Destruir Nova Iorque é como apagar o “Cântico dos Cânticos” da Bíblia. Nova Iorque transmite ao mundo uma energia tão sublime como “os beijos da tua boca, amor melhor do que o vinho”, que o amado e a amada reciprocamente louvam no “Cântico”. Lembro-me da minha primeira vez, antes desses aviões-bomba que pulverizaram as Torres Gémeas, muito antes deste vírus que agora enterra nova-iorquinos em valas comuns.
Foi, primeiro, um toca-e-foge, em 1986. O avião bateu no JFK e eu, em trânsito, vim espreitar a rua, cinco minutos de cá fora, antes de entrar noutro portão e apanhar o vôo para Los Angeles. Encostados ao interminável passeio, estavam ali, num amarelo de Van Gogh, os táxis de Nova Iorque, o inocente, insolente e impassível yellow cab. Olhei e, milagre do cinema, vi que havia um ocioso Robert Mitchum, mesmo um nervoso De Niro, encostados às portas dos carros, à espera. Três meses depois, voltei. Estava Dezembro com um pé na chuva e outro na neve e faltariam três renas para o Natal, se assim se pode dizer.
Apascentava o ar a pomba, a alegria das corças que inspirou a Salomão o seu “Cântico”, e o braço direito do amor apertava os humanos contra si. E eu entrei, pela primeira vez, no yellow cab de Nova Iorque. O taxista arranjou maneira de enfiar quatro estranhos no seu táxi. Lembro-me que, banco de trás, entrei em Nova Iorque com a fria manta das sete e meia da manhã aos ombros, a coxa direita encostada à esquerda de uma morena, a esquerda à direita de uma loira – há vantagens em ser-se portátil e encaixarmo-nos bem na doçura e aconchego juvenis de um táxi que invade Manhattan.
Não se entra em nenhuma cidade como se entra, pela primeira vez, em Nova Iorque: fundem-se a grandeza e o pormenor, a sofisticação e o trivial, o arranha-céus e o esgoto, o céu e o fumo do chão. Em Nova Iorque temos a certeza de que a reincarnação é a única explicação para a vida humana. É a primeira vez e reconhecemos cada cara negra, branca, porto-riquenha, eslava ou chinesa que passa. Dizem-nos “honey” como se sempre tivéssemos fumado qualquer coisinha juntos. Já os vimos, mesmo sem sabermos onde os vimos. Todas as ruas por onde passamos nos fazem soltar o ah! de espanto de quem, nostálgico, se exalta com o regresso às ruas da sua infância, mesmo que tenhamos vivido a infância num musseque de Luanda, como eu vivi a minha. Já vivemos ali, sem sabermos que outra vida possamos ter vivido que não seja essa vida que lembramos, cruzando-a de táxi, espantados por a termos esquecido.
A cidade que acorda, os outros carros, as bicicletas, as jovens mulheres que correm, os homens agitados parecem ser uma invenção da nossa mente, uma liberté de espírito, um sonho ou o filme que a nossa cabeça dirige. É o nosso olhar, olhar que espreita pelas janelas molhadas de um táxi (há poucas coisas molhadas de que se goste tanto como das molhadas janelas de um yellow cab!), é o nosso olhar, dizia, que inventa, cerebral, Nova Iorque.
A Nova Iorque vivida atrás do vidro molhado de um táxi é indestrutível. No bolso, a chave (ainda havia chaves) do primeiro hotel de que já me esqueci do nome, em Grammercy Park. Talvez tenha sido só um sonho, como o do poeta inglês Coleridge, que visita o paraíso e lá colhe uma flor, mas ao acordar percebe, num sobressalto, que tem na mão a flor. Talvez Nova Iorque seja como o paraíso desse sonhador. Por via das dúvidas, enquanto escrevo, seguro na mão a chave do quarto de um hotel dessa cidade com sabor a maçãs, que nenhum terror, bombas ou vírus, há de desfazer.
Crónica publicada no Jornal de Negócios