Documentos para a História

Este post vem direitinho da Guerra e Paz para a Página Negra. E eu vou já visitar a Feira do Livro que aqui nos prometem.

História Feira

Documentos para a História de Portugal, de Angola e do Mundo
FEIRA DO LIVRO

 Os que não conseguem lembrar o passado condenam-se a repeti-lo. George Santayana

Dê a mão ao passado – é uma grande forma de entrar no futuro. Fazemos-lhe um desafio: venha passear, virtualmente, nesta grande Feira do Livro, uma feira temática cheia de documentos chave para o aprofundamento da História de Portugal, da História de Angola e da História do Mundo. Temos 44 livros editados pela Guerra e Paz, que tocam aspectos particulares (como o Bunker de Hitler) ou oferecem retratos gerais de períodos históricos, caso da Revolução de Outubro ou da Breve História da Angola Moderna.

Temas candentes e polémicos como a Escravatura ou Quem é Fascista cruzam-se com documentos terrivelmente vitais como o Mein Kamp ou o Pequeno Livro Vermelho. Um livro pungente como Os Filhos dos Nazis ou um livro de Memórias escolhidas de um comunista português vão estar ao lado de ensaios sobre a natureza da História como o é A ideologia Afrocentrista à Conquista da História e essa obra que se interroga sobre o Triunfo do Ocidente. Revisitam-se aqui os dois dias 25 que marcaram a nossa democracia em Capitão de Abril, Capitão de Novembro, viajamos, em Muros, pela estranha vontade de clausura que por vezes assola a humanidade, e chegamos a essa bifurcação maior dos nossos dias, aquela que decidirá o nosso futuro e o dos nossos filhos, no ensaio inteligente e prospectivo que tem por título EUA versus China: Confronto ou Coexistência.

É uma grande Feira. Tem autênticas pechinchas, com livros que chegam a ter 40% de desconto. E, para completarmos a sua felicidade de leitor, a cada compra de dois livros oferecemos um exemplar do livro de fotografias de Picasso, do seu cão e de algumas das suas telas, belo álbum do fotógrafo americano David Douglas Duncan. Dois livros da Feira, seja qual for o preço, e o álbum com que comemorámos os 40 anos da morte de Picasso é seu.

Dois cêntimos de infância

Gosto muito deste texto – também tenho direito a gostar mais de um ou outro dos meus textos. Neste, visito o que já é só memória, congelada recordação. Tudo, a casa, o bairro, as coisas e os lugares da minha infância, soprou-os o vento da História. Mesmo os rostos, amigos ou hostis, dispersou-os em diáspora e solidão um inclemente ciclone tropical. 

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Num ápice, o filme salta da eufórica multidão de um rodeo para o silêncio da vasta pradaria que uma desgarrada árvore não chega a interromper. Assim começa “Lusty Men”, de Nicholas Ray.

Robert Mitchum é um cow-boy que vive da espúria arte dos rodeos. Doma cavalos, laça bezerros e monta touros. Nos intervalos, mulheres. Nessa tarde que parecia ser de glória conhece os cornos do infortúnio. Entrou na arena de corpo vaidoso e resplandecente camisa branca. Quando, no final da curta cena, o voltamos a ver, o corpo cansado já arrasta uma perna coxa. É um aleijado num mundo que os nega e rejeita.

Um minuto de filme, o tempo da glória. Abruptamente, da multidão, dos altifalantes do estádio, das incontidas ovações, Nicholas Ray tira-nos e atira-nos para uma paisagem imensa e vazia. Um silêncio de poeira, grilos e cigarras, um consumido resto de Verão, seco e estéril. Vemos o mesmo Mitchum que é já outro Mitchum. Caminha em direcção a uma casa abandonada.

Há, entre o homem oscilante e a casa decrépita, uma antiga familiaridade. Os passos de Mitchum são os passos envergonhados de quem, vencido, regressa a casa. Um cadeado ferrugento fecha o portão da cerca, já Mitchum sobe os degraus do alpendre e empurra a porta que não cede. Este coxo Ulisses, que nem a desculpa de uma Penélope tem, volta-se e sabemos pelos admiráveis e brandos olhos dele o bem e a dor, a dor e o bem, que lhe faz contemplar a interminável pradaria.

Dá a volta à casa e, de repente, pára. Pára porque um fragmento, esplêndido fragmento do passado, lhe iluminou as memórias. Afasta com o pé um esquálido arbusto e, como só um miúdo sabe ser clandestino, rasteja para debaixo da estrutura em que assenta a casa. Lá por baixo, no sujo e mágico pó do tempo, as mãos tacteiam um tesouro: a revista de quadradinhos, a criancice de um revólver inútil, uma velha bolsa de tabaco onde em miúdo guardava moedas. Encontra dois cêntimos, tantos anos depois.

Dois cêntimos de infância podem ser a infância toda, intacta. Procuro no bolso os meus dois cêntimos e falo por mim: não tenho a sorte de Mitchum. Não voltarei a essa intacta infância. Não sujarei a camisa branca rastejando para baixo da casa dos meus pais. Não voltará às minhas mãos o trémulo revólver de um Natal angolano.

Criado, eu e um milhão de portugueses, na casa errada da História, não tenho lugar a que possa regressar e dizer, como Mitchum, “quase nada mudou na casa” ou “dormi neste quarto”. Fez 59 anos este 4 de Fevereiro de 2020: outros homens saíram debaixo do que nem eram casas para me ensinar que a minha casa não era a minha casa. Uma espessa camada de História, de gerações inocentes em busca da sua liberdade, sepultou os segredos que escondi na casa dos meus pais. Não se rasteja para tão fundo. Aos coxos da História não se dá o consolo de dois cêntimos de infância.

Livros que respondem à letra

Seis ensaios

Os livros respondem à vida, à História, à sociedade, à política e à espuma e vagas dos dias. Na Guerra e Paz temos particular predilecção pelos ensaios, os livros da chamada não-ficção, e gostamos de livros que nos abalem as convicções e nos criem dilemas. Dos livros que publicámos em 2019, há seis que nos causaram mais funda impressão.

Quem é Fascista, do historiador Emilio Gentile, pela forma como reconstitui rigorosamente a emergência do fascismo, confrontando esse nascimento e solidificação com a vida contemporânea e com os populismos que nela pululam, obriga-nos a rever quer a nossa relação com a História, quer o nosso olhar para os populismos. Um grande livro.

Alterações Climáticas, da climatologista Judith Curry, provocou forte controvérsia. Todos os lugares comuns do catastrofismo e dos alarmes apocalípticos são aqui postos em causa. A autora defende apenas um critério, o da prossecução de uma metodologia científica que lide com as incertezas climáticas e nos evite a tentação dos unanimismos e das soluções ultra-simplistas.

E deixem-me falar de dois livros mais amenos. Vencidos da História, de José Jorge Letria, escolhe um ângulo singular para visitar os grandes heróis e os grandes vilões da História, enquanto o velho filósofo francês, Michel Serres, entretanto falecido, se atira com optimismo à avaliação e resolução das crises económicas e sociais recentes. Tempo de Crises é o título de Serres. Há um traço de humanidade a ligar estes dois belos livros.

Pelo contrario, traumático e convulsivo é o traço que liga São Paulo, Prisão de Luanda, de Carlos Taveira (Piri), a Declarações de Guerra, da autoria de Vasco Luís Curado. São Paulo relata o cativeiro dos presos políticos sob o regime cubano-soviético de Agostinho Neto. Em Declarações de Guerra o psicólogo Vasco Luís Curado recolhe os testemunhos dos soldados portugueses que, mandados pelo regime ditatorial de Salazar e Caetano, vivem ainda hoje os delírios e pesadelos da sua vivência e memória da Guerra Colonial.

Seis livros que eu recomendo vivamente. Seis livros pelos quais valeu a pena a batalha editorial da Guerra e Paz em 2019.

Fantasmas coloniais

LUanda

Bica Curta servida no CM, 5.ª feira, dia 22 de Agosto

Esta é a minha centésima bica curta no CM. Para desbundar memórias afectivas, bebo café de Angola, dose certa de robusta misturado ao suave arábica. Bebo e leio o que disse ao “The Economist” um ex-ministro das finanças do Zimbabué, malhando no regime: “Hoje lavo-me num balde como se isto fosse a Rodésia do Sul de 1923.” As vozes livres de África não se calam. Na televisão de Luanda, o poeta e romancista angolano José Luís Mendonça foi claro: “O colonialismo hoje tem de ser repensado. Será que o colonialismo foi assim tão mau?”

A África será tanto mais livre quanto acerte contas, sem preconceitos, com os fantasmas do passado.

Pontapé no traseiro

scientists

Bica Curta servida no CM, 5.ª feira, dia 4 de Julho

Mas que grandes pontapés tem levado o traseiro do passado. Vêm os activistas sociais e chutam, vêm os identitários étnicos e lá vai pontapé, vêm o arco-íris dos géneros, os vigilantes savonarolas da linguagem correcta e zás, enfiam o elegante sapato no vetusto cu do passado. Eis o pontapé: o passado foi burro e mau como as cobras, é culpado, o passado tem de pedir desculpas.

Mentem. Devíamos era tomar mais bicas com o passado. Se nos sentamos neste sofá do presente, com menos pobreza, menos mortalidade infantil, mais conhecimento, é por estarmos sentados em cima dos ombros de gigantes do passado. Sem passado, caímos no abismo.

Portugal e Manoel de Oliveira

Convidado pela Cinemateca, participei hoje num colóquio sobre Manoel de Oliveira. Além de José Manuel Costa, o director, comigo estiveram António Preto, que vai dirigir a Casa Manoel de Oliveira, em Serralves, e o Augusto M. Seabra, que não encontrava há um século, e tanto gostei agora de rever. Bem sei que é prosa longa, para não dizer interminável, mas aqui fica, para memória futura, o que se me ofereceu dizer.

oliveira

Manoel de Oliveira e Portugal

Quando recebi o convite da Cinemateca Portuguesa para estar presente nesta conversa, o nome Manoel de Oliveira soou-me familiar e desencadeou até no meu cansado corpo uma faísca emotiva. Fiquei contente. Vir a esta velha casa e sair das ilhas por onde ando ostracizado, pareceu-me muito bem, sobretudo na companhia de Manoel de Oliveira. O convite rezava assim: Manoel de Oliveira e Portugal – A relação com a História como tropo da relação com o presente.

As palavras História e presente, mesmo nas ilhas solitárias por onde ando, são banais e recomendáveis, sobretudo se a palavra História vier escrita com maiúscula, como é o caso. A palavra relação, ainda por cima em dose dupla, faria logo, julgo eu, abrir um sorriso meio perverso a Manoel de Oliveira. Tenho a certeza de que ele ia começar a perorar sobre as diferenças que há entre a sensata e sóbria relação conjugal e, na velha e descabelada tradição de outros tempos, a relação proibida, roubada, de um erotismo sórdido ou buñueliano.

Mas o meu maior problema foi com o termo tropo. O que é, o que significa tropo? Lá fui eu aos meus estafados livros de retórica e filosofia antiga e deparei com um significado que me agradou por ser plenamente oliveiriano: tropo é o mesmo que girar. Ora, eu sei umas coisas, ensinou-mas Oliveira, sobre o que é girar.

Oliveira e eu passámos, em 1982, uma noite juntos e a sós, na maravilhosa casa dele da Vilarinha. Não vos direi o que estivemos ou não estivemos a fazer, mas às seis e meia da manhã, o Manoel, já a caminho dos 80 anos, num gesto de cortesia entre cavalheiros, não me deixou apanhar um táxi. Meteu-se no carro e levou-me ao meu hotel, perto da estação de São Bento, atravessando o Porto a uma velocidade que me fazia girar a mim, que fazia girar a cidade invicta, que fazia girar o mundo. Há tropos e tropos, mas nenhum gira como girava o Manoel a conduzir.

Não ficaria mal dizer que o cinema de Manoel de Oliveira gira, veloz ou lento, em travelling ou em plano fixo, entre a maiúscula História e o nosso pequeno e irredutível presente. Só que a palavra tropos, ao mover-se, vai estabelecer ligações entre ideias, associando-as por proximidade ou comparando-as. Poderíamos dizer então que o tropos oliveiriano pode usar a História como alegoria do presente ou como metáfora do presente ou mesmo como ênfase do presente. O humaníssimo Oliveira, nada do que é humano lhe sendo estranho, conviveria bem com todas estas significações, mas julgo que jamais confessaria uma coisa. Jamais confessaria que o seu tropo preferido era o da ironia, essa belíssima e desapiedada figura que consiste em dar a entender o contrário do que em boa verdade se está realmente a dizer. Embora eu não goste muito de absolutos, direi, para simplificar, que os filmes de Manoel de Oliveira, toda a relação até de Oliveira com o cinema está marcada por essa figura elegante e civilizada a que chamamos ironia.

Mas falemos da História. Muitos filmes de Oliveira estão invadidos por figuras e acontecimentos da nossa História, por sermões do Padre António Vieira, pela maquinação do Santo Ofício, por soldados na Guerra Colonial em diálogos nas Unimogs numa mata africana, pela evocação de Viriato, do primeiro rei Afonso, pelo belo e utópico Dom Sebastião, por um Cristóvão Colombo alentejano. O que fazer com eles? Trazê-los à letra para o nosso presente? O que dizem os seus monólogos e diálogos, que às vezes são exaltantes, outras vezes anacrónicos, mesmo reaccionários por obsoletos? Dizem o que dizem ou quererão dar-nos a entender o contrário do que dizem?

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Antes de responder, se é que eu vou conseguir responder, deixem-me dizer que o convite da Cinemateca, antevendo os meus problemas de literacia, acrescentava duas perguntas, que me sossegaram e muito me ajudam, agora, a organizar a minha pobre cabeça. Eis as frases: Como é que Manoel de Oliveira dialogou com o país? Qual é a sua verdadeira contribuição para a cultura portuguesa?

Já respondo, mas antes volto às minhas conversas com Manoel de Oliveira. Falámos algumas vezes, entrevistei-o, julgo que duas vezes, e convivemos em jantares e outras amenidades sociais, uma delas a roçar o prodígio, numa noite em que, na Embaixada de Itália, em Lisboa, Manoel de Oliveira e Michelangelo Antonioni, contaram, em duelo, anedotas. Antonioni as barzelette dos carabiniere, o Manoel, piadas de alentejanas. Foi das noites mais culturais de toda a minha vida.

Ora, numa dessas conversas ou numa entrevista, o Manoel falou-me da importância que teve para ele, no Porto, o convívio com filósofos e com escritores. Os filósofos da Escola do Porto, julgo que sobretudo José Marinho, balizaram um paradigma de pensamento e reflexão, que a relação com Teixeira de Pascoaes e, em particular, com José Régio matizou esteticamente. A visão da História, o mito do Quinto Império, o messianismo sebastiânico que invade parte do cinema de Manoel de Oliveira tem naquele movimento filosófico – o da chamada filosofia portuguesa – e nas figuras tutelares de Pascoaes e Régio as suas mais poderosas referências.

O diálogo de Oliveira com o país, de que a Cinemateca me pede que fale, começa ali e, nos seus filmes, não pára. Se eu contei bem, Manoel de Oliveira assinou 31 longas metragens de ficção. Há pelo menos 14 cujo argumento ele mesmo escreveu. E há 19 dos seus filmes que são adaptações de textos literários portugueses, romances ou contos ou peças de teatro. A soma destas duas colunas dá mais do que os filmes que ele realizou, mas não fiquem a pensar nisso: é simples, há filmes em que Oliveira assina o argumento, embora use textos, nalguns casos de vários autores, criando o que os americanos ou a malta da indústria do têxtil que faz acolchoados chamariam patchworks. Oliveira combinava, e às vezes, genialmente, retalhos de várias origens. Mas já lá vamos.

É muito variado o valor literário, intelectual ou cultural que possamos atribuir aos escritores portugueses que Oliveira assaltou e adaptou. O Padre António Vieira, Camilo, Régio e Agustina estão entre os maiores e são talvez aqueles com os quais Oliveira se funde mais apaixonadamente. E há ainda o encontro tardio com o Eça da Singularidades de uma Rapariga Loira, que a mim me parece mais um desencontro, e com o Raúl Brandão de A Sombra e o Gebo.

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Não menosprezemos, no entanto, os autores menores. Há uma categoria, a que, por serem sanguíneos e cruéis, eu chamaria os admiráveis filmes trogloditas de Manoel de Oliveira, filmes que nascem do casamento de Oliveira com autores secundários, caso dos Canibais, de Álvaro Carvalhal, que eu adoro, ou essa obra-prima, O Passado e o Presente, do trágico-cómico Vicente Sanches, para não falar do campeão português do teatro do absurdo que foi Prista Monteiro, a que Oliveira roubou A Caixa, filme que nos meus tempos de bandidagem e pirataria exibi na SIC, em horário nobre, liderando audiências para espanto e vénia do meu caro amigo Francisco Balsemão.

Aliás, e voltando à minha designação de admiráveis filmes trogloditas, deixem-me dizer que é na Francisca, adaptação da Fanny Owen de Agustina, que a crueldade encontra o seu melhor teatro, nessa cena em que José Augusto segura na mão o sangrento coração da amada. Nesse filme tão obcecado com a virgindade, esse velho desporto português por excelência, e tal como Oliveira fez questão em sublinhar, com a amada morta, o que o apaixonado José Augusto guarda não é o tão discutido hímen, mas sim o coração, o mais romântico dos símbolos. De todos os filmes que vi de Manoel de Oliveira, e não vi todos os que ele filmou na vertiginosa década de produção cinematográfica que foi a sua última década de vida, para estes olhos que a terra há-de esmifrar, Francisca será sempre a obra-prima dele.

Estas escolhas são sempre discutíveis, e se a faço é porque também Oliveira tinha uma hierarquia. Na sua relação fílmica com a cultura portuguesa, Oliveira fez escolhas. Ignorou Jorge de Sena, nada o aproximou da poesia de um Herberto Helder, não caiu na tentação de um Saramago, nem mesmo, apesar da Guerra Colonial, visitou o António Lobo Antunes. Como se a contemporaneidade, a discussão estética moderna, estivesse nos antípodas dos interesses e gostos que lhe eram vitais. E dos seus quatro autores-fetiches, Régio, Agustina, Camilo Castelo Branco e o luso-brasileiro Padre Vieira, se seguirmos o muito objectivo método quantitativo, arrisco dizer que, ainda mais do que José Régio, Agustina foi a sua mais-do-que-tudo.

Vejamos.Oliveira visitou, homenageou, girou à volta de Régio, pelo menos seis vezes, a começar, indirectamente, pelas Pinturas de Meu Irmão Júlio; na prodigiosa Benilde ou a Virgem Mãe; dedicou à memória de Régio Le Soulier de Satin; atacou Régio com estética francesa em O Meu Caso; citou-o em A Divina Comédia; fez, por fim, da peça de Régio, El-Rei Dom Sebastião, o seu Quinto Império.

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Já com Agustina, e de uma forma que me parece mais substantiva, a história da nossa cultura de quatro décadas há-de registar sete tremores de terra ditados pelo choque dos mais gentis e divertidos titãs que conheci em toda a minha vida, o meu amigo Manoel, que, sempre que vinha à Cinemateca, só queria catrapiscar a minha mulher com o pretexto de mandar um apertado abraço para mim – «dê lá um abraço ao Manuel Fonseca e ele que não me dê bolas pretas» –, e a minha querida autora Agustina, que numa emergência, e com o seu sonoro consentimento, tive de ajudar, segurando-a intempestivamente pelas assertivas pernas, num episódio que, lamento muito, não é desta história e por isso não contarei.

Eis os sete choques dos titãs Agustina e Manoel: Francisca, o mais belo dos mais belos dos filmes, baseado no romance Fanny Owen; os diálogos que Agustina escreveu para o secreto Visita ou Memórias e Confissões; Vale Abrãao, que eu nem sei se é mais de um ou mais de outro; O Convento, bizarra ideia original dessa senhora que mora na Calçada do Gólgota, que o senhor da casa da Vilarinha desenvolveu e que ela transformou num novo tipo de romance, o romance a posteriori, a que chamou As Terras do Risco; os diálogos de Party, que ficam tão bem na boca de Michel Piccoli; a benfazeja usurpação desse curtíssimo A Mãe de um Rio, de Agustina, no filme Inquietude; e esse último e agónico encontro em Espelho Mágico, título de Oliveira que, a meu ver, não tem a força do formidável A Alma dos Ricos, título de Agustina.

Dezanove adaptações de grandes e pequenos autores, seis diálogos com Régio, sete virginais idílios com Agustina, são o suficiente para atestar Manoel como cliente da literatura portuguesa. Não o é menos da nossa História. Ora vejam: Soulier de Satin é uma reflexão sobre o destino histórico do Portugal renascentista. O Non, a que tanto resisto e que inconciliavelmente discuti com Oliveira, numa noite de Maio, para cima e para baixo, entre o Carlton e o Majestic, na Croisette, em Cannes, os franceses espantados a ver dois malucos a berrar amavelmente, enquanto a Isabel Branco, responsável pelo guarda-roupa e irmã do afamado produtor, tentava arranjar o melhor ângulo para me enfiar uma estampilha que me fizesse voar os óculos, esse Non é uma reflexão sobre a Guerra Colonial, sobre o 25 de Abril e é um périplo pela nossa história, a cavalo por Viriato, Afonso Henriques, D. Afonso V e a batalha de Toro, os Descobrimentos, Alcácer Quibir, enfim por alguns vencidos da nossa  História. E eu disse, a cavalo, e há dias o meu querido amigo Tó Costa, o António M. Costa, que viveu praticamente como filho adoptivo do Manoel neste século XXI, lembrou-me que os tão poucos cavalos, de que eu me queixava em certas cenas, se ficaram a dever à peste equina que nesse ano avassalou Portugal e interditou a circulação dos magníficos animais, e que mesmo assim só houve cavalos porque o produtor Paulo Branco, com os ardis e talentos de um Ulisses, arranjou modos de os traficar, fintando as brigadas veterinárias, a lei, a GNR e o diabo a quatro.

E falando ainda do confronto e invocação do cinema de Oliveira com momentos da nossa história, lembro, n’ O Dia do Desespero, o suicídio de Camilo, que estranhamente vi em Sevilha, na inauguração da Expo que lá houve antes de termos a nossa em Lisboa. E lembro, na Palavra e Utopia, a vida e as palavras do Padre António Vieira, a sua expulsão do Brasil, o ataque do Santo Ofício, o caldo messiânico. Tudo retomado no Quinto Império, invocando o mito camoniano e de Vieira da missão divina de Portugal, o nosso sebastianismo messiânico por cumprir. De tudo isto há ainda ecos no Cristóvão Colombo – O Enigma, revisitação das teses que sustentam a origem portuguesa de Colombo.

Quero, antes de terminar, e agora que já fiz o elenco da presença da Históira em Oliveira, dizer três coisas. A esta portugalidade, a esta veia identitária que eu aqui sublinhei, Manoel de Oliveira abriu várias vezes parêntesis. Há um momento, na filmografia de Oliveira, em que esse mundo da cidade do Porto, esse mundo da escola da filosofia portuguesa, de Pascoaes e de Régio, é profundamente abalado. Le Soulier de Satin, adaptação da obra de Paul Claudel, quebra o paradigma estético, de virgindade, de crueldade, de um romantismo encantado com a morte e com os amores frustrados que era a obra anterior de Oliveira.

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Começa aqui um novo discurso e uma nova prática. Ou, para nos adequarmos, às raízes do paradigma que vai torrencialmente arrastar Oliveira, uma nova teoria e uma nova praxis. Com Soulier arranca uma aventura estética que é estranha ao pensamento e à filosofia do primeiro Oliveira. Toda esta ideia do cinema como reprodução audiovisual da realidade, do cinema como fixação do teatro, a fixidez da câmara, a redução da montagem, com os longos planos fixos, são elementos de uma “estética francesa”. Não sei se Oliveira aceitaria designá-la assim. Não sei se Jacques Parsi, que passou a ser seu regularíssimo colaborador, a influenciou. Sei que, contou-me o Tó Costa, Oliveira era também, a partir de certa altura, leitor de filósofos da arte, tão heterodoxos e herméticos como Jean-François Lyotard e Gilles Deleuze.

Juntamente com Soulier, Mon Cas, com as repetições, com a distorção cromática – a preto e branco e a cores – e com a distorção da velocidade – mudo e sonoro, acelerado e lento, é outro dos expoentes dessa revolução estética, que, de uma forma mais ou menos intensa haverá reflexos no Non ou a Vã Glória de Mandar e nos filmes que se seguem.

E eis a segunda coisa que quero dizer. Será que Oliveira adoptou este paradigma, para seguir, acima de tudo, a lição de Roberto Rossellini, lição do pós-guerra que ensina ser essencial fazer filmes depressa e a bom preço, mesmo que seja com câmaras a cair da tripeça, com restos de película e com não-actores? No final do século XX, essa ideia da câmara imóvel, da representação teatral, longos planos fixos, não terão sido a condição para que Oliveira tivesse filmado praticamente uma longa metragem por ano contra as seis que fizera nos 40 anos anteriores?

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E falta-me dizer a terceira coisa. O Manoel declarou, e eu levo-o a sério, que filmava para lutar contra o aborrecimento. Caso contrário, morreria. O Manoel, acima de tudo, ainda mais do que Rossellini, tinha de filmar. O João César Monteiro disse-me um dia que o Rossellini não queria ou não precisava de fazer filmes que fossem bons filmes. Manoel de Oliveira talvez se tenha servido de uma estética que acima de tudo lhe permitia fazer filmes, sem precisar necessariamente que fossem bons filmes, desde que tivessem a verdade que ele queria passar, por mais estranha e anacrónica que fosse essa verdade.

E aqui, tenho de voltar à ironia que invoquei no começo desta conversa. O que me leva a defender uma relação, que não é, nem conjugal, nem perversa, entre Oliveira e Agustina, é a sua comum meninice. Agustina e Manoel são daqueles adultos que conservam uma criança dentro de si. Gostam mais da vida do que da arte, mas precisam da arte para sentirem plenamente a sua vida.

Fazer filmes permitiu a Oliveira ser uma criança permanente. Foi esse o património que deixou em herança à cultura portuguesa. A tetralogia dos amores frustrados, a virgindade de Benilde e de Francisca, o amor da protagonista de O Passado e o Presente aos maridos mortos e a repugnância pelos maridos vivos, a obsessão pela aparição de Nossa Senhora da Leonor Silveira em Espelho Mágico, os mortos que abrem os olhos como tão bem os abre a Pilar López de Ayala de O Estranho Caso de Angélica, a grande surpresa de Leonor Silveira quando vê, pedaço a pedaço despido, o corpo desconjuntado de Luis Miguel Cintra, em Os Canibais são exemplos da ironia e da vivacidade de um Manoel de Oliveira eternamente infantil. É assim, infantil, que lembro o Manoel, às seis da manhã, depois de uma noite sem dormir, e é assim, quase infantis, que quero lembrar os melhores dos seus filmes. Deixemos vir a nós as criancinhas!