
Aterrei em Lisboa, no Outono de 1973, com uma excitação conquistadora. Vinha, de Luanda, estudar Direito, mas com excepção de dois assistentes meninos, Marcelo e Jorge Miranda, aquilo cheirou-me a um agreste deserto cultural. Eu queria era poemas, canções – acabava de sair um LP com Chico e Caetano ao vivo – finos gelados no Paco, ao pé da Gulbenkian em dias do ciclo Rossellini, ou no corredor e cave da Alga, encostada à Avenida de Roma, aberta de madrugada.
Numa noite de 1973, fomos, dois rapazes e duas raparigas, ouvir Zeca Afonso. Prometia cantar numa pequenina sala do Centro Nacional de Cultura, ao lado do Teatro São Luiz, na Rua António Maria Cardoso, a que a sede da PIDE dava mau nome. Encontrámos uma frenética António Maria Cardoso de jeans, muitos cabelos compridos, tudo gente com pernas e olhos cheios de bicho-carpinteiro.
Chegámos e soubemos: afinal, o Zeca não cantaria. Era estranho, porque tínhamos a ideia de que o Zeca queria cantar: quanto mais escura fosse a noite, mais ele queria cantar. A quem tenha esquecido lembro: Zeca fora proibido de cantar. Usava-se, então, muito a palavra «proibido», termo que teria caído em desuso, não fosse tê-lo resgatado o actual escol identitário, a turbamulta do género, da racialização, as vestais da ecologia, para não falar dos activistas que querem voltar a fazer da universidade um antro de obscurantismo.
Era de noite, e enchíamos a António Maria Cardoso, e como tanto era proibido Zeca cantar, como era proibido ouvi-lo, do lado sul estava já a polícia de choque. Tínhamos recuo, claro, pelo Chiado.
E eis que a pequenina e canora multidão se agitou, soltando os bichos-carpinteiros num bruá alarmado. Façanhuda, mas sobretudo organizada, a polícia de choque, com irrepreensível geometria, limpava a rua a viseira e cassetete: não tinha nada que enganar, nós, lírios do campo, íamos ser trigo limpo.
O meu amigo e eu entendemos proteger as nossas melómanas e inocentes amigas e fizemos meia-volta em direcção ao Chiado por onde tínhamos entrado. E não é que o capitão dos hirsutos choques de ferro e fogo tinha pensado a mesma coisa?! Quem seria o capitão? O Maltês, que eu, nos meses seguintes, encontraria na Praça do Chile, Rossio, Largo do Rato, na Alameda Universitária?
Sei é que a limpa entrada pelo Chiado era, agora, uma farpadíssima saída. Nós, cândidos filhos da madrugada, pensámos o que se pensa quando, de tão apertadíssimo, nesse sítio escuro que o sol não ilumina não cabe um feijão: «Filhos da puta!» Eram! Fingindo-se magnânimos, tinham deixado entrar uma carrada de malta jovem, sonhadora, para uma rua amena, e agora caíam-nos em cima, sem nos dar o alívio de uma saída.
Os choques malhavam sem estados de alma. Avançámos, que remédio. Fosse pelo que fosse, connosco escolheram o imprevisível. Pelo berro que o meu amigo deu, pela súbita contração que fez de mim uma formiga fora do carreiro, os choques falharam as bastonadas. Passámos ilesos. Os brutos, olhar cego ao género, acertaram em cheio nos delicados pescoços das nossas amigas. Para nossa viril vergonha foi nelas que eles arriaram com tudo. Nas noites de vampiros, nenhum pescoço se salva.
Consolámo-nos numa das sessões da meia-noite do Lauro António, no extinto Apolo 70. Na noite em que não ouvi Zeca Afonso, vi pela primeira vez «As Quatro Noites de um Sonhador» que o jansenista Robert Bresson roubou ao torturado Dostoievski. Havia no filme uma canção brasileira cantada sobre um Sena em que passava um bateau-mouche. Naquela Lisboa, o remédio era sonhar com Paris.
Estranhamente desse filme do que me lembro bem é do tema, cantado por um Marku Ribas de quem nunca mais ouvi falar.
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E por essas alturas em que era de bom tom proibir, em 71 ou 72, estreei-me a ver o Couraçado de Potemkin em Económicas, ao Quelhas. A cantina à cunha, um Pide amante de cinema à porta e eu, do alto dos meus 13 ou 14 anos a pensar por onde fugiria se houvesse chatices. Proibir. Quanto mais se proibe mais apetece. Alonguei-me. Sorry.
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A canção de que falo é do Markus Ribas. E fez muito bem, Gonçalo, lembrar o Potemkin. Boa lembrança.
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Excelente texto, como sempre. Um abraço.
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É muita gentileza sua. Obrigado pela visita
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Pobres, pobres lírios do campo. Não ouviram o Zeca e apanharam um susto daqueles. O texto está à Manuel S. Fonseca, um mimo. Ai como eu gosto do Zeca, mesmo sem nunca o ter ouvido ao vivo.
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Obrigado pelo mimo ao mimo 🙂
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