
Podem apagar a luz ao mundo que não haverá nenhum negro como este. Falo do negro, esse fundo negro, donde Caravaggio faz emergir a sua La Cattura di Cristo. Entra-se na prosaica National Gallery, em Dublin, terra de nevoeiros e sombras, e na placidez de uma sala assombra-nos este negro, o mais brilhante negro que já vi em toda a minha lamentável vida.
Um negro irreproduzível, por exemplo, na net, nesta rede que nos junta. Por mais “fiel” que uma reprodução seja, e na net não há nenhuma, a luz, a textura, a soberania do negro de Caravaggio só podem ver-se vendo o próprio quadro. Vale a pena ir a Dublin só por isso.
Não me lembro já onde, mas sei que um dia, talvez aqui, escrevi que a luz, em Caravaggio, não vem de lado nenhum. Mas donde é que lhe vêm estes profundos, retintos negros que assustam a noite, a própria natureza, negros capazes de apavorar a escura mente de um psicótico?
Ninguém ilumina como Caravaggio. Pode até sugerir-se que, nesta Cattura di Cristo, a luz vem da esquerda alta. Fraca consolação que os factos desmentem. Caravaggio nunca precisou da luz de Deus. A luz não vem de fora iluminar o quadro: insolente, delinquente, Caravaggio pintou a sua própria luz, cada quadro seu sendo um universo auto-suficiente. Por exemplo, à direita de La Cattura di Cristo há um paisano que levanta uma lanterna, confundindo as fontes de luz que se queiram atribuir ao quadro. Que esse paisano seja, como garantem os especialistas, o auto-retrato de Caravaggio, que pecador ali mal se confessa, não me parece um acaso nem pequena ironia. Os rostos de Cristo e Judas são duas lâmpadas acesas no centro (ligeiramente deslocado para a esquerda) deste quadro e, para policiar violentamente a noite, acendem-se – mas como é que é possível se é negro sobre negro? – as armaduras de metálico negro dos soldados romanos.
Drama de luz, Caravaggio delicia-se e atormenta-se também com o drama figurativo. No centro o beijo, a traição (que outra coisa pode um beijo ser?) de Judas ao Salvador.
Num quadro em que todas as personagens, sete homens, estão animadas de um movimento convulsivo, o Cristo é quase passivo, um faça-se em mim segundo a vossa vontade. Mas a boca húmida de Judas está tão próxima e o hálito da traição é-lhe tão insuportável que Cristo não resiste a um ligeiro trejeito de desgosto dos lábios e a um involuntário desvio da cabeça que foge ao hediondo aroma do denunciante. Só o silencioso estalar dos seus dedos encavalitados e das mãos violentamente cruzadas confessam o seu desespero.
Mais à esquerda, num movimento que o isola do resto da cena, Caravaggio pintou um grito. O grito. Pobre Munch! Ao grito, Caravaggio, deu o corpo de João, o mais amado dos discípulos. É um grito sufocado, o terror de uma boca desmesuradamente aberta, só para respirar, como a boca aterrorizada de uma garoupa fora de água. O olhar vítreo e esgazeado do animal que teme pela sobrevivência, braços levantados, falanges insuportavelmente esticadas, à beira da fractura, pintadas a piedade e pânico, revolta por dentro, medo por fora.
Esta La Cattura di Cristo até na sua história externa é dramática. Obra encomendada, em 1602, pelo Senhor da nobre casa Mattei, esteve perdida duzentos anos. Comprada por um escocês, terá passado a privadas mãos irlandesas que, num gesto de reconhecimento pelo apoio dos jesuítas à morte de um independentista da família, a doaram à comunidade de Santo Inácio de Loyola, em Dublin. Suspensa na parede central do refeitório, ali ficou esquecida, passando por ser uma das cópias de Gerard van Honthorst, até que um dos jesuítas convocou dois especialistas italianos de Caravaggio. Autenticada a autoria em 1993, não sem peripécias rocambolescas mais recentes, com o aparecimento de uma cópia capturada pela polícia alemã e anunciada como o original, a tela de Michelangelo Merisi, nascido em Caravaggio, que recebeu 150 scudi pelo quadro, como consta dos documentos encontrados na casa do marquês Ciriaco Mattei, converteu-se no ex-libris da boa colecção de pintura europeia da National Gallery.
É uma ironia histórica um quadro de beijada traição ter ido parar à Irlanda, pátria oprimida em que a independência gerou também iniquidade, suspeita e informadores. Há um Caravaggio, negro e trágico, numa pátria de densas noites de nevoeiro e conspiração, punhais, beijos e silenciosas denúncias.
Jamais pensaria a pintura de Caravaggio a apontar-nos o caminho da devoção. A disposição crua, prosaica e política dos rostos, dos gestos, dos cheiros é a assumpção, por Caravaggio, da arte como ofício auto-suficiente, distanciando-se de toda a teologia ou mesmo opondo-se, e radicalmente, nesse século XVII, a qualquer réstea de funcionalidade religiosa.
Apoio-me na minha mitologia manuelina: gosto da figura de um homem só consigo mesmo. É o que vejo em todos os Caravaggio e, em particular, na Cattura deste homem que outro trai e os demais abandonam. Nos homens que Caravaggio retrata já só há uma humilde e desamparada humanidade. Intranscendente. Caravaggio devia saber. Matou com as próprias mãos.
É um dos meus favoritos, o claro-escuro que ele criou e inovou, foi imitado depois pelos denominados caravaggistas, seguidores da sua técnica; gostava de aparecer como figurante nos suas telas, como uma assinatura, lá está ele, na parte superior direita a observar a Captura de Cristo, mas sem gritos, sereno e confiante nas suas capacidades!
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Obrigado Albertino pela precisão…
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