
Quando filmou One From the Heart (1982), Coppola era o centro do mundo. Vinham vê-lo peregrinos alemães (Wenders, Herzog, Syberberg), franceses (Godard e Berri), ingleses (Michael Powell), jugoslavos (Makavejev), russos (Bondartchuck), sem esquecer os prolongamentos orientais de que Kurosawa é o exemplo maior. O mundo convergia para Hollywood e um plateau da Zoetrope, o estúdio de Francis, bastava para o conter. Mundo e palco pareciam ser uma e a mesma coisa: Do Fundo do Coração não faz senão encenar essa semelhança.
O texto que se segue foi escrito para ser lido depois de se ver o filme na Cinemateca. Sem o filme à mão…

One From the Heart acende-se como a luz. A ideia de que estou perante um filme novo é uma evidência irreparável. Tanto se me dá como se me deu que isso custe aos que só conseguem ver o “novo” numa história novinha em folha e que, por isso, consideram (o que dou de barato) que a “história” de One From the Heart tem respeitáveis barbas. Tanto se me dá como se me deu que isso custe aos que só conseguem descortinar o “novo” em cinema de “pura ruptura” e que nem sequer admitem que o filme que “conta uma história” possa ser novo.
One From the Heart é novo na arte de criar simultaneidades temporais, é novo no modo como “viaja” de um espaço a outro, e é novo mesmo no modo como associa a música à imagem — o que quer dizer que é também o mais belo (senão o único) melodrama desta década.

A história, repito, poderá ser a mais velhas das histórias — num tempo em que todas as histórias já foram contadas, porque não houve nenhuma que não lembrasse ao diabo — mas nunca ninguém se tinha lembrado de contar a velha história de One From the Heart à velocidade da luz. Em One From the Heart, quando se passa de uma cena à outra, não se passa necessariamente de um plano a outro. De resto, em One From the Heart não se passa. A simultaneidade das opções não se imagina, não se deduz nem se infere: vê-se. E vê-se logo.
No mesmo plano (conceito arcaico altamente insatisfatório) chocam-se, por exemplo, as infidelidades de Hank e Franny. Mais ainda, e essa é a suprema audácia, não chega a ser certo que seja a efectiva infidelidade recíproca que vemos: é possível que estejamos a ver a ideia dessa infidelidade, tal como a avisada consciência de cada um dos amantes a projecta.

Para ser sincero, pouco me interessa que Francis Ford Coppola tenha sido o primeiro a contar assim uma história e as ideias dessa história. Esse sublinhado era apenas um recurso retórico. Agora que ele a tenha contado, pela primeira vez, à velocidade da luz e com tão belíssima felicidade, só não é tão bonito como quando se descobre pela primeira o amor porque isso foi Griffith e foi Ford (no cinema, o amor foi descoberto duas vezes pela primeira vez), muito embora continue a dar a mesma vontade de morrer.
Há pessoas a quem o facto de Coppola ter feito irromper o “novo” através de meios “novos” provoca um risinho nervoso. A mim dá-me uma espécie de satisfação silenciosa e apaixonada. Ponho-me à escuta e dou a palavra a Coppola: “Aplicar e fazer um novo uso da tecnologia — um novo modo de fazer um filme — poderá implicar uma nova maneira de pensar um filme. Há uma nova área de conteúdo das histórias que se torna acessível através de uma nova tecnologia… Ainda não descobri um nome para isso: ‘cinema electrónico’ não é na verdade correcto e uma coisa como ‘videovision’ soa a campanha publicitária. Testar tudo através dos écrans de vidro, manipular os cenários e as cores, ver muito antes do tempo, de certo modo, como é que tudo irá surgir no grande écran. De modo curioso e talvez contraditório, o uso de um maior número de técnicas torna a realização de um filme mais pessoal. Não é preciso ser-se tão abstracto agora.
Na verdade, disponho agora dos meios que me permitem sentar-me e trabalhar como se fosse um romancista, ou seja, praticamente sozinho, trabalhando na minha imaginação aquilo que o filme poderá vir a ser. Estou obviamente a encurtar a explicação, mas a pura verdade é que posso sair da minha sala de trabalho directamente para a sala de projecção e vê-lo”.

As coisas grandes e novas nunca parecem grandes e novas, o que talvez explique o gigantesco flop comercial que foi One From the Heart. As coisas grandes e novas parecem sempre pequenas e familiares, parecem muito simples e sem consequências, e só se dá conta delas quando já transformaram tudo à nossa volta. Sucedeu com One From the Heart onde não só tudo é familiar, como tudo o que vemos só podia ser como vemos que é. Essa impressão de necessidade é um brasão de nobreza. Por exemplo, vermos que tudo foi filmado em estúdio, com a reprodução de uma Las Vegas em miniatura que rivaliza em perfeição com o original, leva-nos a pensar que todo o cinema devia obrigatoriamente ser feito em estúdio e que o contrário é uma detestável perversão.
Também nos esquecemos que normalmente, no cinema, para cada cena, se prepara uma determinada iluminação e passamos a acreditar comovida e candidamente que, num filme, a iluminação é musical e deve ter uma linha melódica que sirva o ritmo das emoções, como na cena em que Frederic Forrest “dirige” os carros da Reality Wrecking como quem dirige uma orquestra, ou na prodigiosa manhã que se segue à noite de amor com Nastassja Kinski, ou nessa comovente “desafinação” que é a canção de Hank no aeroporto, ou por fim (no exemplo que deve sempre ser o último argumento de quem esteja perdidamente apaixonado pelo filme) na pequenina e deliciosa fantasia que é o regresso de Teri Garr a casa: a incrível intimidade da cena, desse impossível regresso, faz com que a vejamos menos com os olhos e mais com as mãos, como se o filme nos viesse, feito caixinha de música, parar às mãos.

One From the Heart é o conflito entre a luz e a escuridão, entre o dia e a noite, entre a cidade e o deserto. Claro que, por causa disso tudo, é também o filme do conflito entre as cores: “o conflito entre a púrpura-azul-verde, cores da introversão, e o vermelho-laranja-amarelo, cores da extroversão, é reavivado. O filme é a representação, pelas cores do espectro cromático, das emoções e dos estados de alma que caracterizam os momentos da nossa vida…” disse Vittorio Storaro, o director de fotografia. Ainda mais belo que o estudo cartesiano das paixões, acrescento eu.
Tão belo como os mais belos Minnelli no tratamento da cor, One From the Heart reencontra o esplendor do melodrama na fabulosa música de Tom Waits e Crystal Gail, complemento sonoro (melhor seria dizer, um alter-ego) no novo tipo de profundidade de campo inventado por Coppola (a profundidade de campo em Orson Welles é “newtoniana”, enquanto no Coppola de One From the Heart é “einsteiniana”)… Mas para quê reivindicar mais méritos formais? One From the Heart é ao mesmo tempo o teatro, a fábula, o conto de fadas, a prestidigitação de um plano em que Nastassja, feita “circus girl”, desaparece como “spit on the grill”. Como se não bastasse o fogo-de-artifício de tanta ilusão.