O meu baile de debutante

Há dois anos andava eu a esfalfar-me para alugar uma casaca, camisa e laço branco que me autorizasse a entrar na Ópera de Viena, para assistir ao mais afamado baile de debutantes desta nossa velha Europa. Digo eu, que nisto não tenho certezas nenhumas. Que um tipo inimputável como eu se meta nestas coisas, está muito certo; mas que me convidem é que eu nunca hei-de perceber. E agora, entrem nesta valsa.

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Baile na Ópera
Manuel S. Fonseca

O imperador Francisco José tinha duas pernas. Não é fácil saber de que gostam as pernas de um imperador. Mas não ouso atirar-lhe às pernas a mesma acusação que me atrevo a cravar na sua mão direita. A mão de Francisco José era uma mão relutante. Já as pernas imperiais tinham dançado dezenas de bailes e ainda a sua mão direita hesitava assinar o decreto que a boa sociedade de Viena lhe pedia.

Vou já dizer ao que venho, mas mesmo antes de dizer seja o que for, é preciso proclamar um princípio ab ovo: Viena gosta de dançar. Deixemos o imperador Francisco José de pernas amarradas, enquanto damos corda às nossas para uma breve viagem no tempo. Em 1814, a Europa estava como a Europa há-de estar daqui a cinco anos – basta que tudo corra mal e já se sabe que tudo o que pode correr mal acaba mesmo por correr mal. Ou seja, tal como hoje, em 1814, a Europa estava de pantanas. Napoleão, afamado corso com gosto pela artilharia, fizera um inter-rail avant la lettre, ou uma espécie de Erasmus militar, bombardeando, em estágios semestrais, a extrema Rússia, a Prússia de dignos bigodes, a alva Polónia e o coração da Europa que era o império austro-húngaro. Fora, enfim, derrotado, e mau grado ainda ter vindo, como as galinhas a que minha mãe cortava o pescoço, a estrebuchar no que foi o seu último governo de Cem Dias, a Europa veio a Viena parlamentar para acabar com as guerras de Napoleão e com as guerras dos futuros Napoleões – entenda-se, sempre que a Europa queira ser Europa terá de vir a Viena parlamentar!

Um Congresso reuniu as potências, a Rússia, a Prússia e, entalada entre as duas, a Polónia, mais a Áustria, a manhosa Inglaterra e a depauperada França e não vos maço com a lista dos países satélites que vieram para ouvir e calar. O que fizeram os congressistas? Dançaram. Houve bailes todos os dias para todos os gostos. Bailes de cerimónia e, sobretudo, como convém a um Congresso, bailes de máscaras. Um filme dos grandes estúdios alemães da UFA, a que Hitler apagaria o brilho e o gosto germânico pelas brumosas fantasias, recordou, no século XX, essa explosão lúdica de pernas, braços e corpos.

O filme é de 1931 e chama-se O Congresso Que Dança. É muito mais Cinderela do que histórico e político. Toma liberdades de conto de fadas e mostra a paixão do Czar, incógnito, por uma jovem austríaca que lhe oferece flores. Ao contrário das outras cabeças coroadas, o Czar obstina-se na recusa a bailes, dizendo: “Não vim a Viena para ver bailados e muito menos russos.” Não dançou de uma maneira, dançou de outra, nos ternos braços da bela e mignonne Lilian Harvey, a actriz que, e perdoem-me os hífenes, a Europa via então como a mulher-criança, o paraíso-feito-mulher, num arrebatamento avant-pedophilie que outro vienense, o pintor Egon Schiele, não desdenharia.

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Pares de pernas tão iguais e tão diferentes

E por já não haver czares a apaixonarem-se por floridas plebeias, voltemos a pôr os olhos na mão direita de Francisco José. Acaba de assinar o decreto que autoriza o que sempre rejeitara: uma soirée na esplêndida Ópera de Viena. Soirée é um termo ambíguo, que não contempla necessariamente um baile. Mas à meia-noite, na noite de 11 para 12 de Dezembro de 1877, o ardor bailarino de centenas de pernas de homens e mulheres austríacos, pares de pernas tão iguais e tão diferentes das pernas de Francisco José, venceu o preconceito e pôs a Ópera a dançar, como já se dançava, com loucura de fin-de-siècle na Ópera de Paris.

Hoje é quinta-feira, dia 23 de Fevereiro de 2017. É a última quinta-feira antes do Carnaval e da pungente quarta-feira de cinzas e eu vou a pé, a caminho da Ópera de Viena. São sete horas da tarde e da porta dos imponentes hotéis, do Bristol, do Sacher, desabrocham mulheres-crianças, musas de branco, lolitas que, mais do que o paraíso-feito-mulher, diria serem uma doce tortura-que-se-fará-mulher. Saem à rua e julgam ter os pés no chão, mas enganam-se. Transportam nelas uma alegria que as faz levitar. Sorriem para toda a gente, para mim também, e o sorriso delas, tão branco e primordial, desarma nuclearmente o mundo. Como se a inocência voltasse a ser possível. Há uma onda de luxo, de dinheiro resplandecente, a caminhar da rua pedonal Kärntner para o Opernring, uma vaga de perfume que sai do Sacher Hotel para dar os cinco passos que o separam da entrada da Ópera.

Sinto que devo já esta explicação aos meus leitores: estas miúdas vêm debutar. Musas ou nereides, chamam-se Franziska, Sabine, Hanna ou mesmo Eva e hoje, na vida delas, vai ser o primeiro dia em que à luz chamarão luz e à noite chamarão noite. Vão ter a sua noite de luz, o dia primeiro. E eu pensava que não, mas falando com elas descobri que afinal sabem: debutando, continuam uma tradição que é maior do que elas, o rito de passagem de meninas a mulheres.

Volto brevemente às pernas de Francisco José, imperador da Áustria e rei da Hungria, Croácia e Boémia. Com um ultimato à Sérvia, fora ele a começar a I Grande Guerra, um baile de metralha e gás mostarda com milhões de mortos, uma carnificina dançante. Abalado, calvo e velho, o imperador sente um derradeiro esticão nas pernas a 21 de Novembro de 1916, e é a última coisa que as suas pernas sentem. Rígido, o império aguenta-se de pé mais dois anos. Depois, uma burguesia industriosa, respondendo à crise da derrota na I Guerra e ao desmembramento do Império, substitui a velha ordem e proclama a república.

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Uma prodigiosa alquimia criada por Johann Strauss

A Áustria não deixou, porém, de dançar – bem vos avisei, a Áustria adora dançar. Em 1921, apenas três anos depois do Império, pernas republicanas dançavam valsas, quadrilhas e polcas na vasta sala da Ópera, como antes as tinham dançado as pernas aristocráticas. E, em 1935, sob o alto patrocínio da decidida mão e robustas pernas do Chanceler Federal, tem lugar, com as actuais características e com este nome, o primeiro Baile da Ópera de Viena, com a apresentação à sociedade de uma centena de meninas que, em poucas horas, uma prodigiosa alquimia desenvolvida por Johann Strauss transforma em mulheres.

Estou em Viena e também eu vou debutar. Enganei a fome com uma apressada garrafa de água e um par de inevitáveis salsichas, um dos 2.500 pares de salsichas que o baile comeu. Trago vestida, saiba-se, a melhor e mais cara camisa que já vesti na vida. Descobri que, de tão fanadíssima, não vinha na mala a velha camisa de cerimónia que tenho desde os primeiros Globos de Ouro. Fui comprar uma no Sir Anthony, men’s best adress, dizem eles seguros do que dizem, o que a minha carteira amargamente comprovou. Recorrendo ao meu melhor inglês, bem sugeri something less expensive, língua-de-trapos que foi recebida com um sorriso complacente e um of course not, um “claro que não” acompanhado de conversa consoladora, em que o magnânimo funcionário de Sir Anthony me revelou compras de clientes meia hora antes de o baile, com contas caladas, que essas sim fariam do homo economicus que eu sou um homo galacticus, seja lá o que isso possa ser.

Entrei agora na sala da Ópera e não há ninguém nos camarotes. Somos só umas 20 pessoas na sala a que retiraram a plateia e abriram o palco para a transformar num imenso salão de baile, e meti conversa com Valentin, neto de bascos de uma aldeia encostada a Biarritz, segunda geração na Áustria. Conta-me que já é a quarta vez que cobre o Baile da Ópera para a ORF, a televisão austríaca. Explica-me o alinhamento do espectáculo, os hinos da Áustria e da Europa primeiro, depois a entrada das debutantes com os padrinhos, o ballet, as interpretações do cantor que este ano será Jonas Kaufmann, tenor alemão. Valentin é novo mas, sem menosprezar a ascendência basca, é um austríaco orgulhoso e jura-me que o baile é muito mais do que um evento cor-de-rosa ou uma festa. Acredita no cerimonial, no valor simbólico, atrevo-me eu a dizer, e na comunhão plena das cinco mil pessoas que ali se vão juntar. Quando o mestre-cerimónias gritar “E agora todos valsam!” também ele irá dançar com a namorada que há-de chegar.

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A libertadora beleza de um decote

Nada do que Valentin disse me preparou para o que a seguir aconteceu. Uma hora e quarenta minutos antes de serem declaradas abertas as hostilidades o salão está cheio. Uma pequena multidão alinha-se e esfrega-se atrás de uma corda vermelha que uns pajens ou escudeiros operáticos seguram. A sala da Ópera de Viena parece o Mar Vermelho dos Dez Mandamentos, de Cecil B DeMille, na cena em que Moisés separa as águas. É entre essas duas alterosas barreiras humanas que o espectáculo vai ter lugar. Não cabe mais ninguém e as minhas costas convivem com o peito ameno de duas gentis japonesas. Nem eu podendo dar um passo à frente, nem elas podendo recuar um passo atrás, não tenho a certeza de que, bem contadas as nuances, as jovens japonesas não fossem três. Vieram com dois jovens austríacos que, no ano anterior, tinham, eles mesmos, debutado, se assim se pode dizer de um rapaz. Gabam-se da experiência com uma excitação e uma alacridade de meninas. E se primeiro me apetece passar-lhes uma reprimenda viril, ouvindo as reacções deliciosamente musicais das macias japonesas, só me resta invejá-los. Explicam às deslumbradas jovens do país do haiku e de Mizoguchi a tensão e a exigência das coreografias e dizem-lhes que houve mesmo um dos rapazes que desmaiou.

Não chegou o venerando imperador do Japão, mas chegou o Presidente da República da Áustria. A sala ouve o hino de pé, os camarotes iluminados, mil e trezentas garrafas de champagne patrioticamente recolhidas nos frapés, casacas e condecorações tão orgulhosamente erguidas como o comovente peito feminino assoma da beleza viva desses libertadores decotes que, santa paciência, Deus não abençoa mais do que eu. Sem decote, Christine Lagarde, a patroa do FMI, está no camarote à minha frente e olha, como eu, para esta sala que, de pé, ouve o hino da Europa. Claro que é sobretudo uma festa, mas também se vê logo que há, nesta sala, um pouco mais do que uma festa. Há aqui uma forma de vida, a que afluem tradição, o gosto do êxito e do bem-estar, um habituado convívio com a riqueza e com os prazeres sem sobressalto a que gerações de revoltados Rimbauds chamaram simplesmente burgueses.

Muito perto passa o Danúbio, estrada vertebral da Europa Central, que atravessa ou se roça por treze países, desde que irrompe na Floresta Negra até que, em delta, se afoga no Mar Negro. É o Danúbio que está, afinal, na sala da Ópera, o antiquíssimo poder das suas águas, fonte de vida, da humilde fertilidade da agricultura às fulgurantes indústrias, parteiro de aldeias e da sumptuosa arquitectura das cidades. Um rio é o pai das Musas, se é que a voz de Johann Strauss tem alguma autoridade e os meu leitores me deixam pedir-lhe ajuda.

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A palpitação rubra de quem experimenta a felicidade

Há cento e oitenta meninas que entram na sala, de puríssimo branco, tules, sedas e organdi, luvas de manga longa. Tiaras de diamantes na cabeça. Brincos de pérolas. Vêm como um rio, apresentar-se à sociedade. Estão a dois passos de mim e trazem nas caras a palpitação rubra de quem está a experimentar a felicidade. Umas fecham quase os olhos, outras seguram neles a lágrima centrípeta que nunca deixarão cair. Karin, por exemplo, é igual a uma moça de Matosinhos, rosada, cabelo negro, mais farta do que magra, pujança a que os 18 anos de hoje dão graça e que os anos futuros converterão em peso. Tem a pele fresca, de um verniz cristalino, mas os nervos, a ansiada tortura de num só dia passar a ser mulher, puseram-lhe nas costas nuas duas borbulhas vermelhas e púberes, que a maquilhagem tenta disfarçar e os meus dedos podiam, se esticasse a mão, afagar para as acalmar. Se ela precisasse… Mas não precisa. Karin e as outras debutantes entregam-se agora, com precisão, mas não de relógio suíço, a uma coreografia. Os pares delas, os rapazes, ajoelham-se numa cortesia de cavaleiros medievais. Recitam-lhes com o corpo cantigas de amor, uma rosa de prata na mão. E elas hão-de responder-lhes, depois, com igual vénia, o corpo em forma de cantiga de amigo, as costas da mão oferecidas ao primeiro beijo. A sala não resiste a esta delicadeza, quase pueril, e vem abaixo com o maior aplauso da noite, a que logo responde a valsa de Strauss, o Danúbio Azul. Os neurofisiólogos vieram há pouco garantir que, estimulado pela música, um feto de 6 meses já dança. Os 180 pares de debutantes, que estão na sala da Ópera de Viena, ao contrário do Imperador Francisco José de pernas relutantes, ainda eram fetos e já dançavam. Dançam e vê-se que pensam com o corpo, braços e pernas, peito e ventre. Como se a música, que os pés deles elegantemente pisam, tivesse sido a sua primeira linguagem.

Dançam o Danúbio Azul e já nada os separa da multidão que assiste, dos pais e das mães que dos camarotes os comem com os olhos, do Presidente da República que os acolheu, dos 71 anos da actriz Goldie Hawn que veio fazer companhia ao milionário Richard Lugner – por 500 mil euros, se cobrar o que o ano passado cobrou Kim Kardashian. E que interessa a moeda vil! Uma valsa levou os jovens pares de uma margem à outra do rio. A sociedade já os recebeu e o mestre-cerimónias grita então, “Alles Walzer”, os cordões vermelhos desaparecem e todos valsam. Mais de um terço dos cinco mil cento e cinquenta convidados, mil pares pelo menos, evoluem no chão da sala da ópera de Viena. A dança, essa liturgia de júbilo, esse prelúdio que arrasta os corpos, adormecendo-lhes a violência para neles acordar a vontade de fusão, toma conta de Viena. Era capaz de jurar que já vos tinha dito isto: Viena adora dançar.

2 thoughts on “O meu baile de debutante”

  1. Pois foi um prazer ver com os seus olhos debutantes e espírito maduro a grande festa vienense da apresentação das meninas-bem à sociedade. E oxalá conserve a camisa a par do texto. Que alguma coisa fica desse mundo que à maioria dos portugueses parece irreal. É sempre bom saber o que se faz e como, num mundo paralelo.
    E viva o rei Francisco José. O do cinema, par da Sissi da sétima arte. Porque eram lindos os dois e valsavam na perfeição.

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