
Por vezes, a memória insinua-se e fala por mim. Crónica publicada recentemente no “Negócios”. Se tiverem paciência de a ler, leiam-na como reflexão recolhida e íntima, mais do que como declaração política. Isto sou eu a fazer contas comigo mesmo.
Entraram com os seus mortos. E queriam que todo o maximbombo visse os seus mortos. Eu ia também nesse maximbas, acabado de sair da Mutamba. Ia eu e duas freiras, duas irmãzinhas, sei lá se do Sagrado Coração de Jesus, que saíram do autocarro a correr, num assarapantamento tropical. Eram três mortos. Assim como entraram, logo saíram: mortos velozes, cobertos com lençóis, uma ou outra desassombrada mancha de sangue a decorá-los.
Essa era a Luanda do pós-25 de Abril e o problema que estávamos com ele, como na banda se dizia. O 25 de Abril, em 1974, era tudo menos um feriado. Apanhou os meus 20 anos na Biblioteca Nacional de Angola: eu lia, se calhar um livro de linguística, de John Lyons, talvez também um sub-reptício livro do senhor Ulianov. Ao ouvido, o meu amigo Juju disse-me que a rádio sul-africana anunciara um golpe em Portugal.
Ao silêncio sufocado do antigo regime, o 25 de Abril respondia com a sonora explosão das vozes. Em Luanda não se ouviam os clamores, os slogans ou os megafones das manifes de Portugal. Portugal não ouvia também os tiroteios dos dias e das noites de Luanda: day and night, night and day.
O 25 de Abril foi o dia da escolha. Portugal escolheu as vozes. Em Luanda, cada tiro condicionou a escolha. Eu escolhi os tiros. O luandino adolescente que eu era alinhou-se com o MPLA, então um fingido albergue espanhol de todas as ideologias, suposta fábrica do homem novo. No Lobito, os meus solitários 20 anos chocaram com a UNITA. Savimbi, quando vinha, dormia num prédio em frente ao meu, na rua que saía do Terreiro do Pó. Foi nesse prédio que me enfiei, na primeira batalha urbana entre o velho Éme e o Galo Negro, eran las cinco en punto de la tarde. E pensei: “Meu, pô, meti-me no coito do grande Muata. E se os camaradas do éme, zunem as balas práqui? Abre, meu!”
Vou meter a cabecita de fora e, em vez do harmonioso crepitar da aká, vocifera a primeira granada: mergulhei de novo no umbigo de Savimbi. A segunda tentativa foi ridiculamente igual à primeira. À terceira, rastejei em beleza, como tinha aprendido na recruta, na EAMA, a roçar os pneus dos carros. Ainda a tempo de jantar, junto ao porto, na pensão da Rosa, velha senhora que deliciava a minha boca revolucionária com os mais doces sonhos que algum dia comi.
Não a rastejar, mas de avião, fui a Luanda, a mando do ministro da Educação do governo de transição, Jerónimo Wanga. Era, certamente, um homem bom, mas tinha, nesse dia, a missão de me intimidar. A UNITA não apreciava a militância de seis professores do liceu do Lobito. Eu era um deles. Wanga, rodeado de quatro manos do Galo Negro, disse-me, a mim e ao Rui, outro dos profes: “Sei que vocês são do MRPP e só vieram cá fazer merda!” Toma que já levaste, embora o MRPP fosse fake news.
Dissemos-lhe: “Senhor ministro, nós não viemos, já estávamos cá”. Continuou: “O povo já está a ficar fodido convosco. Eu compro-vos as malas e mando-vos para o Puto.” Sorrimos: “Obrigado, não temos nada para levar. Preferimos ficar.”
Eis o 25 de Abril: vozes e escolha em Portugal. Rotundo não à ditadura de Salazar, um Verão quente para dizer também não ao PCP e à extrema-esquerda que, como hoje sabemos, nos teriam afundado na miséria económica e num regime mais repressivo do que o de Salazar. Sabe-o também Angola: sem escolha, a tiro apenas, se a dignidade da independência chegou, cavou-se um caos económico, regressão face à herança colonial, para não falar dos píncaros de repressão que milhares dos melhores angolanos sofreram no corpo e na alma.
Estou ctgo Manuel na revivência dessas andanças que aqui bem retratas. Abraço!
Enviado do meu iPhone
LikeLike
Um abraço, Adelino. Vivemos.
LikeLike
Também me revejo por aqui ( e por aí , lá na banda ) nessas vivências do MPLA , que vinha acudir ao Povo bem sofrido e promovê-lo !!! Afinal ! os comités de luta , as reuniões clandestinas , o fervor posto na acção , de nada serviram, dada a gula -criminosa da classe dirigente (e emergente ) ao banquetear-se como o que se pensava ser do tal …POVO ! (até hoje !!!! ) .
LikeLike
Doce e ledo, ou amargo, quem não fez parte de algum engano?
LikeLike
Mas são contas tão bem feitas que dá gosto mergulhar nelas. Quero dizer, dá-nos gosto a nós lê-las. Mas imagino que o Manuel goste de ter lembranças. Mesmo as que metem mortos. E medo. E armas. E granadas. E desânimo e raiva.
Participou. Viva!
LikeLike
Viva e continuemos a viver.
LikeLike
Será que a memória nos traz as lembranças antigas, porque precisa de fazer “reset”? Ou porque sabe que agora, com mais tempo, mais conhecimento e vivências podemos “visualizar” melhor? A verdade é que esta reflexão provoca uma certa nostalgia e um olhar diferente,mais abrangente sobre essas memórias. Origada Manuel
LikeLike
Acho que sim, que vivemos melhor com o embrulho do tempo. Obrigado, Maria Gabriela.
LikeLike