Tá doendo em mim

De que outra coisa pode ter morrido ele que não fosse de saudades de seu pai? Sérgio Bittencourt morreu aos 38 anos, não muito depois de ter composto “Naquela Mesa”, canção que brota como hera, alindando a gloriosa coluna da morte de Jacob do Bandolim, seu pai. Artur, meu pai, também tocava bandolim.  Artur, como o polaco Jacob, que foi desaguar nas felizes águas do Rio de Janeiro, também imigrou, da aldeia beirã de Vale de Madeira para esse oceano de adobe e doce brisa de catinga e mandioca que era a pobreza esplendorosa do Sambizanga. Os ouvidos de Jacob regalaram-se a chorões e rodas de choro, os do beirão Artur a semba e merengues.

Ora, não é de nada disso que a minha incompetência quer falar. Quero só falar do que os meus ouvidos ouvem. “Naquela Mesa” foi cantada por uma legião de brasileiros que choram o lugar vazio do pai: juntem-lhes a minha alma lusíada que se desfaz na alma com que eles a cantam, seja a alma de Elizeth Cardoso, Nelson Gonçalves ou Zeca Pagodinho. Mas onde os meus pobres sentidos fecham os olhos e batem de cabeça nas altas janelas da lembrança, é quando a canta Zélia Duncan, acompanhada por Hamilton de Holanda ao bandolim e Nilze de Carvalho à viola.  Zelia canta “… naquela mesa tá faltando ele / e a saudade dele tá doendo em mim” e tudo se atrapalha no meu afogado corpo, mãos pelos pés, o descomandado coração, olhos que anunciam chuva tropical. Que outra canção pode, como a canção de ausência do pai, fazer com que nos transformemos em peregrinos perdidos no deserto desconhecido de nós mesmos?

E vejam, um americano encontrou-se.  Ainda não sopravam os ventos da I Grande Guerra e Ernie Burnett já ganhava a vida na América a compor canções. A sua mulher escrevia as letras. Criaram “Melancholy” e logo vem o raio do divórcio. Mas a Burnett não o largava a melancolia e voltou ao tema. Aprimorou-se e compôs “My Melancholy Baby”, a que um letrista popular, George A. Norton, deu as palavras. Foi um êxito. E vem a Guerra: o corpo artístico de Burnett bateu nas trincheiras e rigores de França. Um ataque de artilharia alemã pulveriza a sua posição. Recolhem os sobreviventes e Burnett é um deles. Está comatoso e sem a chapa de identificação, a que os americanos chamam, com humor canino, “dog tag”. No hospital de campanha recupera, mas fica em avançado estado de amnésia e sem que ninguém saiba quem é.

Pior, a sua chapa de identidade foi apanhada, solta, junto aos mortos. Dão-no como morto ou desaparecido. Morrera, parecia, o autor de uma canção que, no futuro, Judy Garland, Dean Martin, Sinatra, agora Michael Bubblé cantariam.

Ora, não sendo bem um Natal dos Hospitais, facto era que os americanos cuidavam dos seus combatentes em perda. Ao hospital onde estava o despardalado Burnett veio um pianista. Tocava para sublimar a tragédia acre de cada um, allegro e morfina para os sentimentos. O pianista viu na lista dos mortos o nome de Burnett. Disse aos homens estendidos nas camas da enfermaria quem era e que o ia homenagear. Desata a tocar “My Melancholy Baby”. Está o pianista a cantar os versos “afasta os teus medos/ sorri e não chores” e o anónimo e amnésico Burnett levanta-se da cama, aos gritos, “Esta canção é minha, esta canção é minha”, recuperando a memória e redescobrindo-se inteiro, nome, músico, reparando a ausência de si mesmo.

Décadas depois, a interpretação de um trio de génios, Charlie Parker no sax, Thelonius Monk ao piano, Dizzie Gillespie no trompete, faria dessa canção uma folha de veludo para os ouvidos de Deus.

Publicado em “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios 

Três bicas já frias

Tenho andando numa azáfama do caneco. Sabe-me a vulcão em erupção. Mas não sei se é bom para a minha idade. Assim como assim, deixei esfriar as bicas de há duas semanas. Aqui estão elas.

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Bica Curta servida no CM, 3.ª feira, dia 15 de Outubro

A Natureza

Por falar de natureza. O meu pai sabia coi­sas pelo vento, sol e nuvens, se ia chover, se era meia-noite ou meio-dia. Sou de uma gera­ção que soube tudo pelos livros. Muitos livros que li ama­vam o ar alto que roça o céu, a fímbria do mar, o capim do mato. Num livro do Oeste Sel­va­gem, “Desert Gol­d” de Zane Grey, litera­tura de ter­ceira classe, havia um índio yaqui que se fun­dia com a noite, com o rumor de um rio, com os cac­tos do deserto, num pan­teísmo de aven­tura e risco. Falhei a vida: eu nunca quis nem quero ser nenhum livro. Eu que­ria ser o índio – e hoje sei que nunca o serei.

E pronto, já falei de natureza – e do meu pai.

Bica Curta servida no CM, 4.ª feira, dia 16 de Outubro

Umas estátuas

E se o debate político bebesse um jarro de detox? Ou, à ordem dos meus avós Isaura e Brigas, fizesse uma purga? Queixamo-nos da língua grossa de André Ventura. Mas mesmo a linguagem do debate entre esquerda e direita democráticas é um estrugido de populismo.

Vítor Gaspar e Mário Centeno mereciam duas estátuas pela restauração das nossas finanças. Passos Coelho e Costa mereciam outra, a de Passos dois dedos maior do que a de Costa: tiraram-nos da bancarrota. Começar por saudar o óbvio no campo democrático talvez ajudasse a estancar a avassaladora suspeita de café, táxi e facebook de que os políticos são só e apenas corruptos.

Bica Curta servida no CM, 5.ª feira, dia 17 de Outubro

Qual fogo, qual nada

Apetece ir tomar a bica à universidade de Stanford nos Estados Unidos. Cientistas e engenheiros desenvolveram uma espécie de gel, à base de fosfato de amónio, que pode ser facilmente pulverizado em vastas áreas de floresta sujeitas a alto risco de incêndio, impedindo o aparecimento de fogos. Mesmo que venham chuvadas malucas o gel resiste e não deixa que o fogo se propague. Este gel dá beijinhos a Mário Centeno: é barato e fácil de aplicar. E dá beijinhos ao ambiente: não é tóxico, feito de produtos da indústria alimentar e médica. Basta pulverizar zonas de risco e a sua acção é garantida por meses. Nunca o fogo viu nada assim.

Do Not Go Gentle Into That Good Night

dylan
Dylan e Caitlin, sua mulher

A certas horas da noite a morte seduz e assusta-nos. Mas há convites a que não se pode ceder sem uma boa luta. Mesmo que o sonoro convite seja dito em “g” de gentle, consoante que o meu Aurélio diz ser fricativa palatoalveolar quando precede a vogal “e”, como é o caso neste poema de Dylan Thomas.

Gosto do ritmo, das rimas e do trovão de érres que se repete em  “Rage, rage against the dying of the light”.

Entre a doçura e a fúria, Thomas terá escrito este poema, inundado de vogais abertas, quando o pai adoeceu gravemente. Só o publicou depois dele ter morrido.

Vale a pena ouvi-lo na pessoalíssima voz (tão teatral) do poeta galês.

 

 

Pala ku nu abesa ô muxima

Hoje, se fosse vivo, o Artur faria 97 anos. Talvez por agora o Carlos Lamartine andar pelos 73, a idade em que o Artur me deixou, lembrei-me de o ouvir. Ouço-o a cantar a mais lírica das suas canções, Pala ka nu abesa ô Muxima, lembrando o dia em que, vindo da recruta na EAMA, encontrei a casa do Bairro Popular vazia. Fui ao musseque em frente e, numa boda, a Alice e o Artur dançavam. Que música? O Jesus Dialla ua Kidi, dos Águias Reais ou este som do kota Lamartine? A Alice e o Artur tinham essa particular característica de serem minha mãe e meu pai.