Os meus sapatos não são os sapatos de Van Gogh

Foi há cinco anos. Despedi-me destes sapatos. Ainda hoje os meus pés morrem de saudades deles. Tombaram exangues. Os cemitérios dos sapatos não são como os dos humanos. Estes continuam insubstituíveis.

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Não vol­ta­rei a cal­çar estes sapa­tos. Os meus pés e estes sapa­tos têm uma rela­ção de quase 20 anos. A pala­vra rela­ção tem, neste caso, abso­luta e plena apli­ca­ção. Foi um entra e sai diá­rio — em cer­tos momen­tos, e não neces­sa­ri­a­mente só no começo da rela­ção, um entra e sai de várias vezes ao dia. Bem sei que eram sapa­tos de ata­ca­do­res mas, com a fami­li­a­ri­dade, já os meus pés neles entra­vam de luva. Para que conste, nunca foi pre­ciso calçadeira

Estão ali, aban­do­na­dos, uma deses­pe­rada ele­gân­cia, um bri­lho que dis­farça a velhice. Admito, é natu­ral, que lhes digam: “olha nem parece a idade que têm”. Mas abriu-se uma ines­pe­rada fenda, late­ral, mínima, o sufi­ci­ente para que o dedo min­di­nho do pé esquerdo pro­teste des­cri­mi­na­ção e risco. Tam­bém esse dedo min­di­nho requer interioridade, escu­ri­dão e um con­forto de veludo. O meu dedo min­di­nho entrava no seu sapato como quem entra numa sala de cinema. Agora, peque­nís­simo ras­gão no couro, vê de den­tro para fora, ina­cei­tá­vel expo­si­ção da sua inti­mi­dade. O que um dedo, mesmo min­di­nho, faz den­tro de um sapato, é para ficar den­tro do sapato.

Há outros sapa­tos mais famo­sos, mas a his­tó­ria dos meus pés e deste par de sapa­tos é uma his­tó­ria de feli­ci­dade. Dir-me-ão que todas as his­tó­rias de pés feli­zes são iguais, e que os pés infe­li­zes, esses sim, são infe­li­zes cada um à sua maneira. Mas nem mesmo neste momento amargo de des­pe­dida, estes meus sapa­tos se que­rem tols­toi­a­nos ou se resig­nam ao fata­lismo do par de sapa­tos de Van Gogh, a que Hei­deg­ger e Der­rida apli­ca­ram meto­do­lo­gia desconstrucionista.

Ao con­trá­rio do que Der­rida disse das botas cam­po­ne­sas de Van Gogh, os meus sapa­tos são mesmo um par de sapa­tos. Só um tem uma ligeira fis­sura. Podia, tal­vez, cal­çar o sapato direito e cami­nhar ao pé coxi­nho. Pois sim, que é como quem diz, pois não — recu­sa­ram separar-se. O ainda intacto sapato direito, anti-desconstrucionista, assu­miu como sua a fis­sura que só existe no esquerdo. Reformam-se, ou melhor, descalçam-se os dois. Fiéis, dei­xam agora, jun­tos, de cami­nhar, tão uni­dos como uni­dos esta­vam quando pisa­vam ligei­ros, engra­xa­dos, couro negro a bri­lhar ao sol, ou intré­pi­dos a mar­char sob a chuva. A estes nem a morte os separa.

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2 thoughts on “Os meus sapatos não são os sapatos de Van Gogh”

  1. Que história bonita a dos seus sapatos e que relação feliz viveram com os pés. Como nas pessoas, a relação é o que importa. E eles cumpriram. Para com os pés e com eles mesmos. Irão juntos para a sucata (os sapatos, que, por mais amor que lhes haja, cortar os pés é que não). Ou, quem sabe, o Manuel os guarda. Ao menos na memória.

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