Bicas a sonhar com o futuro

space

 Estas foram as bicas servidas no CM, de 3.ª, dia 22, a 5.ª, dia 24 de Outubro

Um futuro feliz

Quero, hoje, beber a bica cheia com o cineasta Francis Coppola. Tem 80 anos e anda a montar a produção de um filme, “Megalopolis”, que vai mostrar a raça humana em rumo a um futuro mais feliz.

Delírio de um velho? Também já vou para velho e estou 100% com ele! As visões catastrofistas dos progressistas regressivos negam a realidade. Coppola tem razão: o mundo é hoje muito melhor do que há 80 anos. Há menos miséria e fome, menos mortos em guerra, mais igualdade de mulheres e homens, menos mortalidade infantil. “Megalopolis” vai celebrar a inteligência humana. Confiem nos velhos: já viram e experimentaram muitas vezes o futuro.

Duas mulheres

Pode alguém tomar a bica curta no espaço? Temos de perguntar a Jessica Meir e Christina Koch, astronautas americanas que saíram da nave espacial em que viajavam e mergulharam no vazio para substituir baterias de 100 quilos que pifaram, digamos assim, dias antes. Pela primeira vez, duas mulheres, sem nenhum astronauta masculino a fazer par, flutuaram no cosmos durante sete horas. Do espaço, a 420 km do Brexit, da Catalunha, do novo governo de António Costa, viram a Terra rodar a cada 90 minutos, o Sol pôr-se e nascer, olhos postos no infinito.

Duas mulheres caminharam no espaço e fizeram, bem, o trabalho que tinham de fazer.

Um dedo no olho

Lá vai Jerónimo de Sousa, formoso e não seguro: acerta em tudo mesmo se se engana.  Meteu um dedo no olho do grande capital, culpando-o de esganar o PCP. Ora, o drama de Portugal é não beber a bica cheia com o capitalismo.

Chama-se unicórnio às empresas tecnológicas que valem mil milhões de dólares, essenciais para a riqueza de um país. Na América estão 49% dos unicórnios. Na China, 24%, A Inglaterra e a Índia têm 5%. A Europa está no fim da bicha e Portugal tem três unicórnios. Eis o que nos falta: a Europa tem de ser um pólo do capitalismo, eixo para criar e distribuir riqueza. Isso é que é espetar o dedo no olho do populismo.

Apocalypse Now

Já passaram mais de oito anos. Volto a esta crónica, a mais fiel das crónicas ao modelo que me propus seguir no Expresso: nela se misturam os filmes e a livre evocação dos filmes, os filmes e os livros ou a vida que lhes deu corpo e alma. Não sendo mentira, esta crónica é injusta: falta-lhe, do filme, o rio que o barco de Sheen sobe, falta-lhe a corrente de consciência que a voz off inscreve em Sheen e nos espectadores que o contemplam. E falta-lhe, da vida, ajustar o retrato que nela se dava da Europa, que o Kurtz de Conrad já não amava, e da América que o Kurtz de Coppola, de tanto a amar, desprezava.

Kurts

Apocalypse Now

Francis Coppola e Marlon Brando gritavam maus modos um ao outro na selva filipina que lhes fingia de Vietnam. As filmagens estavam paradas há dias e a espessa indecisão que os aturdia cheirava a apocalipse. Milhões de dólares escorriam das folhas das palmeiras e batiam nas pás dos helicópteros que atroavam os ares. Olhava-se e via-se que aquilo era o Cinema.

Coppola e Brando discutiam um fim para a personagem de Kurtz desencantada no Heart of Darkness, de Joseph Conrad. Queriam que a personagem do filme coincidisse ponto por ponto com a do livro. E coincidia, na forma estranha que as coisas têm de coincidir em cinema.

No livro, pai meio-francês, mãe meio-inglesa, Kurtz era europeu e trabalhava para uma companhia belga. O Kurtz do filme era americaníssimo, coronel de tropas especiais, o comando com que o marechal Spínola sonharia a napalm e Shakespeare.

No livro, Kurtz arrancava marfim das profundezas do Congo com métodos que enchiam o espaço de uivos inumanos; o Kurtz do filme sacudia o Vietnam com uma guerra heterodoxa, de corpos trucidados e de impiedade amoral. Movidos pelos mais nobres ideais de civilização, ambos os Kurtz se fundiam com os nativos, regressando a uma pureza selvagem que confirma Rousseau como o idiota útil que de facto foi. Os dois Kurtz eram iguais como gotas de água, só que um era a gota de água europeia e o outro a gota de água americana.

Ah sim, num ponto Coppola e Brando desesperavam: que fim dar a Kurtz? No romance, Conrad envia Marlow, seu alter-ego, buscá-lo ao coração das trevas. Marlow recolhe-lhe o corpo mirrado, admira-o e deixa-o morrer, um gutural “o horror, o horror” a assombrar a noite.

Mas Coppola e Brando tinham vontade de ritual e sangue. E, com aquelas dores metafísicas que só os americanos sabem ter, perguntavam-se: deve ser o Destino ou um Punhal a pôr fim ao inferno a que os nobres ideais conduziram Kurtz?

No Cinema, quando o cinema é de milhões e de sonho, tudo se consegue: de 1902 e do céu desceu um helicóptero com Joseph Conrad. Fúnebre mas ainda bem conservado. Falou e disse: matem-no!

Matar Kurtz, explicou-lhes Conrad, não só é legítimo, como corrige o meu erro no romance. Matá-lo, não lhe altera a identidade; faz é de Marlow um assassino, o que jamais, jura Conrad, eu lhe poderia ter feito. Mas podia, confessou-lhes o escritor, ter dado a Marlow a coragem de dizer a verdade à noiva que Kurtz deixara na Europa. A Europa que essa noiva era, se ela tivesse sabido, teria sabido a violência convulsa que fora o Poder de Kurtz, o primitivo cortejo de crimes, os espectros bruxuleantes no nevoeiro da selva, as caveiras empaladas, o negríssimo rosto da aventura. A noiva saberia que, na hora da morte, Kurtz a esquecera e não pronunciara o seu nome.

Coppola e Brando ouviram Conrad e perceberam já ter fim para o seu Apocalipse: tudo o que a Europa não diz ou à Europa não se diga, é a verdade violenta da América, a sua arte. A Europa não diz, a América mata: no fim o imenso corpo de Kurtz tinha de ser despedaçado à catanada.

Sheen