
Foi a abrir generosamente as pernas que A Glutona conquistou Paris. Levantava a perna direita, e também a esquerda, a alturas onde eu, saltando, não chegaria com a cabeça. Ainda o cancan se chamava só chahut, A Glutona dançava com as bailarinas Grade de Esgoto, Pau de Virar Tripas, Nini Pata no Ar, mas era à cabeça do altíssimo Valentin, o Desossado, que ela, num salto cavado e decotado, arrancava o chapéu com um subtil toque da ponta do pé.
Vinham vê-la as cabeças coroadas da Europa, e falo já do auge do seu reinado no Moulin Rouge. Ao futuro rei de Inglaterra, Eduardo VII, num tu cá, tu lá como os caldeireiros, disse-lhe A Glutona, toda fadista: “Hei, tu, ó Gales! Paga-me o champanhe! E és tu que ofereces ou é a tua mãe que convida?”
Vinha desse povo que até o Bloco de Esquerda se arrepia todo: a mãe, lavadeira, o pai, carpinteiro. Família que a Guerra Franco-Prussiana encostou ainda mais à miséria: lavava roupa com a mãe, e o pai levava-a a dançar sobre as mesas das tabernas, para sacar uns cobres – olha lá, o meu, ó amigo! Louise Weber, seu nome de nascimento, deu tudo o que tinha a dar, pele e corpo, mas nunca deixou de dançar e foi a dançar que saiu da lama, como um génio sai da garrafa, e se converteu na rosa-rubra de Paris.
Nua, fotografou-a, primeiro, o marido da avó de Rainier III, o príncipe que um dia seria marido de Grace Kelly. Quem, a seguir, lhe pintou os «rondeurs» dessa carne a que a graça juvenil ainda disfarçava os excessos, foi o grande Pierre-Auguste Renoir. Porém, se além das suas pernas alguém a imortalizou, a Toulouse-Lautrec e à exuberância publicitária das suas cores o devemos.
Falei de lama e do amor à dança, e já estou a enganar os leitores. Da mãe, dessa infância de água e sabão, três corpetes, um avental, sete fronhas e um lençol, ficou-lhe o gosto da roupinha de baixo lavadinha e a cheirar a limpo. Era também esse o seu prazer. O seu corpo ginasticado, cheio e redondo, prodigalizava acrobacias que revelavam as brancas anáguas debruadas a franzidos e pregueados coloridos e, nesse côncavo trono em que as pernas de mulher terminam, a alvíssima e lavada cueca. Eis, e fixemo-lo para a eternidade, o salto de La Goulue, A Glutona: pernas no ar e coxas ao vento.
Era excessiva. Glutona pelo que comia e bebia. Glutona no amor, deitando-se com ricos e pobres, artistas e lúmpen, homens e mulheres, dava-se a quem queria. Ligeira na perna, ligeira no gatilho. Disparou quatro tiros de revólver sobre o marido, Joseph, só um o tocando, de raspão. Ao “Figaro”, veio ele lembrar que já, dois anos antes, ela o tentara alvejar com dois tiros falhados. Da primeira vez, sim, seis meses antes, ela feriu-o, um tiro e pum, toma lá que já almoçaste. Joseph, o marido, acrescentou: “A minha mulher é uma impulsiva e inconsciente. Perdoo-lhe e recuso-me a apresentar queixa.”
Excessiva e independente, A Glutona, vedeta maior da inauguração do Olympia, que faria depois a glória de Amália, despediu-se do Moulin Rouge e montou uma tenda itinerante, que Toulouse-Lautrec decorou com rutilantes painéis. Foi o começo da decadência: acabaria, em casal, a domar leões, tigres e outras bestas. Um puma meteu mesmo os dentes ao marido e acabou-lhe com a carreira. Tudo o vento levou. Gorda, imensa, vinha com um tabuleiro vender amendoins e cigarros à porta do Moulin Rouge só para cheirar e lamber a antiga glória. Está, agora, enterrada ali perto, no cemitério de Montmartre. Ao padre, que a absolvia, ainda disse: “Será que o bom Deus me perdoa? Sabe, eu sou A Glutona!”
Teve uma vida aventurosa e de má pontaria (talvez não quisesse mesmo matar o marido) e era de boa boca, tudo lhe servia excepto desleixos na lingerie. Prazer em conhecê-la, Beatriz.
LikeLike
É verdade, Bea, ou ela tinha má pontaria ou era o Deus das linhas tortas que lhe guiava a mão.
LikeLike