Do marinheiro Cão ao marinheiro Conrad

porto de luanda
Eu tinha 15 anos adolescentes quando esta fotografia foi tirada. Largo Diogo Cão, o porto de Luanda ao fundo.

Os mais desolados dias da minha linda adolescência passei-os a olhar-lhe enfadadamente a estátua, no largo a que deu o nome. A meio caminho entre o melhor prego no pão do mundo (uma carne que se desfazia, julgo que por lhe juntarem o leite das canas de mamoeiro) e o cais principal do Porto de Luanda onde ia sacar as wrangler, as levis, as revistas americanas e, com o meu pai, nos almoços do Príncipe Perfeito ou do Infante D. Henrique, comer laranjas de casca colorida, que me pareciam doces como o mel, ao contrário das sumarentas, mais mais verdes e amargas laranjas angolanas.

Ele estava ali, erecto, mais orgulhoso e solitário do que imperial, no meio do largo, exposto à maresia e ao que de pombos é muito pior. Olhava-o, desde 29 de Junho de 1959, com a distância composta em partes iguais de cortesia, respeito e leve desdém de ele não ser nem Gama, nem Magalhães.

Hoje, o largo ainda lá está, ele não. Arrumado entre relíquias e franjas rotas de um passado sonolento, deixou de ver o mar e talvez nem saiba que a wikipédia o comemora em efeméride (que creio falsa na data e o que importa!) que me dá vontade lhe fazer vénia. A 6 de Julho de 1484, os olhos de um capitão de mar português, Diogo Cão, encontraram-se com a esplêndida, velocíssima, boca do rio Congo.

Olhos e boca juntaram-se: um odor queimado. Ardia, ali, no passado, o coração do futuro. O capitão de mar Diogo Cão fez o que a História diz que fez. Aventurou-se no Atlântico, escutou a inextricável fala do desconhecido, cumprindo a vontade do Infante e o plano megalómano de uma minúscula Nação. Mas nas veias do capitão de mar Diogo Cão corria um sangue que antecipava outro sangue, um sonho que sonhava outro abstracto sonho.

A 6 de Julho de 1484, o português Diogo Cão aflorou os lábios abertos do Rio Congo sabendo que, mais do que um império, começava a escrever um romance. Diogo Cão beijou a boca, um polaco, Joseph Conrad, chupar-lhe-ia o escuro coração. Primeiro publicado em revista, depois em livro, dava o século XX os primeiros passos, o polaco que cantou a língua inglesa com pureza a rondar a loucura, publicou Coração das Trevas, o romance de um rio cujo mistério passou do marinheiro Cão ao marinheiro Conrad.

Ambos subiram o rio. Diogo Cão só até Matadi. E até Matadi também Conrad, onde chegou em 1890, cinco séculos depois do português. Iria mais longe: o polaco prosseguiu a peregrinação, passando por Kinshasa, numa viagem de febre e horrores que o seu “Diário do Congo” relata.

Sem essas voltas biográficas será que poderíamos algum dia ter lido a história de Kurtz que Marlow, e não Conrad, nos conta até se calar, por já não serem dele os sons que, música espessa e irrespirável de uma noite equatorial, lemos assim:

He cried in a whisper at some image, at some vision—he cried out twice, a cry that was no more than a breath—“The horror! The horror!

Diogo Cão, a julgar que descobria mundos, não podia imaginar que as velas portuguesas e a cruz de Cristo também abriam caminho para o coração das trevas.

3D Book Coracao das Trevas
Adoro esta edição. Tão bem traduzida por Maria João Madeira. Não há nada mais bonito.

Apocalypse Now

Já passaram mais de oito anos. Volto a esta crónica, a mais fiel das crónicas ao modelo que me propus seguir no Expresso: nela se misturam os filmes e a livre evocação dos filmes, os filmes e os livros ou a vida que lhes deu corpo e alma. Não sendo mentira, esta crónica é injusta: falta-lhe, do filme, o rio que o barco de Sheen sobe, falta-lhe a corrente de consciência que a voz off inscreve em Sheen e nos espectadores que o contemplam. E falta-lhe, da vida, ajustar o retrato que nela se dava da Europa, que o Kurtz de Conrad já não amava, e da América que o Kurtz de Coppola, de tanto a amar, desprezava.

Kurts

Apocalypse Now

Francis Coppola e Marlon Brando gritavam maus modos um ao outro na selva filipina que lhes fingia de Vietnam. As filmagens estavam paradas há dias e a espessa indecisão que os aturdia cheirava a apocalipse. Milhões de dólares escorriam das folhas das palmeiras e batiam nas pás dos helicópteros que atroavam os ares. Olhava-se e via-se que aquilo era o Cinema.

Coppola e Brando discutiam um fim para a personagem de Kurtz desencantada no Heart of Darkness, de Joseph Conrad. Queriam que a personagem do filme coincidisse ponto por ponto com a do livro. E coincidia, na forma estranha que as coisas têm de coincidir em cinema.

No livro, pai meio-francês, mãe meio-inglesa, Kurtz era europeu e trabalhava para uma companhia belga. O Kurtz do filme era americaníssimo, coronel de tropas especiais, o comando com que o marechal Spínola sonharia a napalm e Shakespeare.

No livro, Kurtz arrancava marfim das profundezas do Congo com métodos que enchiam o espaço de uivos inumanos; o Kurtz do filme sacudia o Vietnam com uma guerra heterodoxa, de corpos trucidados e de impiedade amoral. Movidos pelos mais nobres ideais de civilização, ambos os Kurtz se fundiam com os nativos, regressando a uma pureza selvagem que confirma Rousseau como o idiota útil que de facto foi. Os dois Kurtz eram iguais como gotas de água, só que um era a gota de água europeia e o outro a gota de água americana.

Ah sim, num ponto Coppola e Brando desesperavam: que fim dar a Kurtz? No romance, Conrad envia Marlow, seu alter-ego, buscá-lo ao coração das trevas. Marlow recolhe-lhe o corpo mirrado, admira-o e deixa-o morrer, um gutural “o horror, o horror” a assombrar a noite.

Mas Coppola e Brando tinham vontade de ritual e sangue. E, com aquelas dores metafísicas que só os americanos sabem ter, perguntavam-se: deve ser o Destino ou um Punhal a pôr fim ao inferno a que os nobres ideais conduziram Kurtz?

No Cinema, quando o cinema é de milhões e de sonho, tudo se consegue: de 1902 e do céu desceu um helicóptero com Joseph Conrad. Fúnebre mas ainda bem conservado. Falou e disse: matem-no!

Matar Kurtz, explicou-lhes Conrad, não só é legítimo, como corrige o meu erro no romance. Matá-lo, não lhe altera a identidade; faz é de Marlow um assassino, o que jamais, jura Conrad, eu lhe poderia ter feito. Mas podia, confessou-lhes o escritor, ter dado a Marlow a coragem de dizer a verdade à noiva que Kurtz deixara na Europa. A Europa que essa noiva era, se ela tivesse sabido, teria sabido a violência convulsa que fora o Poder de Kurtz, o primitivo cortejo de crimes, os espectros bruxuleantes no nevoeiro da selva, as caveiras empaladas, o negríssimo rosto da aventura. A noiva saberia que, na hora da morte, Kurtz a esquecera e não pronunciara o seu nome.

Coppola e Brando ouviram Conrad e perceberam já ter fim para o seu Apocalipse: tudo o que a Europa não diz ou à Europa não se diga, é a verdade violenta da América, a sua arte. A Europa não diz, a América mata: no fim o imenso corpo de Kurtz tinha de ser despedaçado à catanada.

Sheen