Todo o português é um Mark Twain, todo o português é um Rudyard Kipling. E antes que a ideia escorra a desbotar-se no parágrafo seguinte, juro ao leitor que, pelo português que já tanto sou, também mereço ser um bocadinho Twain e um bocadinho Kipling.
Falta dizer quem são ou foram estes Twain e Kipling. Twain era patrão de costa. Praticamente nascido num cesto a vogar sobre o Mississipi, o rio entrou-lhe pelos ouvidos e pelos ossos. O rumor das águas, as vozes dos escravos, a água a molhá-lo até ao fémur, colaram-lhe de amor a boca ao rio e não descansou enquanto não foi marinheiro o suficiente para ir ao leme de um barco a vapor a rasgar o fim do século XIX. Por acidente, foi também escritor.
Kipling foi, não o sendo, o último soldado do império britânico. «Um, dois, um, dois, esquerda… esquerda, direita volver», aprendeu a ser cadete e cantou o regimento que nunca teve em poemas como Gunga Din ou Mandalay. Nenhum soldado, capitão ou general os cantou ou cantará tão bem.
Ao leme não há Adamastor que apavore a incerta mão portuguesa, e estaria aqui, estaria a falar de impérios, se não tivesse prometido que vinha só falar do incêndio dos olhos que é o prazer de viajar.
E vejam, nem agora estamos a salvo do americano Twain e do colonialíssimo britânico Kipling. Eles viajaram à volta do mundo. Viajaram além e aquém dos séculos em que viveram, mostrando-nos que no tempo é que se viaja bem. Imito-os.
No dia 11 de Novembro de 1975, por aventurosas razões políticas que interessam tanto como um fiscal de linha num jogo de futebol, eu estava no Sumbe cercado pela UNITA e sul-africanos de que era inimigo. Tinha de fugir para Luanda que, por sua vez, estava cercada pela FNLA e os seus soldados de fortuna. Ali, naquela praia do século XX, só havia barcos a vapor de Mark Twain. “Go West”, gritava-me do século XIX a voz do escravo de Huckleberry Finn. Ainda hoje, essa viagem num barco de cabotagem é a mais epicurista das minhas memórias. Viagem de Angola ao Brasil, Atlântico dentro, eu ao leme a gritar ao Mostrengo: «Aqui ao leme sou mais do que eu / Sou um povo que quer o mar que é teu.» Viajei, glorioso, num barco que nunca saiu do cais.
No dia seguinte, já Angola independente, troquei Twain por Kipling. Vim dormir a Porto Amboim e na manhã de 13 de Novembro, antes de recuar para Luanda, vi o farol lá em cima do morro, na praia, as pedras do velho forte, e uma rapariga africana num silêncio sem desculpas a olhar o mar. Era, vinda de Kipling e de Mandalay, a minha rapariga birmanesa. Ter-me-á visto? E se me viu, terá ela pensado, no futuro que veio a ter, se algum futuro teve, que um dia evocaria a fugaz imagem de um perdido rapaz português, excrescência do império e de Kipling, à beira do mar em Porto Amboim?
By the old Moulmein Pagoda, lookin’ lazy at the sea,
There’s a Burma girl a-settin’, and I know she thinks o’ me
Belo texto!
Houve quem tivesse saído do cais rumo a esta terra num veleiro de nome Tartan. E deu um livro.
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Uma viagem que dá um livro, vale bem a pena…
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Não foi bem uma viagem, mas uma fuga à guerra em 1978. 4 adolescentes (!) num barco à vela…
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