Ninguém se despediu como Sócrates. Condenado pelos juízes, feito o discurso de adeus aos amigos, já a rude taça de cicuta à espera dos seus lábios, as últimas palavras de Sócrates rompem entre a vida e a morte: “Agora é tempo de partir. Eu para morrer, vós para viver. Quem vai para melhor nenhum de nós o sabe, sabem-no talvez os deuses.»
Poucas coisas são tão belas como a angústia da despedida. Foi o que pensei ao ouvir as vozes das Sopa de Pedra. Cantavam “Adeus, ó serra da Lapa. Ó minha terra, ó minha enxada, não faço gosto em voltar.” E não é verdade, faremos sempre gosto em voltar. A invectiva da despedida é quase sempre raiva de nos despedirmos cedo demais.
Para esse fulgurante segundo da despedida, o cinema inventa cenas que “são os olhos de uma rosa, parecem os do meu bem”. É mesmo dessa lassa e estremecida inclinação melodramática que eu gosto no cinema. E nas outras artes também. “Além daquela janela dois olhos me estão matando, matem-me devagarinho.”
Lembro cenas de filmes em que, devagarinho, me deixei morrer. “Teremos sempre Paris.” O excesso de nobreza que leva ao colo esta réplica de “Casablanca” é a mentira com que Bogart desiste do amor e entrega a estóica Ingrid Bergman à desgraçada virtude de Paul Henreid.
O aroma de “Stand By Me” é de adeus. Despede-se do que se despede, como eu me despedi do meu bairro de Luanda, como eu, copiando Richard Dreyfuss, me despedi da inocência e da infância: “Nunca mais tive amigos como os que tive aos 12 anos. Mas, oh meu Deus, alguém os voltou a ter?”
Toda a despedida é um sussurro. No meio da multidão em Tóquio, Bill Murray murmura ao ouvido de Scarlett Johansson uma frase, um rumor ininteligível: “Lost in Translation” e ainda bem.
Junto o adeus europeu ao adeus americano: em “La Dolce Vita”, Mastroianni despede-se da tão luminosa rapariga que lhe faz adeus na praia. Que estará ela a gritar? “Não se ouve”, diz ele, escolhendo o vazio. E só se ouve o mar. Em “The Searchers” na mais pungente das despedidas, John Wayne vira as costas à casa da família e avança para o deserto. Só se ouve o vento.
Cedo ou tarde, todos nos despedimos. Se um dia, e há-de ser um dia ou uma noite, se acabar esta crónica de cinema e vida, lembrem-me para dizer adeus com este verso: “Dou-te o meu lenço bordado quando de ti me apartar.”
a crónica é toda boa mas, se o não fora, a expressão que escolhe no final punha-a logo no zénite.
LikeLike
Veja só, Bea, o efeito que faz um lenço bordado 🙂
LikeLike
Que prosa mais bela, caro Manuel
LikeLike
Obrigado, caro Valdemar
LikeLike
Um adeus doloroso numa das últimas cenas, na prisão, no filme A Place in the Sun entre Liz Taylor e Monty Clift., antes dele se encaminhar para a cadeira eléctrica.
LikeLike
Bem lembrado, Albertino.
LikeLike