
Ao pé deles, mesmo doze deputados do Chega pareceriam uns meninos de bibe. Foi há mais de cem anos, a 5 de Fevereiro de 1916, sangrava a Europa, trincheiras pejadas de cadáveres, a infantaria das nações europeias a marchar cega, oferecendo a carne aos canhões na I Grande Guerra. Foi na Suíça, na cidade de Zurique, desmentindo a pascácia ideia de Suíça que Orson Welles popularizaria depois. Nessa noite, inauguraram a sala muito mais do que os 50 que nela caberiam. Chamaram-lhe Cabaret Voltaire, e mesmo eu, que frequentei vários cabarets da coxa, do Lobito, Luanda e Lisboa ao La Chunga em Cannes, nunca lá pus os pés. Nem eu, nem Lenine, e já lá vou.
A noite de 5 de Fevereiro foi alucinada. O Cabaret Voltaire foi o antro do caos, do delírio, da mastodôntica transcendência. O que estava nessa sala do número 1 da Spiegelgasse, na neutra Zurique, era uma manada tresmalhada. Hugo Ball e Emmy Hennings foram o casal fundador. Eram alemães, artistas, trânsfugas da guerra, anarcas, místicos, sonhadores de um sonho já encostado ao turbulento seio do desvario. E vieram romenos, russos, franceses, irlandeses, todos os exilados da Europa, traseiros e tintins a fugir da guerra. É mesmo Hugo Ball que me está a dizer ao ouvido: “A Suíça era então uma gaiola cercada por leões a rugir.”
A guerra não chegava a Zurique. E a turba que se juntou no Cabaret Voltaire, entre a raiva, o desespero e a desmedida e abençoada provocação gratuita, mergulhou essa sala e essa noite no negríssimo magma do inconsciente e na primeiríssima luz do mundo, faiscante e explosiva. É indescritível a potente balbúrdia, o som do tambor, talvez guitarras, gemidos, gritos de récitas em palavras desarticuladas que nunca mais ouvidos humanos escutariam, quase canções, quase dança, o rabo do romeno Tristan Tzara a imitar o ventre de uma bailarina egípcia. Uma embriaguez indefinida e uma emoção tóxica tomaram conta das almas e as almas tomaram conta dos corpos. Peço que os lisboetas da minha geração tenham a delicadeza que não fazer comparações lorpas com o Frágil ou o Lux. Era uma boémia em fogo vivo. Nas paredes havia telas de Kandisnki ou Klee, de Modigliani ou Picasso. Uma tela de Marcel Janco eternizou um fugaz vislumbre desse delírio ululante, primitivo e humaníssimo.
No número 14 dessa rua, ainda o nocturno charivari do Cabaret Voltaire lhe roçava porta e janelas, morava Lenine, o revolucionário russo, de olhos mongóis, fugido ao czar. E o que quero dizer, com licença do presidente Marcelo e mesmo de António Costa, nosso novo senhor absoluto, é que Vladimir Ilitch Ulianov, Lenine de nome de guerra, nunca pôs os pés no Cabaret Voltaire. Marcelo teria feito uma selfie a dançar com a Emmy, Costa poria o seu seráfico sorriso a contemporizar com as loucas artes – Lenine, não! O espavento das rajadas de soluços, os suspiros eróticos entrecortados com sons lancinantes de máquinas, os roucos mugidos animais eram um excesso que a pacóvia ideia de revolução de Lenine não suportaria. A transgressão do metro e sessenta e cinco de Lenine era secreta e escondida entre paredes: vivia na mesma rua do Cabaret Voltaire com a sua mãe, matriarca que vigiava as outras duas mulheres do filho, a mulher, Nadejda Krupskai, e a amante, a franco-russa Inès Armand.
A alguns metros do caos, da mais exuberante experimentação artística, dessa DADA, que foi antecâmara da beat generation e do punk, Lenine vivia o seu secreto e silencioso ménage à trois. Sem máscaras africanas na parede, sem rugidos excêntricos, porém, consentidíssimo.
Mas para onde raio foi o comment? Vou tentar postar outra vez, a ver se aceita.
Lenine passava o seu tempo nas bibliotecas, não havia força anímica para noitadas. Além de que a vida conjugal não se coaduna com liberdades. Consta que, no tempo livre, ele e a Krupskaya iam para o cimo da colina de Zürichberg, deitar-se na relva e comer chocolate suíço. Não consta que a mãe tivesse estado na Suíça. Ela vivia na Rússia. Morreu precisamente em 1916. Em julho, Lenine estava em Zurique, ela morreu em São Petersburgo.
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Oi Maturino, Komé! Consta, consta, a mãe veio à Suíça. O Lenine era mesmo um menino da mamã. E a Inesinha Armand fez mesmo trio. Com consentimento tácito.
ps – Maturino, e tens razão. A mãe de Lenine veio, de facto, arrumar-lhe a casa, mas à Suécia, antes de 1916. Lenine escreveu-lhe muito, à Mamouchka querida, de Zurique, mas ela não já não podia vir. Fui induzido em erro por fonte que julgava credível. Tudo o resto está certo, trio amoroso, incluído.
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Pois foi, a mãe só esteve em França e na Suécia, de resto viveu em São Petersburgo. Ela morreu, mais ou menos, quando fechou o Cabaret Voltaire, no verão de 1916, (esteve aberto pouco tempo, não se ganha dinheiro com arte, só depois de morto o artista). Seria difícil ela, já com 80 anos andar em viagens (só os velhos presidentes da América podem fazê-lo jovialmente, por isso vemos o velho saltitão americano, en route, culpar o Putin por tudo e mais alguma coisa, e levar os patetas europeus na conversa).
Também não é claro que a Armand estivesse na Spiegelgasse. É verdade que partiram os três, mais outros trinta e tal bolcheviques, no comboio selado que levou a bacilo da peste para a Rússia, como lhe chamava à viagem, o fazedor de História Churchill, mas não sei se ela vivia na Suíça.
Claro, como o nosso Otelo, Lenine também precisava de duas. Tinha a ideia de que o Lenine mantinha um low profile, não exibia as duas.
(Queria pôr aqui uma foto da viagem, mas não dá).
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Esqueci-me da banda sonora:
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