Blog de escrita e de reflexão lúdicas. Um lema: chatices não!
Author: Manuel S. Fonseca
Eis a felicidade: estar sentado num fim de tarde de Verão, na mesa um fino estarrecedoramente gelado e um prato de jinguba. E Deus sentado, ali ao lado, sendo certo e sabido que Deus é Amor e só Amor.
Dia 10 de Abril. Hoje a Guerra e Paz editores faz 17 anos. Para mim, é uma idade tenra e, até, concupiscente: quando eu era miúdo, os filmes para maiores de 17 eram a porta de entrada para o quarto escuro das grandes ousadias, para esses filmes em que se via ou dizia o que até aí era suposto não vermos, nem dizermos, fosse pela índole sexual, fosse pela alusão política ou religiosa.
A Guerra e Paz editores não precisou de ter 17 anos para dar a ler e dizer, com total liberdade, tudo o que quis dar a ler, do divino Marquês de Sade a D. H. Lawrence e à sua «Lady Chatterley» ao «Manifesto Comunista», dos rebeldes Marx e Engels, e «Mein Kampf», do odioso Hitler, ou o pequenino e feroz livrinho do ditador Mao. Isto, só para falar de flores eróticas ou tragédias políticas.
Aos 17 anos, a Guerra e Paz editores é – e continuará a ser – uma editora livre para escolher o que quer publicar. E queremos publicar livros que sejam uma grande aventura intelectual: as Novas Edições de Jorge de Sena, ou o nosso primeiro Atlas português, o «Atlas Histórico da Escrita», de Marco Neves. Queremos publicar livros que não se rendam: agora Isaiah Berlin e Thomas S. Kuhn, amanhã a «História do Fascismo», do grande Emilio Gentile. Sim, privilegiamos a aventura e a emoção. O lema rimbaudiano das «Iluminações» que também vamos publicar – a ciência, a elegância, a violência – não é estranho aos nossos 17 anos.
Hoje, 10 de Abril de 2023, é dia de beijos e abraços: para quem aqui trabalha, o Ilídio, Zé, Carla, Américo, Inês, Mário, Maria José e Rita; para os meus sócios, António Parente e Pedro Nabinho Henriques, por acreditarem, e para o Abílio Nunes e António Palma, que é como se fossem sócios; para os nossos excelsos autores, com estrondoso aplauso; para os nossos tradutores, revisores e paginadores; para o nosso distribuidor, a VASP e para as combativas e resistentes livrarias portuguesas; para as gráficas com que trabalhamos, sempre a Publito, também a DPS e a ACD; para antigos trabalhadores e antigos sócios, a quem também devemos o que hoje somos.
E acima de tudo para os nossos leitores. Sem os leitores, sem a curiosidade insaciável deles, sem os incansáveis olhos que devoram páginas e se exaltam, choram, riem, sonham a ler os nossos livros, nós não valíamos dez réis furados. Que os vossos olhos nunca se cansem, que a vossa sede de emoção e de conhecimento nunca vos largue. Obrigado pelo vosso amor à Guerra e Paz.
Era a viúva e a sua mala, no aeroporto de Lisboa. Eu, sentado ao lado dela, no autocarro que nos levaria até à escada do avião. “E depois?” me perguntou ela na sua doce sintaxe brasileira. Disse-lhe que teríamos de subir a escada do avião carregando as nossas malas de mão. “Moço – desabafou, então – as saudades que tenho de viajar com meu marido. Nunca peguei mala. Ele na frente, carregando saco e eu, viu, como borboleta, lhe seguindo, falando, rindo, saltando. Ai, a saudade desse marido.”
E já suspendo a comunicativa viúva brasileira, para lembrar, não o marido morto dela, mas o estudo recente da Universidade de Pádua: a viúva, quando o marido morre, é como se lhe tirassem um capacete sufocante e húmido de cima. A viúva tem muito menos stress do que a mulher casada. O risco de depressão tomba ali uns 23%. O viúvo, esse sim, sofre: um camião de medo de ficar sozinho e abandonado, sem a sua última cuidadora. Já a viúva, consciente de que há um bom naco de vida depois do marido, vê na morte do impotente um alívio: desaparece o risco de ter de o limpar como quem limpa o rabinho a meninos.
E nem sequer vou fazer a maldade de arriscar uma analogia, vá lá, uma analogiazinha com a famosa aranha, a viúva negra. Mas recordo que a “viúva negra” seduz o macho, faz com ele amor, se assim se pode dizer, e logo a seguir o come, ou seja, devora, numa sequência de “meet, fuck, eat” irrevogável e irreversível.
E volto à saudade nordestina da minha viúva brasileira. Evocava os anos que viveu com esse marido, e vinham pelo mundo, viajando, carregados de malas para visitar o filho que agora está no Porto vindo dos Estados Unidos, ou o outro que mora em Paris. E a viúva desdobrava o seu amor por esse homem potente, que lhe fazia filhos e carregava, como Hércules, todas as malas. Estávamos ali, no autocarro que nos levaria ao avião, e a minha viúva brasileira, essa tez de pele que dá a mistura dos genes brancos, pretos e índios, voz musical, no rosto uma carga de alegria e esperança bem com a vida, que a Universidade de Pádua agora detectou em todas as viúvas, e só me saía a lembrança silenciosa da personagem da actriz Manuela de Freitas, no “Passado e o Presente” de Manoel de Oliveira. Já se esqueceram? A personagem da Manuela, uma viúva profissional, só se apaixonava pelos maridos depois de eles morrerem, para desespero do vivo marido com quem estivesse casada.
Perguntei à viúva nordestina, se vinha em viagem de luto desse viúvo prestável, límpido carregador de malas. “Moço, há quanto tempo, esse marido já morreu!” Demorou uns segundos e retomou: “Quem morreu, faz uma semana, foi meu segundo marido.” Eu ouvi e, meu Deus, agora que faço? Dou os pêsames? Já a minha viúva, com seu travo de samba baiano, se ria. Ri junto. “Como o moço se chama?” E eu disse, “Manuel como todo o português”. E ela: “Manuel, agora veja, esse segundo marido estava ao meu lado, levou a mão ao peito e tombou sem um pio.” E logo a viúva destressada abre o telemóvel e mostra a fotografia: “Veja, era esse negão, 34 anos, um cara a exalar saúde; eu com 60 e me morre nos braços.” E continuou a rir, como bem manda o estudo da Universidade de Pádua. “Ao seu lado?” remoí eu. “Manuel, seria muito pior se fosse ao lado de outra, né?!”
Com aquela sufocada timidez que qualquer Manuel tem ao lado de uma eufórica viúva brasileira, sacudi o macambúzio portuga que dorme em mim. Disse-lhe: “Em homenagem a seus viúvos, eu carrego sua mala na escada do avião, mas a senhora jura que não me pede em casamento.”
Os meus livros de Abril Quero a revolução, mas também quero comer tteokbokki
Quantas, quantas revoluções é que já Abril abriu? Festa della liberazione para os italianos desde o fim da II Guerra Mundial, como já fora o mês das Teses de Lenine, em 1917, Abril é o mês que dá nome à revolução sul-coreana de 1960 (a 4.19 혁명), e foi, em 1974, o berço da nossa Revolução dos Cravos. E eu quero, e já vos convido para comerem comigo, um prato de tteokbokki. Adiante.
E aqui estamos, no mais cruel dos meses, como num verso, o primeiro de The Waste Land, lhe chamou o conservadoríssimo T. S. Eliot, aqui estamos com os livros de Abril na mão. O primeiro, da autoria de Zélia Oliveira e de José Matos, explica-se com transparência e ambição no título. Em Rumo à Revolução: OsMeses Finais do Estado Novo, vamos voltar a ver, agora com pormenor, rigor e drama q.b., a demissão de Costa Gomes e Spínola, o livro Portugal e o Futuro, e os quartéis em brando aquecimento com aquele fogo que arde e não se vê. Eis o rumor de fundo que já atroava aos ouvidos de Marcello com dois ll, eis as Caldas que se erguem para logo murchar.
E vejam o mais cruel dos livros, O Príncipe, de Maquiavel. Como não se pode deixar esse implacável e nobilíssimo livro sozinho, juntámos-lhe um dos mais belos ensaios político-filosóficos de Jorge de Sena, Maquiavel de seu nome: dois livros num só, contra todas as formas de tirania, o Sena e Maquiavel que a Guerra e Paz juntou.
De uma tirania que sucumbiu ao peso do sangue, suor e lágrimas dos combatentes da liberdade fala-nos um investigador do Porto, Henrique Varajidás, que escreveu A Vertigem Nazi: Fins e Meios no Regime de Hitler. A excelente capa do Ilídio Vasco faz justiça a uma tese invulgar, que começa nesta pergunta: que relações estabeleceram os nazis com as elites e com as massas alemãs?
E respiro. Respiro eu e respiram as páginas com a leveza de versos que se podem ler à janela ou à beira-mar. De Filipa da Rocha Nunes, um livro de estreia poética, couro fresco, dividido em dez partes que vão de «norte» a «vermelho», passando por «céu» e «terra». De Dinu Flamand, o poeta romeno que António Lobo Antunes tanto ama por tanto o Dinu amar Portugal, publico Cadeira à Janela, que leva na capa uma ilustração de Amadeo, e que tem por subtítulo «Lisboa, Diário da Quarentena». E já a seguir, já a seguir, o pratinho de tteokbokki…
Nem Balzac, nem Kafka comeram algum dia tteokbokki. Desculpem a fácil ironia, mas nenhum livro de Kafka é mais divertido, por absurdo e surreal, do que o romance Amérika, e talvez em nenhum livro Balzac se tenha aproximado mais de Portugal do que em Ferragus: Chefe dos Devoradores (a não ser em O Pai Goriot?). Dois clássicos, Kafka na colecção Admirável Mundo do Romance, Balzac nos nossos Clássicos Guerra e Paz. Mais clássico só o tteokbokki na Coreia.
Contemporâneo é o romance de Domingos Lopes, Sequei e Morri Sem Ter Sentido Que Morri. É um torrencial monólogo de uma mulher portuguesa comunista, que se revê sem filtros no Partido. Que vertigem a assalta, ainda bela, atraente, rejeitando o sexo? Quem quer sexo é Min, a protagonista de O Fedorento, romance de Rosemary Tonks, falecida há poucos anos, e que os leitores ingleses redescobriram agora, prestando-lhe o estranho culto que é lê-la muito, lê-la toda.
Para ler devagar e bem estudar é a biografia de João Dotti, gestor na FISIPE e na CUF, obra escrita por Myriam Gaspar, que integra as Histórias de Liderança, uma colecção em parceria com a Fundação Amélia de Mello, com o apoio da Nova School of Business and Economics.
E está já ali o prato de tteokbokki. É só passarmos por um livro incomensurável. Thomas S. Kuhn, o autor do tão belo AEstrutura das Revoluções Científicas, morreu há quase 27 anos. Deixou um livro só agora publicado. Chamaram-lhe The Last Writings, mas eu, que gosto de títulos quilométricos, preferi o título que Kuhn escolhera: A Pluralidade dos Mundos: Para Uma Teoria Evolucionista do Desenvolvimento Científico, um livro de ciência e de filosofia. Lição de Kuhn, que nos convida a aprender a «traduzir»: é muito difícil imaginar a vida mental dos outros e muito fácil perder-se a verdade na passagem de uma mente para a outra. É uma jóia da colecção Os Livros Não se Rendem, parceria da Guerra & Paz com a Fundação Manuel António da Mota e com a Mota Gestão & Participações.
E agora sim, tragam os pauzinhos. Está aqui o prato coreano que vos prometi. Chama-se Quero Morrer, mas Também Quero Comer Tteokbokki. É um romance? É! Não é um romance? Não, não é! Ficção e realidade, este livro tem uma autora, Baek Sehee. Deprimida, insegura, fechada sobre si mesma, a autora quis ir ao psiquiatra. As conversas com o psiquiatra, os apontamentos no seu diário, iluminam este Quero Morrer. Tanto que, num T0, debaixo da manta, tal como a autora, de repente o que queremos é Comer Tteokbokki. Ui, que fome. E que prazer de ler. É Abril, o mais cruel dos meses…
A palavra “glorioso” aplicada ao SLB – sim, quando alguém diz “o Glorioso!” – não é qualificativo hiperbólico, mas sim uma forma humilde e escassa de nomear a realidade. Não me espanta que um pai ou uma mãe tenham orgulho de levar ao colo o seu filho ao Estádio da Luz, tal como Maria e José apresentaram Jesus, ainda menino, aos sábios do Templo.
O Glorioso acabara de ganhar, por 5 a 3 ao Real Madrid, a segunda Taça dos Campeões Europeus. Eu vivia em Luanda e soube que o Benfica viria visitar-nos. O meu pai prometeu levar-me ao Estádio dos Coqueiros. O Benfica veio e lá fomos para o peão, então pouco mais do que um aterro. Ia ver o jogo aos ombros do Artur, meu pai, se queria ver alguma coisa, mas a alma benfiquista comoveu-se: os espectadores clamaram – o miúdo tem de ver o jogo com dignidade! – e, de mão em mão, sentaram-me no alto muro do estádio, com vista ampla para o pelado. A nação benfiquista de Angola, pegando em mim ao colo, pôs-me num trono, de onde vi, pela primeira vez, Eusébio, Coluna, Simões, a ganharem, por 5 a 3, como se Luanda fosse Amesterdão, à selecção local.
O meu primeiro Benfica, entrou-me pelos olhos de menino – e nesses olhos ficará para sempre. Ora, poucos anos depois, de novo em Luanda, o Glorioso entrou-me já digo por onde. Eusébio tinha posto a Inglaterra a seus pés, naquele Mundial de que tanto me lembro dos seus golos como dessa lágrima de guerreiro que ele enxugou com a camisola de Portugal, no final do injusto jogo com Inglaterra, o mais injusto dos jogos injustos. Eu vira tudo, em filme, no cinema Império, mas agora ia poder vê-lo, a ele, a Coluna, Torres, José Augusto e Simões, no velho estádio dos Coqueiros.
O mais velho Abílio, meu melhor amigo lá do bairro, trabalhava na DTA, a companhia de aviação de Angola, a quem cabia dirigir o aeroporto. Sportinguista embora, o meu amigo era de uma generosidade cristã, e disse-me: “Vem comigo e vamos esperar os teus jogadores à pista.” Fomos.
Saía-se do avião, não havia cá mangas a não ser as da camisa, e caminhava-se pelo asfalto até à gare, que era mesmo ali a 100 metros. O avião aterrou, puseram a escada e eles desceram, eram para aí umas 8 da noite, já Luanda tinha jantado.
O senhor Otto Glória e o senhor Coluna, o imenso Mário Coluna, vinham à frente. E logo a seguir, o senhor José Augusto, o senhor Simões e o senhor Eusébio. Eram todos senhores, de uma elegância irrepreensível. Os jogadores, esses jogadores do Benfica, vestiam-se bem. Fatos elegantes, gravatas alinhadas. Um bálsamo que dava asas à imaginação do olho humano.
E, no entanto, eis o que me deixou siderado: quando a porta do avião se abriu e eles começaram a descer, uma onda de perfume inundou a minha pituitária. O Benfica cheirava bem, aroma divino, e entrava-me pelo nariz.
Otto Glória e Coluna desciam das escadas e com eles avançava um fragrância que refrescava o capacete da húmida noite tropical. Eu não sei se era a Eau Sauvage da Dior ou se era a colónia da Avon, perfumes desse tempo. Eu inalei: cheirava a Benfica. Aqueles jogadores tinham o que, na altura era o melhor que se podia dizer de um homem, tinham categoria. Encheram de perfume a noite africana de um miúdo que tinha a mania que era hippie e que queria um mundo melhor. Os meus mitos de saco-cama, semanas sem banho e muito cheiro a cavalo sofreram, à escada de um avião, o mais vigoroso desmentido. O mundo melhor, o melhor dos mundos, podia ser sauvage, podia ser floral, mas tinha de cheirar bem. Lição do Glorioso. Lição de classe.
Não sei se vai ser polémico, não sei se terminaremos todos nos braços uns dos outros,mas sei que a apresentação e debate das NOVAS EDIÇÕES DE JORGE DE SENA vai ter anjos e demónios,revelações miraculosas, duas ou três alusões impuras e um erótico rumor de fundo. É a grande literatura a encher a sala do Grémio Literário. Às 18:30, 3.ª feira, dia 28 de Março Venham, se faz favor: Eugénio Lisboa, Margarida Braga Neves e António Carlos Cortez esperam-vos. Jorge de Sena, também.
Boa tarde a todos. Quero agradecer ao director da Cinemateca, José Manuel Costa, de quem fui camarada uma dúzia de anos, nesta bela instituição, entre 1980 e 1992, o convite para partilhar convosco as minhas impressões sobre a escrita de João Bénard da Costa.
Sobre a figura do João, sobre a sua aura encantatória, já muito escrevi, e falei até, nesta mesma sala, há uns bons anos. A minha paixão irredutível e incondicional é conhecida, pelo menos daqueles que sabem que eu existo. Ao abrir este livro monumental, a minha paixão, se é que algum dia hibernou, reacendeu-se logo, pondo até em risco de incêndio as mil e uma páginas deste livro. Deixem-me, então, falar do que vi e do que penso.
É logo à página 11. E há de surgir mais vezes nas 999 páginas que os escritos de João Bénard da Costa ocupam neste volume 5. O que surge é o filosófico espanto de João Bénard com o milagre.
O João está a falar do cineasta alemão Pabst e do filme “A Boceta de Pandora” e os seus olhos pequeninos e brilhantes descobrem Louise Brooks.
Oh meu santo Deus, a boca do João abre-se rasgando a sua barba branca, o pulposo lábio de baixo já a brilhar com aquela saliva a que João César Monteiro chamou baba divina, e sai-lhe a expressão “o milagre Brooks”.
Qualquer um, agnóstico, ateu, pode usar a palavra “milagre”, mas quando Bénard fala de “milagre” e explica que o milagre de Brooks, o milagre de Lulu, são planos e cenas de beijos, de espelhismos, de dança, de costas nuas, momentos fulgurantes, choques sufocantes, a partir dos quais percebemos melhor por percebermos que nada se pode perceber – e eu repito, “percebemos melhor por percebermos que nada se pode perceber” – sabemos que a natureza do milagre, para o João Bénard, é de natureza cristã, católica mais precisamente.
E sabemos que esse milagre vem nimbado de uma transcendência que o uso trivial da expressão “milagre”, por um agnóstico a descambar para o ateu como eu, em nada cobre.
A escrita de João Bénard é sempre boa, mas ainda é melhor quando o anima essa tinta negra do mistério, essa aceitação exaltada, hagiográfica, do “não perceber”, mas “não perceber” de coração satisfeito, feliz, erótico muitas vezes.
O João recusava, já se vê, a vocação totalitária da escrita progressista que tudo quer explicar e encerrar numa História fechada, numa Filosofia sem arestas. Era, avant la lettre, por exemplo, uma escrita anti-woke.
E já voltaremos ao milagre e ao catolicismo bénardiano.
Neste livro, à página 13, ainda Bénard está em cima de Pabst, ou seja, ainda Bénard está em cima de Louise Brooks, mas já a falar do “Diário de uma Mulher Perdida”, quando descobre nela, na sua lábil carne, no seu olhar tão carregado de tormenta, relâmpagos e sombras, o que o João chama “o desejo do desejo” e o “desejo de pureza”. Estão lá, em Louise Brooks e estão lá juntos esses dois desejos, como gémeos siameses.
O João está a falar da sequência de beijo-orgasmo-desmaio de Louise Brooks e diz que dessa actriz, do corpo dessa actriz, do sopro vital que a anima, saem, enlaçados, e cito, “maldição e bênção”, “revelação e perda”, “início e fim”.
A escrita de João Bénard é, como se pode perceber, não uma escrita dicotómica, mas uma escrita fusional.
Fusão de todos os desejos, busca desse momento pré-Big Bang em que génesis e apocalipse estavam tão sexualmente acoplados como Pai, Filho e Espírito Santo o estão nessa divina orgia a que os cristãos chamam Santíssima Trindade.
E deixem-me juntar ao catolicismo de Bénard uma outra influência ou sombra tutelar. A esse catolicismo, a meu ver com mais cambiantes do padre Teilhard de Chardin do que Emmanuel Mounier, – e digo isto como vingança, porque fui leitor encantado, na adolescência, de Chardin, e sempre me irritou Mounier – João Bénard tem uma desvairada e amorosa empatia com Jorge de Sena.
Jorge de Sena foi a improbabilíssima síntese de um filosófico humanismo cristão, de um lado, com uma admiração por Marx, do outro, o que fez dele um marxista, mas um marxista estranhamente sempre em luta, de Santo Guerreiro contra o Dragão da Maldade, com o partido comunista.
Poucos intelectuais portugueses o partido comunista terá detestado tanto como Jorge de Sena.
Que eu saiba esse partido, de simpática festa anual na Atalaia, Amora, Seixal, dedicava uma semelhante acrimónia ao João, embora mais discreta.
Mas o que me interessa focar é uma semelhança geracional na estratégia de escrita nos textos ensaísticos de Jorge de Sena e nos de João Bénard. Como em raros casos na crítica e historiografia de cinema, a escrita e o pensamento de João Bénard exibem um comparativismo que roça ombros com o modelo seniano. Se Sena era uma mestre de literatura comparada, Bénard é um mestre do cinema comparado.
Vejam ou leiam, por exemplo, o que o João escreve sobre o “Accatone”, de Pier Paolo Pasolini. Aqueles olhinhos piscos do João parecem, como os olhos de Sena, os olhos poliédricos de uma mosca, que tudo alcançam em 360 graus.
Os olhinhos de mosca do João começam por entrelaçar as pernas de Pasolini e de Visconti, e aí está o João a mostrar que há em “Accatone” vislumbres do “Rocco e Seus Irmãos”, que há, no “Accatone” citações do “Ossessione”. E depois, O João põe Pasolini de mão dada com Jean-Luc Godard.
O João pede ao Godard se não se importa que ele sobreponha o plano da morte do protagonista de “Accatone” ao plano da morte de Belmondo no “A Bout de Souffle”. E eu sei, resquícios do meu velho e esquecido cristianismo, que o turbulento Godard foi agora lá acima, de propósito, de Jean-Luc para João, dizer-lhe que não se importa e até agradece.
Ó mas se fosse só isso. Logo a seguir, o João já está a olhar para os enquadramentos pasolinianos, vê os anjos de pedra, a composição dos “grupos de família”, as casas esventradas, os pés e os corpos de homens em luta numa rixa.
O olhar do João cola-se a esta multiplicidade caótica, quer dar-lhe uma unidade estética e, com a sua vocação nada maniqueísta, confunde e funde Pasolini com a pintura do final de trecento e do princípio de quatrocento, para depois, naquela sua vontade de “deixa-te lá de meiguices”, arriscar a provocação, chamando os génios de Giotto e Masaccio em seu auxílio, tudo culminando na erotíssima identificação de Accatone, o protagonista de Pasolini, com o “Cristo Morto” de Mantegna.
Ou seja, a hiperbólica pulsão comparativista, só ao alcance da grandessíssima erudição, só ao alcance do universalismo, só ao alcance do não-fundamentalismo, é o poderoso cordão umbilical que liga Bénard a Jorge de Sena.
Sei do que falo. Nesta mesma Cinemateca, era eu um dos meninos da programação de João Bénard (e mesmo que os meus queridos amigos José Manuel Costa e João Lopes, me chamem um lambe-botas, direi sempre que eu era o mais bénardiano desses inocentes aprendizes, até por que eles já tinham um estilo próprio e eu nunca tive estilo nenhum) … mas então, o João chamou-me e mostrou-me um camião de caixotes com papéis de mil comunicações. Eram as apresentações que, nos anos 50 do século passado, ingentes intelectuais portugueses tinham feito dos filmes das 3.ªas feiras Clássicas no Jardim Universitário das Belas Artes. Mandou-me organizar aquele material. Aguenta-te M.S. Fonseca.
Tive uma ideia brilhante e que marcaria o resto da minha vida: publicar aquela montanha de comunicações por autores e começar por Jorge de Sena. Na verdade, a ideia brilhante não foi minha, limitei-me a adivinhar o que o João queria.
E até o que o João já fizera no Tempo e o Modo. E é, por isso, que hoje sou editor de Jorge de Sena.
Agora mesmo vou editar um pequenino livro, um ensaio chamado “Amor”, que nunca foi publicado em edição individual, só em antologias.
Não digo isto para vos vender esse livro – peço-vos desculpa, mas tenho de mostrar ao João Bénard a capa desse livro do Jorge de Sena para partilhar com ele o meu puro gozo. João, aqui está a capa: obrigado por me ter ensinado a fazer livros.
Peço desculpa por este momento de assédio erótico, mas este livro, “Amor”, é, para a manifestação do erotismo e da sexualidade na literatura portuguesa, um livro que poderia ser de João Bénard da Costa. Nele se encontra, além da literatura, como nestes escritos do João além do cinema, a história das ideias, a histórias das religiões, a pintura, todas as outras artes.
Por total empatia com Jorge de Sena, empatia geracional, empatia intelectual e filosófica, no João há uma vontade de estetização do mundo.
Na literatura, Sena quis limpar a língua portuguesa do sarro neo-realista, do miserabilismo, das palavras com cueiros, erguendo a língua literária a uma ambição universal, disparando convictamente contra esse espantalho simplista que pretende que a “arte deve representar realisticamente a sociedade”.
Os textos de João Bénard sobre cinema são a gloriosa expressão da mesma luta. João Bénard santo guerreiro contra o dragão da maldade, nos seus textos concretiza uma magnífica e pasmosa, como ele gostava de adjectivar, objectificação estética dos ideais, essa objectificação que as almas espantadas, inquietas e insatisfeitas perseguem, buscando ideais de sonho, ideais de harmonia, ideais da mais cândida ou pungente erotização. E essas almas espantadas, inquietas e insatisfeitas são as de todos os que estamos nesta sala, a minha e as vossas.
Disse tudo isto, mas ainda só estou na letra P deste 5.º volume. Dou um grande salto, para a página 226, já na letra R, e eis que à cristianíssima adoração do milagre, que faz de Bénard um irmão de espírito de Dreyer, a esse milagre se junta o amor e a emoção, com a condição, a exigência, de que a emoção possa ser tanto física como espiritual ou as duas coisas ao mesmo tempo.
A “Johnny Guitar”, letra R, de Ray, Nicholas Ray, o comparativista João Bénard chamou “A Imitação de Cristo” dos cinéfilos, e eu nem me atrevo a tocar no corpo amado de Johnny Guitar, corpo que só se incendeia ao olhar e à delicada língua do João.
Escolho da letra R, a cena que é para mim a mais bonita de todo o cinema de Nicholas Ray: Mitchum, herói de rodeos, agora coxo, abandona as arenas, os cavalos e…, começa a cena, vêmo-lo a chegar a uma casa abandonada. Rasteja para debaixo da sacada da casa e tira uma caixa velha onde escondera, em miúdo, uma pistola, um livro, uma revista e dois níqueis. Mitchum, o coxo e vencido Mitchum, rasteja para a sua infância numa cena tão comovente como solitária: nos escritos, tantos escritos de Bénard, eu vejo o João a rastejar em busca da mesma memória consoladora da infância, em busca desse calor que um dia ele terá escondido debaixo da casa, debaixo da cama, para poder voltar mais tarde a essa memória, a esse calor, um calor que talvez seja o calor da sua Arrábida, calor que ele transportou e tanto amou e tanto chorou em “How Green Was My Valley”.
E volto aos milagres, a essa inundação de milagres que ensopa a página 923 e seguintes.
São os milagres de cada filme de Rossellini, de “Il Miracolo” a “Viagem a Itália”.
Na pg 946, na “Viagem a Itália”, em plena procissão dedicada à Virgem Maria, perante o milagre de um paralítico que larga as muletas e recupera o andar, Rossellini filma a estarrecedora reconciliação de George Sanders e Ingrid Bergman: milagre, também.
O pouco mais do que adolescente, quase homem, João Bénard foi ao cinema Eden, numa tarde de Outono, tarde de muita luz e muito sol. Viu esta cena, presenciou o milagre e, diz ele, “No fim do milagre desatei a chorar.” Onde os descrentes do cinema, os descrentes da objectificação estética dos ideais se riem, está o João a chorar. Lendo-o, neste volume 5, voltei a chorar com ele.
Julgo que o João Bénard andou toda a sua vida de cinéfilo, de historiador e, acima de tudo, de escritor – porque o João é um portentoso escritor – o João andou à procura de um milagre, o milagre da verdade que cega. Uma verdade que cega, que cegue tanto como quando olhamos directamente para o sol. O João encontrou a verdade.
Eis o milagre que cada texto de João Bénard da Costa soletra: nos textos do João percebemos melhor ao percebermos que nada se pode perceber. A verdade do cinema é indizível, a verdade do João é inaudível.
E é nessa solidão, nessa intimidade do deserto, a mesma que vamos já ver, a seguir, no “Bitter Victory”, que é bom ler o João. E o João conduz-nos ao que há de mais essencial, à contemplação e devoção. Cito o que o assombrado Godard disse, depois de ver o “Bitter Victory”:
“O que é o amor, o medo, o desprezo, o perigo, a aventura, o desespero, a amargura, a vitória? Qual a importância disso, quando olhamos as estrelas?”
Sozinhos, com os escritos do João na mão, a lê-los, é como se estivéssemos no mais fabuloso deserto a olhar as estrelas. Obrigado, João, pelo milagre.
Ah, se um dia a brigada juvenil do reumático woke põe os olhinhos naquilo, o João está bem tramado. O João é o João Bénard da Costa e aquilo são os milhares de textos que ele publicou em vida, e que a Cinemateca reuniu. Vão já no volume 5, que me convidaram a apresentar. Reli tudo com devoção canina e logo farejei transgressão, subversão e iconoclastia.
Leiam o Bénard. Está ele a falar de “Lusty Men”, e do protagonista, Robert Mitchum, cavaleiro em rodeos, domador de cavalos, e cito: “Tenho estado a falar de cavalos e cavaleiros. Mas inevitavelmente, a comparação entre cavalos e mulheres surge muitas vezes ao longo da obra e Susan Hayward não é, certamente, a mais fácil das montadas que Mitchum encontrou na vida fora.”
A prosa do João não é domável. Salta, escoiceia, dá pinotes e parte, por vezes, a louça toda. Vejam, houve um dia em que fomos à Embaixada de Itália, recepção em honra de Antonioni, com Manoel de Oliveira a acompanhar.
E já me engano que a história começou antes, quando Antonioni se espantou com uma colecção que Luís de Pina, director da Cinemateca, fazia: coleccionava miniaturas de sanitas e bacios. Também Antonioni gostava de penicos. O João lembrou-se de um, autêntico, uma preciosidade do Palácio da Pena, em Sintra. De louça portuguesa, a rainha Dona Amélia guardava-o onde ainda hoje está, debaixo da cama. Partimos em romaria turística.
A visita, porém, era de lotação limitada. Só deu para o João, o Antonioni e a minha mulher entrarem. Ficou o Luís de Pina cá fora, a cigarrear, e eu a fazer-lhe companhia. O pior é que a visita era à porta fechada: mal fecham as portas, o Antonioni, claustrofóbico, por ter vivido meio clandestino num quarto, no final da II Guerra, solta um grito e procura uma saída. Aparece-nos, a mim e ao director Pina, de uma alta janela, logo seguido pela minha mulher. O Luís e eu apanhámo-los pelas pernas e ajudámo-los a descer.
Ora, está o Bénard a contar tudo isto ao Embaixador, com a sua transbordante verve, quando um dos braços dele, ganhando a autonomia de um cavalo do Robert Mitchum, se larga e estilhaça uma cristaleira divina. Ninguém se magoa, toda a gente se ri e foi uma noite de prazer, com Manoel de Oliveira a contar anedotas de alentejanos e Antonioni a contar barzelletti de carabineiros. Tudo coisinhas deliciosas e atrozes que fariam, hoje, desmaiar a brigada woke.
Mas o que interessa é que, no ano seguinte, o Bénard volta ao lugar do crime. E está, agora, a contar à plateia encantada toda a história e como o braço dele deu a volta e espatifou a bela cristaleira. A plateia está delirante e o braço do Bénard também: roda no ar e, com a exacta memória do que tinha feito no ano anterior, catrapum-zás-trás, arrebenta, estoira, estrancilha de novo a bela cristaleira italiana.
Voltou o Bénard à Embaixada de Itália? Voltou, mas dois adidos, o cultural e o comercial, ladearam-no, vigiando rigorosamente a distância dele ao mobiliário, oferecendo o corpo a gestos mais largos e destravados, que a Embaixada de Itália não é propriamente a arena de um rodeo americano.
E ainda me lembro de ter almoçado com o João e a Claudia Cardinale. No fim do almoço, ala para o aeroporto, que a Cardinale estava à justa para o avião. No aeroporto, a Cardinale descobre que perdeu o bilhete. No balcão, o João pede atenção especial à térrea hospedeira e diz-lhe: “É uma VIP. É a Cardinale.” E logo, a prestável e informadíssima menina: “A Cardinale? A do circo?”
Não se riam, a menina tinha razão: ou alguém acha que a Cardinale não era uma fera?!