
Quem é que daria um milhão de dólares para matar qualquer um de nós? Ninguém, em seu pleno juízo, claro. É o que pensa James Bond, quando um dos seus superiores o avisa de que uma organização sinistra oferece essa redonda soma pelo seu belo cadáver. “Mas quem é que pode querer matar-me?” E o boss responde-lhe: “Maridos ofendidos, chefs ultrajados, alfaiates humilhados, a lista é interminável.”
Um célebre pensador avisou-nos de que a única coisa necessária para o mal triunfar é os homens bons nada fazerem. Menos optimista, o Evangelho de Mateus diz-nos que o Senhor, na sua omnisciente amoralidade, fez o sol levantar-se sobre os bons e os maus, a chuva cair sobre os justos e injustos. E o facto é que o célebre pensador, morto e enterrado há mais de dois séculos, já o comeram as larvas, enquanto os inabaláveis sol e chuva insistem na sua visita diária a eiras e nabais.
Reconhecemos o mal nas páginas da grande História, difícil é reconhecê-lo ao balcão da pastelaria, no humilde assento do metro. Hitler à direita, Estaline e Mao à esquerda, asseguram-nos a equitativa distribuição ideológica do Mal. São potestades, mas há emanações mais triviais e humanas, o pequeno PIDE anti-comunista, o torturador da DISA que o marxismo empolgou e fuzila até os ex-camaradas.
Mas vejam agora o mal que veste saia-casaco, luvas, sapatos de salto alto e passeia de malinha no braço. Chama-se Cathy Ames e se sai à rua já é só de óculos escuros que a protejam do sol que o Senhor fez brilhar sobre Bem e Mal, justiça e injustiça.
Qual Atena de Zeus, Cathy nasceu, inteira e armada, da cabeça do escritor John Steinbeck, em “A Leste do Paraíso”. Não conheço mais nenhuma personagem, da literatura ou do cinema, que incarne o mal de forma tão absoluta. Em menina, finge uma violação para que três rapazinhos sejam punidos e chicoteados. Leva ao suicídio o professor de latim e mata pai e mãe incendiando a casa onde cresceu.
A crueldade de Cathy é deliberada e premeditada, milimétrica, fonte de satisfação solitária e incomunicável. Onde está a origem emocional desse aleijão. É aleijada da cabeça ou do coração?
Prostitui-se. Espancada quase até à morte por um chulo, é salva por dois irmãos. Um, casa com ela, e logo ela o trai com o outro, na que seria a noite de núpcias. Dá à luz dois gémeos e abandona os filhos e a casa, baleando o marido que a quer reter.
Acolhe-se a um amável bordel, seduz a Madame e envenena-a, tomando o poder e convertendo o bordel num antro de sadomasoquismo. Fotografa e chantageia: o deputado que chora como uma mulher e pede chicotadas, o professor de filosofia com gosto pela água da latrina, o pregador de igreja que se satisfaz na dilacerante dor e a queimadelas de fósforos. Ao filho, que a descobre e visita, diz com petulância: “Preferia ser um cão a ser humana.”
Nada mais a move ou comove que não seja infligir a dor, usar a sexualidade para causar ansiedade, angústia e desamparo. Eis a cara do prazer de Cathy, contemplar o seu poder sobre o corpo e a vida de alguém. É este o mal, crueldade servida em lençóis de seda numa sórdida casa de putas.
Todos temos medo, um medo quente. O medo de Cathy Ames é um medo gélido, irracional, servido sem a brisa da compaixão. Só uma vez, em “A Leste do Paraíso”, Cathy experimenta o medo humano e racional: quando o chulo a bate para a matar. Perdido o controle do outro, fica vulnerável à dor física. Deter o controle será a devoção e obsessão da sua vida. Talvez a obsessão pelo controle seja, então, o mais claro indício do mal.
Publicado na minha coluna no Jornal de Negócios
Tenho de rever “A leste do paraíso”. Não me lembro dessa encarnação do mal assim tão detalhado. Mas a crónica está um espanto.
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Bea, vai ver que encontra tudo o que digo e muito que não sou capaz de dizer na primeira parte desse Steinbeck.
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