Alforrecas do céu

as alforrecas da minha infância

Voltarei a esta estória as vezes que for preciso. Ninguém pára o prazer da repetição da velhice

Uau. Foi este o clamor de Luanda nesse começo dos anos 60. Da boca da multidão saiu um grito buelo, como em Luanda se dizia, – um grito pasmado, a regurgitar admiração. Nessa manhã de colonialíssimo Verão caíam anjos do céu. Despejava-os o avião a que nós, candengues, chamávamos “barriga de jinguba”.

Já Leonardo Da Vinci desenhara anjos desses. É porventura lenda, mas conto na mesma. Logo no incipiente século IX, em Córdova, um mouro saltou de uma torre, sustentado apenas num manto que se encheu de ar, garantindo-lhe uma queda com pequenos danos. Não se sabe o nome desse mouro, mas eu sei os nomes dos meus amigos, candengues mouros de Luanda, aprendizes de Da Vinci. Esperem por eles: cairão do céu, daqui a mais um parágrafo.

Ora, a minha torrencial sede de justiça obriga-me a dizer a verdade. O primeiro pára-quedista foi francês. Ainda no século XVIII, André-Jacques Garnerin desenhou e fez depois em seda o primeiro pára-quedas que ligou a uma cesta, na qual se montou. Um balão de ar levou-o a mil metros de altura. Aí, a roçar o manto de Deus, Garnerin cortou as amarras que ligavam a cesta ao balão e o enorme pano de seda abriu-se, enchendo-se de um orgulhoso vento. Foi uma descida turbulenta, mas Garnerin aterrou como se, menino ou borracho, alguém lhe tivesse posto a mão por baixo.

Os meus amigos e eu, toda a cidade de Luanda, descobrimos os pára-quedistas dois séculos depois. Chegaram, mandados para Angola e em força pelo professor Salazar, que enjoava a andar de avião e, por isso, jamais se arriscaria à vertigem e a tanto arrebatamento. Em Luanda, arrebatamento patriótico e guerra à parte, o espectáculo de centenas de alforrecas do céu, descendo lá do alto, enxameando o horizonte, fez rir e chorar e incendiou o nosso imaginário de meninos. O Nelinho, Lando e Zé Victor, com os seus sábios oito ou nove anos de vida, voltaram a casa pendurados no sonho. Queriam também ir ao céu e voltar.

Foram a casa das respectivas mães: nesse tempo, em toda a prevenida casa de família havia cordas, rolos de fio, panos, nylon e poliestireno, vulgo plástico. Sonegaram, traficaram e clandestinamente reuniram tudo o que era preciso para, num arroubo artesanal, fazer um pára-quedas.

Reparem, a Vila Alice, bairro desse cometimento que iluminaria a nossa infância, era um pequenino estaleiro. As ruas a ser asfaltadas, cada talhão com novas vivendas em obras. Colorido pára-quedas na mão, Nelinho, Lando e Zé Victor subiram a um prédio em construção. Tinham comido feijão com arroz como se fossem príncipes, tal qual a canção suicida de Chico Buarque. Olharam lá de cima. Cá em baixo, três montes da dourada areia do Bungo, prometiam amaciar qualquer queda. Intrépido, Zé Victor quis ser o primeiro. Onde amarrar o pára-quedas? Ao pescoço, disseram, lógicos, Nelinho e Lando.

Zé Victor assim fez. Atirou-se e as leis da física funcionaram. Plástico e pano encheram-se de ar, as cordas retesaram-se e esganaram o seu alto pescoço de menino. Sufocado, soltando sons guturais de quem se afoga, olhos já fora das órbitas, o meu amigo pairava, majestoso. Nelinho e Lando, solidários e aflitos, desciam pelas obras, a gritar, já vais aterrar, aguenta, respira, já vais aterrar! Tombaram nas escadas, levantaram-se de joelhos em sangue, e chegam, está Zé Victor a aterrar na areia limpa, as cordas a aliviar, o seu pobre peito a enriquecer-se de ar. O sol da Angola ria-se e riam-se os três, inocentes, sem medo do futuro, sem cuidarem dos “andaimes pingentes que a gente tem que cair”. Deus lhes pague.

O maximbas e os seus mortos

Por vezes, a memória insinua-se e fala por mim. Crónica publicada recentemente no “Negócios”. Se tiverem paciência de a ler, leiam-na como reflexão recolhida e íntima, mais do que como declaração política. Isto sou eu a fazer contas comigo mesmo.

Entraram com os seus mortos. E queriam que todo o maximbombo visse os seus mortos. Eu ia também nesse maximbas, acabado de sair da Mutamba. Ia eu e duas freiras, duas irmãzinhas, sei lá se do Sagrado Coração de Jesus, que saíram do autocarro a correr, num assarapantamento tropical. Eram três mortos. Assim como entraram, logo saíram: mortos velozes, cobertos com lençóis, uma ou outra desassombrada mancha de sangue a decorá-los.

Essa era a Luanda do pós-25 de Abril e o problema que estávamos com ele, como na banda se dizia. O 25 de Abril, em 1974, era tudo menos um feriado. Apanhou os meus 20 anos na Biblioteca Nacional de Angola: eu lia, se calhar um livro de linguística, de John Lyons, talvez também um sub-reptício livro do senhor Ulianov. Ao ouvido, o meu amigo Juju disse-me que a rádio sul-africana anunciara um golpe em Portugal.

Ao silêncio sufocado do antigo regime, o 25 de Abril respondia com a sonora explosão das vozes. Em Luanda não se ouviam os clamores, os slogans ou os megafones das manifes de Portugal. Portugal não ouvia também os tiroteios dos dias e das noites de Luanda: day and night, night and day.

O 25 de Abril foi o dia da escolha. Portugal escolheu as vozes. Em Luanda, cada tiro condicionou a escolha. Eu escolhi os tiros. O luandino adolescente que eu era alinhou-se com o MPLA, então um fingido albergue espanhol de todas as ideologias, suposta fábrica do homem novo. No Lobito, os meus solitários 20 anos chocaram com a UNITA. Savimbi, quando vinha, dormia num prédio em frente ao meu, na rua que saía do Terreiro do Pó. Foi nesse prédio que me enfiei, na primeira batalha urbana entre o velho Éme e o Galo Negro, eran las cinco en punto de la tarde. E pensei: “Meu, pô, meti-me no coito do grande Muata. E se os camaradas do éme, zunem as balas práqui? Abre, meu!”

Vou meter a cabecita de fora e, em vez do harmonioso crepitar da aká, vocifera a primeira granada: mergulhei de novo no umbigo de Savimbi. A segunda tentativa foi ridiculamente igual à primeira. À terceira, rastejei em beleza, como tinha aprendido na recruta, na EAMA, a roçar os pneus dos carros. Ainda a tempo de jantar, junto ao porto, na pensão da Rosa, velha senhora que deliciava a minha boca revolucionária com os mais doces sonhos que algum dia comi.

Não a rastejar, mas de avião, fui a Luanda, a mando do ministro da Educação do governo de transição, Jerónimo Wanga. Era, certamente, um homem bom, mas tinha, nesse dia, a missão de me intimidar. A UNITA não apreciava a militância de seis professores do liceu do Lobito. Eu era um deles. Wanga, rodeado de quatro manos do Galo Negro, disse-me, a mim e ao Rui, outro dos profes: “Sei que vocês são do MRPP e só vieram cá fazer merda!” Toma que já levaste, embora o MRPP fosse fake news.

Dissemos-lhe: “Senhor ministro, nós não viemos, já estávamos cá”. Continuou: “O povo já está a ficar fodido convosco. Eu compro-vos as malas e mando-vos para o Puto.” Sorrimos: “Obrigado, não temos nada para levar. Preferimos ficar.”

Eis o 25 de Abril: vozes e escolha em Portugal. Rotundo não à ditadura de Salazar, um Verão quente para dizer também não ao PCP e à extrema-esquerda que, como hoje sabemos, nos teriam afundado na miséria económica e num regime mais repressivo do que o de Salazar. Sabe-o também Angola: sem escolha, a tiro apenas, se a dignidade da independência chegou, cavou-se um caos económico, regressão face à herança colonial, para não falar dos píncaros de repressão que milhares dos melhores angolanos sofreram no corpo e na alma.