A ilha suicida

Parker

Eis o que sendo humano me é estranho: o suicídio. Jamais me passou pela cabeça. Ora, há cem anos, a cabeça de Dorothy Parker era uma ilha suicida. Uma ilha batida por terríveis ondas do tamanho das ondas da Nazaré.

Dorothy nascera Rothschild. Não farei perder tempo aos leitores, era Rothschild, mas não dos ultramilionários – era como se eu, ou a minha mulher, tanto faz, fossemos Champallimaud, mas de um acidental Champallimaud, sem pingo de fortuna, apartamento arrendado em bairro da ingloriosa classe média. Educada numa escola católica – ora bem! –, Dorothy acabou expulsa por ter chamado ao mito da Imaculada Conceição um fenómeno de combustão espontânea. Ainda hei de perguntar a Ferro Rodrigues se isto conta como uma liberdade de expressão que invade a liberdade de expressão dos outros. Adiante!

Honra lhe seja, Dorothy cuidou do pai, que adoecera, até ele morrer. Depois, para sobreviver, recorreu à única arma que tinha: uma escrita corrosiva. Foi a primeira mulher crítica de teatro de Nova Iorque e integrou um grupo, que reunia no hotel Algonquin, a famosa Mesa Redonda do Algonquin, a que se sentavam jornalistas, escritores e críticos. Chamavam-lhe o Círculo do Vício e era, mais cruel do que as noites do Snob dos anos 80, o purgatório dos ausentes: ali, em ditos verrinosos e frases assassinas, numa elegância antípoda de André Ventura, esmifravam-se e liquidavam-se reputações. Uma vergonha, reprovaria, e aqui julgo que estou certo, Ferro Rodrigues.

Dou exemplo de uma saída fulgurante da nossa crítica e poeta. Alguém ouvira uma senhora célebre dizer “Eu não sou capaz de enganar um homem pateta!” e logo Dorothy rematava “Já a mãe dela não tinha essa dificuldade!”

Dorothy, que ficou Parker por casamento, era repentista e de humor feroz e sarcástico. Ou, se me autorizam um qualificativo ético, um humor sardónico. Diria o psiquiatra que me segue (é o terceiro), que isso são coisas que o desespero alimenta, forma de expressar a funda raiva ou zanga interior, janela por onde passa uma visão brutal das relações entre as mulheres e os homens. Seja como for, era uma acidez íntima e cínica, refogada nas experiências pessoais de Dorothy. “Raspa um bocadinho um amante e encontrarás o inimigo”, jurava ela, como jurava que “a beleza tem a profundidade da pele, a fealdade vai limpinha até ao osso”.

Lembro uma tentativa de suicídio. Estando já em pantanas o casamento com Parker, teve um affair com um homem casado e engravidou. “Pus todos os meus ovos num bastardo”, disse e abortou. Talvez seja um mito, mas corre que o amante terá querido ajudar com 30 dólares, solidariedade que Dorothy classificou como “o reembolso de Judas”.

Carregada de dívidas, foi para onde o dinheiro a chamava. Para Hollywood. Escreveu argumentos para filmes, ganhando o Oscar com “A Star is Born”. A mão feita na poesia, em aforismos e em contos, tinha dificuldade para escrever guiões. O patrão do estúdio veio cobrar-lhe o atraso num deles. “Tenho andado fucking busy e vice-versa”, foi a explosiva resposta.

Mas Hollywood sossegou-lhe a voragem suicida, renovando o seu activismo político antinazi, de mão dada com o Partido Comunista Americano. Pagaria a factura no macarthismo, o que a fez regressar a Nova Iorque. Deixou o património e os direitos de autor a Martin Luther King Jr. Um conflito testamentário fez com que as suas cinzas ficassem anos no escritório de um advogado. Estão agora num memorial em que se lê o epitáfio que, premonitória, deixou escrito: “Peço desculpa pelo meu pó.”

Publicado na minha coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios

Tanta vida, tanta morte

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A vida antes da morte: Virginia a jogar cricket com a irmã

É rara a pessoa que só morre uma vez. Até James Bond nos aconselha a viver duas vezes para podermos morrer outras tantas. Mas ninguém morre tanto como o escritor. O escritor morre em cada personagem, falece-lhe a vida a cada romance que acaba. Machado de Assis morreu em Brás Cuba e foi já a sua finada mão a escrever essas memórias póstumas. Com o fino humor que só quem morreu tem.

“Metáfora, balelas, abóbora”, protesta o rigoroso leitor. E eu, pedindo-lhe humildes desculpas, já o convido a ver Virginia Woolf sair de casa numa manhã inglesa ainda entalada entre Inverno e Primavera. Woolf morrera de ilusão em ilusão, a começar no êxito do seu romance “Mrs. Dalloway” incapaz de apagar os abusos dos irmãos, as crises mentais de juventude, as alucinações de toda a vida.

É uma manhã de 1941 e Virginia leva consigo as mortes que escreveu, um casaco de peles, as impermeáveis botas a que o primeiro duque de Wellington deu o nome. Agora vejam, Virginia Woolf dobra a sua fama, mesmo o modernismo que opunha ao de Joyce, para apanhar pedras do chão. Enche de pedras os vastos bolsos do casaco e entra, passo a passo, nas águas do rio Ouse. Se Virginia fosse Jesus Cristo poderia, talvez, caminhar sobre as águas. Mas ninguém se banha duas vezes nas mesmas águas de um rio, ensinou-nos Heraclito, o que Woolf faz questão em desmentir.Com a persistência que só um escritor tem, caminhou até se afundar. As águas que a afogaram embalaram-na ao longo do rio que passa por York. Vogou nas mesmas fundas águas durante quinze dias.

Que leve que é a persistência de Woolf! Tão leve como a alma do bebé que morre no estado de anjo. Vejam a delicadeza com que apanha cada pedra, a naturalidade, sem estremecimento, com que entra nas frias águas inglesas. Vai ao encontro da morte como ao reencontro da melhor amiga.

A primeira casa que tive com a Antónia, minha mulher, era toda em esconso, umas águas furtadas nos Anjos, partilhada em regime de kibutz com mais dois jovens casais amigos. Na maior parte da casa só se podia andar de gatas. Apenas um terço fora concebida para o homo erectus. E eu ia dizer que nesse tempo, em 1977, foi mesmo assim preciso pagar uns 150 contos, por debaixo do pano, ao ganancioso senhorio para nos fazer o contrato de arrendamento, o que mostra o miserabilismo pré millenial da época. Ia dizer, mas não digo, que isso não interessa nada, e se já disse, peço que esqueçam. Não é a indignação, mas a admiração que me motiva.

Ora, soubemos depois, nessa casa suicidara-se por enforcamento a velhinha só, anterior moradora. Não tinha talvez a serenidade de Virginia Woolf, mas movia-a a mesma titânica vontade: em toda a casa não haveria mais do que um ou dois pontos em que, pendurado do tecto, o ser humano tivesse cinco centímetros a separá-lo do chão. Só um acto de superior vontade superaria a escassez logística que esse pombal dos Anjos, como lhe chamávamos, oferecia.

Não há cá facilidades. A facilidade é como mandar meninos à missa: outro escritor, Graham Greene quis suicidar-se e entregou-se à facilidade de tomar 24 comprimidos com um jarro de whisky. Como uma coisa neutralizou a outra, e continuou vivíssimo. E, se a motivação é risível, pode mesmo cortar-se a garganta e permanecer de boa saúde, como aconteceu a Maupassant, que quis suicidar-se por pensar que o cérebro lhe andava a sair pelas narinas. Volto a Virginia Woolf. Na nota que deixou ao marido derramou, numa letra lindíssima, vinte frases de uma bondade edénica. Sabia o que era a morte, sabia o que era a vida.

Publicado na minha coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios

Um meticuloso trabalho de sacristia

Vejamos, é a quarta crónica que assino no Jornal de Negócios,
na coluna intitulada 
Vidas de Perigo, Vidas Sem Castigo, na última página do Weekend, com ilustração de José Tiny.
Mas quem tenha, e bem, comprado esta 6ª feira o melhor jornal económico português (e lá estou eu a engraxar o director) leu já ou vai já ler a quinta crónica, sobre a relação do misterioso Ernie Hausen (quem será?) com mil galinhas depenadas. A ler aqui.

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Eddie Manix, à esquerda, de fato escuro, ao lado de Clark Gable

Um meticuloso trabalho de sacristia

O cinema é americano. Eis uma vaca sagrada que nem o #metoo se atreve a beliscar. Belisco eu: o que seria do cinema sem o catolicismo! Sem o arrevesado católico John Ford os westerns nunca seriam o que foram, sem o perverso católico Hitchcock não nos benzeríamos na água benta do medo e do suspense. Mas quem, num meticuloso trabalho de sacristia, protegeu o sensível bebé que era o cinema foi o católico Eddie Mannix. E vejam: os nossos selectos críticos só não o desprezam porque nem o conhecem.

Eddie Mannix foi o braço direito de Louis B. Mayer, patrão do maior estúdio, a MGM, que tinha mais estrelas do que estrelas há no céu. Deus limpará as borradas que fazem as estrelas do céu, Mannix limpava as borradas das estrelas da terra. Era um fixer: tinha a polícia, médicos, juízes e jornalistas na mão. Imaginem que Clark Gable se embebedava e enfiava o popó contra uma palmeira de Los Angeles, ou partia as pernas a um peão. Vinha Mannix, bem antes da polícia, e limpava tudo, Gable, o popó e o peão, enquanto Howard Strickling, seu parceiro, em troca do silêncio sobre Gable, largava à Imprensa um escândalo com alguma estrela de outro estúdio.

Mannix esmerava-se. Para as bebedeiras e cenas de pancadaria de Spencer Tracy, tinha sempre atrás dele uma ambulância e quatro enfermeiros, pugilistas na verdade. Montava segurança aos muros da casa de Greta Garbo para que não lhe fotografassem os delírios hetero ou lésbicos. Cuidava dos abortos das actrizes. E quando Gable violou e engravidou a bela e católica Loretta Young, recusando ela abortar, Mannix e Strickling esconderam-na na Europa, afinfaram-lhe com um regresso triunfal depois do parto clandestino, e ela adoptou uma menina num orfanato, que por acaso era a sua própria filha. A verdade soube-a a filha mais de 20 anos depois.

O católico Mannix era um fixer, fixava as coisas, e ainda era produtor. Caíam-lhe actrizes no colo. Casado, dava-se a lendárias infidelidades. Ora, havia um dogma em que ele era tão inabalável como Dom Manuel Clemente: o casamento era indissolúvel. E só casou com a segunda mulher, a católica Toni Mannix, já antes sua amante, quando morreu a primeira, num intrigante acidente automóvel, mesmo à muito conveniente beira do rancho de um amigo de Mannix. Digo isto e logo me calo.

Casou indissoluvelmente com Toni, tendo já, porém, uma jovem amante japonesa. A adorável esposa arranjou ela própria o seu brinquedo: foi para a cama com o Super-Homem. George Reeves tinha menos oito anos do que ela, e fora o pedaço de peito e músculos escolhido para ser o Super-Homem na televisão. Mannix, que nesse aspecto tinha um catolicismo de Papa Francisco, achou bem. Jantavam os quatro, férias e viagens a quatro, ele e Toni em 1ª classe, os dois brinquedos na económica, que uma coisa são os bispos, outra os diáconos.

E não é que o Super-Homem trocou Toni por nova amante! Inconsolável, a velha amante telefonava-lhe: «Mas o que é que ela faz? Atira anéis de fumo com a pombinha?» Noto: Toni não disse «pombinha», apertando a coisa em quatro letras execráveis. E caiu numa desolação que incomodou o marido. Ele não admitia que a catolicíssima mulher sofresse. Súbitos incómodos vieram povoar os dias do Super-Homem: um carro sem travões, lembro-me agora. Até que o encontraram, nu como viera ao mundo, deitado na cama da casinha que Toni lhe comprara, com uma bala na cabeça. Suicídio, disse a polícia, ainda nem a autópsia estava feita. E se foi mal feita. Toni e Eddie continuaram casados, só a morte os separou.

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Toni Mannix e o Super-Homem

Publicado no Jornal de Negócios