, primeira e última, de ler uma edição de domingo do Washington Post. Nesse ano, dizia o Post, os americanos espatifaram, e deixem-me escrever por extenso, cinquenta e quatro mil milhões de dólares. Gastaram-nos em anti-depressivos caninos, bem como em cirurgias ortopédicas e sessões de spa para cachorros (vamos ladrar-lhes, vamos ladrar-lhes, meu caro Centeno).

O cão de estimação arreganhou os dentes e arrebatou, no lar moderno, o lugar do filho. Alguém disse, depois de um pastrami, palitando os dentes e a sair do Katz’s Delicatessen, no Lower East Side: “… o filho, esse ersatz do animal de estimação.” Ainda tinha a dolorosa frase a cicatrizar em mim e eis que mordem ao Menino Jesus: mais de 56% dos cães eram, há dez anos, comprados no Natal. Compra ou prenda sopradas por um espírito santo de orelha, eis que o pet chega a casa e é deitado nas aveludadas palhinhas. À volta desse presépio, ajoelham-se o pai de estimação e a mãe de estimação. Está reconstruída a Sagrada Família e a televisão debita “Alvin e os Esquilos” ou “Angry Birds, o Filme”. Não se ouve, no pesadelo climatizado dos apartamentos, o grito da rua. Em pleno Times Square trocadilha e ecoa o grito de um obsoleto sem abrigo: “A nation under dog.”

Carol
Jim Carey é Scrooge

Quem inventou o filme de Natal?

Felizmente sei que o PAN, com o seu primígeno e requintado perfil filosófico, já percebeu que ironizo, nesta pobre escrita que, em verdade, em verdade vos digo, vai de rojo atrás da metáfora e da incipiente parábola. O que eu quero dizer não foi o que eu disse. Aqui está o que queria dizer: Charles Dickens inventou o filme de Natal! Ponho um ponto de exclamação nisto e já ouço o reparo mordaz: é falso, é falso, Charles Dickens morreu vinte e dois anos antes dos irmãos Lumière terem inventado o cinematógrafo!

Concordo, é verdade, não se desse o caso da verdade se deixar, por vezes, inundar por ondas de dúvida metafísicas. Charles Dickens, antes de morrer, deixou escrito o argumento do primeiro, do último e de todos os filmes de Natal. É um livrinho, umas 150 páginas singelas, chamado “A Christmas Carol”, que carrega o subtítulo “A Ghost Story of Christmas”, e de que é protagonista um riquíssimo Ebenezer Scrooge, que tem no coração um pólo norte e na mente o desprezo pelos pobres e pelo mundo. Digamos que esse livro é como uma mesa de cirurgia. Dickens amputa ao ventre natalício o fígado religioso, criando e dando autonomia ao espírito de Natal, que logo aterra noutro corpinho secular, moralizante, comovente, grávido de generosidade e melhores intenções – é o corpo dos nossos dias. Sai Jesus e entra a boa vontade.

Não foram só as adaptações literais, e contam-se já nove, a últimas das quais, assinada pela Disney, em 2009, com o desconexo Jim Carey, que tanto é o malvado e ganancioso Ebenezer Scrooge, como é cada um dos três fantasmas que o vêm atormentar e resgatar. A ideia e a alegoria de “A Christmas Carol” é uma mancha que alastra por dezenas de outros filmes e serviu até de base à transformação desse implacável Scrooge político, que era o florentino analista e maquiavélico conspirador Marcelo Rebelo de Sousa, no omnibondoso presidente que humanizou Portugal, amado até pelos comunistas e, porventura, pelas manas do Bloco.

Estou quase a conseguir dizer o que quero dizer. Há mais Menino Jesus no poema do vagamente pagão Alberto Caeiro, que vê o Jesus menino descer à Terra num meio-dia de fim de Primavera, do que em todos os filmes de Natal de Hollywood e dos outros estreitos arredores onde também se fazem filmes. Os grandes filmes de Natal são dickensianos e paz na terra aos homens de boa vontade. Começo a repetir-me: Jesus, menino ou moço, nem vê-lo.

Há quem, usando o chamado argumento hitleriano, diga que isso se deve ao facto de os judeus terem dominado Hollywood e, tolerantes de espírito, encantados pelas festas familiares cristãs, pelo saturnino calor com que as fogueiras e lareiras alegram as casas, quererem por simpatia celebrar a quadra e o cheirinho que da quadra estava no ar, trocando o odor do bíblico estábulo inicial pelo aroma de bolos e peru assado do século XX.

E é verdade que o tão judeu e ainda mais genial Irving Berlin escreveu as belas canções de Natal de “Holliday Inn”, dançadas pelas dúcteis pernas judias de Fred Astaire. Berlin, aliás, escreveu também a canção das canções, “White Christmas”, para o filme homónimo que o olho judio do severo Michael Curtiz realizou e o desajeitado judeu Danny Kaye interpretou. E para não falar apenas de clássicos da idade de ouro de Hollywood, “Elf”, talvez o filme natalício mais popular deste século (2003), tem realização de Jon Favreau e foi escrito por Daniel Berenbaum, ambos judeus.

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Jimmy Stewart, o suicida de It’s a Wonderful Life

 Paz na Terra e boa vontade

   Ora, nem tudo o que parece é – exactamente o que Galileu Galilei quis dizer quando se saiu com o célebre Eppur si muove, com que bem lixou para a posteridade o Papa e o Santo Ofício. Essa sanitária celebração da quadra natalícia desligada da Natividade não é um exclusivo de produtores e realizadores judeus, estando presente no mais esmagadoramente natalino dos filmes, “It’s a Wonderful Life”, obra a que o italiano Frank Capra, de catolicíssima e pecadora educação, deu sublime realização.

É certo que logo num dos primeiros planos do filme de Capra há uma conversa celestial entre dois asteróides. O argumento do filme classifica-os como dois anjos da mais elevada estirpe, mas eu sempre acharei, salvo desmentido pessoal e por escrito de Frank Capra, que são, um, o Senhor Deus nosso criador, e o outro, pelo buraco negro que nele se adivinha, o honesto e perplexo José, esposo de Maria. Estão ambos preocupados com as orações que lhes chegam. As orações são uma espécie de código morse que permite aos humanos mandar mensagens clandestinas para o céu, fazendo lobby anti-meritocrático na tentativa de alterar as leis naturais; as orações que os estelares ouvidos de Deus e São José escutam, no começo desse filme de Capra, são todas a rogar pelo inexcedível de virtuoso que é a personagem de Jimmy Stewart. Sequela avant la lettre do caso BPN ou BES – que sei eu! –, Jimmy Stewart está à beira da falência e vê recusado um empréstimo por um banqueiro scroogiano. (E não, malta de esquerda letrada, a expressão banqueiro scroogiano não é nenhuma tautologia!)

Seja como for, alheio a esta minha imprecação estilístico-ideológica, Jimmy Stewart decide suicidar-se e eis que cheguei onde queria chegar: há outros filmes de Frank Capra com o Natal a servir-lhes de paisagem de fundo, caso de “Meet John Doe”, sendo o suicídio, no caso o de Gary Cooper, o laço temático que o ata a “It’s a Wonderful Life”. Esse laço que os ata aos dois é um laço natalício e dickensiano.

Se chamo Dickens ao caso é porque, celebrando a quadra, foi ele que nos ensinou a desembocar, como o comovente “It’s a Wonderful Life” desemboca, na porta do happy-end decorada a azevinho e redentora boa vontade. Cumprida a regra dos três actos de toda a boa ficção, superados os obstáculos que constroem a trama, Dickens e os filmes que ele inspirou, judeus ou cristãos, abrem-se a um angelismo que predispõe ao humaníssimo abraço, a agradáveis expansões libatórias e a um cândido consumismo. Que o humano abraço esteja em vias de extinção, substituído pelo afago e enroscanço do animal de estimação é só uma contingente nota de rodapé.

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O Evangelho segundo Pasolini

Uma natividade de papelão

Estava a escrever tudo isto, ia agora, enfim, falar dos Reis Magos, e avassala-me um anseio de justiça. Do fundo de mim mesmo, há uma voz rebelde que clama: “Diz a verdade Manuel S. Fonseca.” E a verdade nua e crua é que a morte de Jesus é estarrecedoramente mais bela e mais cinematográfica do que o seu nascimento. Não é que o cinema não tenha tentado recriar o presépio, narrar a anunciação, a ida de Maria e José para Belém, o precário parto, a ameaça de Herodes, a luz da singela estrela que guia reis e pastores, os bem-aventurados de espírito. Do “King of the Kings”, de Cecil B. DeMille a “The Greatest Story Ever Told”, de George Stevens, passando pelo tão popular “Ben-Hur”, o cinema tentou e falhou. Papelão e pastelão.

Há mil Paixões, mil mortes de Cristo e – valha-me Deus, que não é de mal-entendidos – Jesus morre sempre tão bem. Já o seu nascimento é adramático porque os principais elementos de tensão, a presença do Pai ou do Espírito Santo, a concepção de Maria, são de infilmável invisibilidade, a menos que seja Godard a traduzi-los para a contemporaneidade, com o escândalo e a blasfémia do seu “Je Vous Salue Marie”, ainda assim um filme mais mariano do crístico.

No “Il Vangelo Secondo Matteo”, Pasolini foi quem esteve mais perto de restituir, com um olhar de medida escassez poética, o que no nascimento de Jesus possa haver de transfiguração e espiritualidade. Há quem diga que o fez por ter o rigoroso olhar marxista dos anos 60 e 70. Diria que também o ajudou o ascetismo das personagens e do cenário, a pedra transmontana dos casebres – a lembrar, às vezes, o “Trás-os-Montes”, de António Reis – como o ajudou a sua imensa fé nos grandes planos, na candura firme dos olhares e no silêncio. E não vás daqui, Pier Paolo Pasolini, a dizer que não louvei, assim, a tua superior e esquecida humildade de poeta.

Fanny and Alexander
Fanny e Alexandre

Qual é a maior alegria do Natal?

Mas vejamos: corrida esta prosa a cães e morte, não deixa de ser Natal e, Deus seja louvado, nem o PAN há-de morrer, nem a gente deixará de almoçar e querer ver um filme a seguir e outro na noite de Consoada.

A um amigo, eu diria, vê o “Fanny e Alexandre”, de Ingmar Bergman. Como quando vamos ver o mar e as águas estão perladas de pequeninas cristas brancas, assim “Fanny e Alexandre” está perlado de pequenas angústias, todas revestidas pelas mais variadas alegrias, as puras, as nostálgicas, as infantis, as risonhas e maliciosas. O jantar de Natal culmina com a mais prodigiosa celebração da flatulência que o cinema já imaginou. Um velho tio, para gáudio dos sobrinhos meninos, tem a arte de soltar um poderoso peido contra uma vela, rasgando, no escuro das escadas onde se esconderam, uma miríade de estrelas que nos resgatam do tédio e conferem ao desprezado traseiro humano a mesma dignidade mágica que qualquer Messias gostaria de conferir à humanidade que queira salvar.

E não me venham dizer que há, em “Fanny e Alexandre”, sexo a mais para uma noite de Natal. A consoada é efusiva e quem tenha uma casa grande, de preferência duplex ou com bons arrumos, sabe bem do que falo. A vontade de abraçar, de beijar, a comunhão mística que nos lança num amplexo universal, se as autorizamos à mente e ao coração, como diabo poderemos proibi-las a tudo o que no nosso térreo corpo o sangue irriga?

Mesmo “Eyes Wide Shut”, essa perversão kubrickiana para que foram arrastados Nicole Kidman e Tom Cruise passa-se, afinal, no Natal. E lembro essa preciosidade de 1966, a preto e branco, que dá pelo nome de “Le Pére Noel a les Yeux Bleues”. Filmou-o um transgressivo, breve e suicidário Jean Eustache. Jean-Pierre Léaud é o protagonista. Quer comprar o sobretudo dos seus sonhos e para arranjar a massa de que qualquer sonho é feito, aceita vestir-se de Pai Natal e fazer fotografias de rua com quem passa. Descobre que as raparigas, que para ele, antes, nem uma pestana abriam, agora se encostam à sua fofice de Pai-Natal e que não se importam que ele deixe as suas mãos natalícias deambular festivamente pela alcantilada geografia do corpo delas.

Já não tenho espaço para continuar a falar de perversões, nem, bem sei, para falar dos Reis Magos. Regresso, por isso, à inocência de quem tem filhos para criar. Se querem deixar-lhes uma ferida incurável, que eles guardem em humaníssima carne viva, legado de um imaginário de ternura, um módico de bondade, um fraterno amor pelo humano nosso vizinho, ponham os vossos filhos ao colo e vejam com eles “The Sound of Music”, “Mary Poppins”, o “E.T.”, o “Elf”, “The Muppet Christmas Carol”, o “Home Alone”, até o “National Lampoon’s Christmas Vacation” ou “The Polar Express”. Se eles já não se sentam ao colo, atirem-se ao “Die Hard”, ao “About a Boy”, ao “Batman Returns”, ao “Harry Potter”.

Mas se me deixam, como as raparigas a Jean-Pierre Léaud, meter a mãozinha, a minha pessoalíssima escolha é “Meet Me in Saint Louis”. Um pai de família é promovido na empresa e anuncia à mulher e filhas que, depois do Natal, partirão para a grande Nova Iorque, deixando a cidadezinha de Saint Louis. Esse é o último Natal que as quatro filhas passam com os amigos, os amores, os vizinhos que as mimam, essa intrincada rede de sentimentos e júbilo da pertença que as liga à cidade, ao bairro, à rua onde nasceram e crescem. E, tendo ficado lá fora, no jardim, os desolados bonecos de neve, quando no calor do quarto, uma das irmãs, Judy Garland, canta à maninha mais nova o “Have Yourself a Merry Little Xmas”, toda a turbulenta e antecipada emoção da despedida, da perda, do tempo que passa, tombam sobre as personagens e sobre nós. Judy Garland canta e diz que next year all our troubles will be miles away… Derrama-se no filme e do filme uma tristeza de seda. Choro eu, choramos todos: é Natal e a maior alegria do Natal é a sua tão belíssima e nocturna tristeza.

Publicado no Expresso

Dinis Machado

Há dez anos, a 4 de Outubro, escrevi este texto de adeus – farewell my lovely – ao Dinis Machado. Não me levem a mal , mas vou juntar aqui as orações fúnebres dedicadas aos meus amigos que se meteram pelos labírinticos caminhos entre nuvens e estrelas. Temos de ir mantendo a conversa em dia: se faltam, é para aí 20 anos, até ir ter convosco. Um pingo de tempo, grão de areia da vossa eternidade.
Ps – Dinis, lembrei-me de te reenviar esta prosa ao tropeçar com as fotos de um fim de ano, na minha antiga casa da Teófilo Braga. Lembras-te? Era uma casa pequena, mas tinha um pavilhão lá atrás, a seguir a um quintal com canteiros e flores. Se estavas bem nas fotos? Lindo. Mas estávamos todos, éramos uns 14 ou 15, tão bem vestidas as mulheres, colos em que pousava a dourada cintilação de um colar, pernas felizes, bem torneadas. Há amor nos olhares. Que belas fotos. tenho de as mostrar ao António Setúbal, o nosso Gutierres, no próximo jantar.

dinis machado

Gostávamos todos do Dinis. Estabelecemos o pacto – pacto de grupo – em Tróia, no clássico festival de cinema, e depois andámos anos em jantares e aniversários. Bom sinal, tanto nos juntou a alegria de sucessos, como a tristeza dos fracassos.

Gostávamos todos do Dinis. Mas havia dois que o amavam. Primeiro, a Dulce, carinhosa e vigilante. Depois, o Pedro Bandeira Freire, que era, Dinis, teu irmão mais novo e teu irmão mais velho. Nunca vi ninguém tão desinteressadamente atento como ele o foi contigo. A vossa amizade, franca e forte, é uma das lições da minha vida. E iluminou-me mais do que tudo o que, de há uns anos a esta parte, tenho ouvido dizer de ti.

Sei bem que escreveste livros – que, aliás, li com gosto, eu que só tenho metade da mania de ler que tu cultivaste até à exaustão. Mas se queres que te diga, hoje que fui contigo dar a última volta até ao Alto de São João, do que me recordo mais é mesmo de teres sempre continuado a ser um puto de Lisboa (sei que eras do Bairro Alto, mas insisto que também eras de Alcântara, onde ias jogar pelo Atlético). Um puto de bairro, um bocadinho envergonhado com a gentileza que te inundava.

É disso que me vou recordar por mais uns anos, espero. E dos teus casacos de tweed, como o que levavas hoje. Das cigarrilhas, a que hoje te poupaste.

Morreste porque todos temos de morrer, é mesmo assim. Mas escolheste morrer como o Bogart, que morreu de cancro de pulmão por causa de milhões de cigarros e de whiskies a que nunca lhe passou pela cabeça resistir.

Morreste com estilo – “Encostei a cabeça para trás e fechei os olhos.” – como sempre escreveste com estilo.

Acreditavas na sorte. Com sorte, o Pedro está lá a tua espera. O Hammett de um lado e o Chandler do outro, que é a guarda de honra que mereces. Espero que gostes de um bom dry martini. Foi o que lhes sugeri para começo de conversa. With an olive, está claro.