Números ou poemas

leiotres

Bica Curta servida no CM, 4.ª feira, dia 21 de Agosto

Olho para o mundo com um optimismo que embaraça mesmo os meus melhores amigos. Às vezes, em vez da bica curta, já me atiram com um balde de água fria. Mas depois vem a UNESCO despejar-nos em cima estes números gloriosos: baixou para 14% a população mundial analfabeta. Há 30 anos havia 30% de analfabetos, há 70, 44%. Professores sejam louvados, 91% dos jovens de todo o mundo sabem hoje ler e escrever.

Eis o mundo melhor, eis o hoje que canta. Olhem para a satisfação pessoal desta gente! Nos países em que a alfabetização cresceu, cresce também o rendimento individual e o PIB põe-se aos saltos. São números e comovem: parecem poemas.

As pestanas de Anna

É tão, tão bonita a Anna Karina. E as pestanas? Bem sei, a canção de Aznavour, esse hino à flacidez e desencanto, também ajuda. Muito. Ah, que bom é estufar o amor a beleza e depressão.

O filme, do maravilhoso Godard dos anos 60, chama-se Une Femme Est Une Femme. Ao lado de Anna senta-se Jean-Paul Belmondo, o tipo das moedas para juke-box.

 

Pátroclo

 

Akhilleus_Patroklos_Antikensammlung_Berlin

Pátroclo é um herói sem biografia. Quando o vemos só o vemos para melhor vermos Aquiles. Teve mulher e filhos? Um cão que fosse?

Sabemos que amou Aquiles, o protegeu em vida e o assombrou depois da morte. Amou-o desinteressadamente. Amor romântico porventura, insinuam agora as leituras de revisão da matéria dada.

Aquiles amou-o também. Distraidamente. Dolorosamente só quando o soube morto: rojou-se pelo chão, cravou as mãos na terra que espalhou depois pelos cabelos, enquanto lhe corriam grossas lágrimas pelo rosto – são sempre grossas as lágrimas do herói clássico. As escravas choraram com ele e o clamor chegou ao céu, a Tétis, a deusa sua mãe. Porque Aquiles era divino e é mais fácil ser-se herói quando se é divino. Pátroclo era apenas herói de ser herói, por pura virtude, pura areté, essa virtude que Homero vê como sobre-humana, como me ensina a Paideia, minha grande educadora.

Há em Pátroclo uma resignada consciência do destino trágico. Como se soubesse que a única pincelada biográfica que lhe conhecemos – ter morto cobardemente, em criança, um amigo que com ele jogava aos dados – mais ou tarde ou mais cedo viria borrar a tela em que a sua madura are se fixou. Pátroclo sabe que é um herói homérico inserido num ciclo vicioso de vingança. E que ele é ou vai ser, mais tarde ou mais cedo, o bouc emissaire de um desfile de morte e impiedade. Esse momento trágico, a morte de Pátroclo, é o prelúdio para que, como uma orquestra sinfónica, Aquiles possa atacar a seguir com som e fúria.

Antes, o destino concede a Pátroclo o seu momento de volúpia. Entrou na tenda de Aquiles a chorar como uma menina (não sou eu, mas Aquiles quem o diz), aterrado com a mortandade que os gregos sofriam e a que Aquiles, ressentido com Agamémnon, continuava indiferente.

Aquiles ordena-lhe então que vista o seu escudo, o escudo em que Hefesto pintou céu, terra, mar, o fogo que tudo consome, o “sol infatigável”, as estrelas e a lua, as cidades mais belas, as bodas, as festas e as celebrações dos humanos. Essa faiscante visão harmónica do universo – concepção épica de Homero – fará, por si só, tremer o adversário.

Homero que fora abundante e eufórico quando noutro canto descrevera a vasta couraça é, agora que Pátroclo a vai vestir, sucinto à beira da escassez:

O guerreiro não esperou segunda ordem e começou a vestir a resistente couraça. Colocou, depois, as cabeleiras, que prendeu às pernas com fivelas de prata. Lançou aos ombros a espada de bronze com incrustações de prata e sobraçou o imenso escudo. Pôs o capacete de bronze, bem modelado e sólido, tendo no alto um penacho de crina, que por si só bastava para infundir pavor ao adversário, na cabeça.

Mas nós podemos adivinhar o frémito que Pátroclo se autorizou ao vestir as armas do amigo. Um pingo de divindade caiu-lhe e deslizou sobre o peito. Talvez tenha fechado levemente os olhos e sonhado, fugaz, a vida e a biografia que nunca teve: uma casa, filhos, o vinho espesso e doce que se bebe à lareira, o rumor das palavras de um filósofo que se convidou nessa noite. Um segundo apenas, o arrepio e o deleite de um segundo. Lá fora, a batalha esperava-o urgente, o fio da espada de um troiano sedento do seu sangue.

Recebêmo-lo hoje,a carne ainda retalhada, neste cemitério que é a Página Negra

Meu caro Donald

 

BRasil XVII

Bica Curta servida no CM, 3.ª feira, dia 20 de Agosto

Meu Caro Donald, deves-nos uma. A nós, portugueses. Um dia destes, passamos por Washington, pagas-nos uma bica curta e está feito. Isso de desatares a comprar a Gronelândia, fingindo que é originalidade americana, sem dizeres que nos estavas a imitar, tem de acabar. Bem sabes que, à conta da ocupação espanhola, os holandeses nos sacaram o Brasil. Corridos os Filipes, fomo-nos aos holandeses e demos-lhes uns valentes enxertos de porrada, mas cansados de guerra acabámos por lhes comprar o Nordeste pelo que hoje seriam quase 550 milhões de euros. Ainda nem pátria tinhas, foi no século XVII, Donald. Vê se pagas direitos de autor!

A girafa não boceja

giraffes

Estudei o assunto por todos os ângulos possíveis e imaginários, mas a verdade é que a girafa é o único vertebrado que não boceja. Bocejam cães e gatos, quando alguém ao pé de mim boceja, bocejo logo eu – já levo uma média de quatro mil bocejos por anos, com tendência para um inusitado crescimento, agora,

Bocejam pássaros e peixinhos, até a esquiva serpente abre a boca sem pedir licença. A girafa não. É preciso ser muito cabeça no ar para se passar o dia a mastigar folhas sensaboronas e julgar que isso é que é uma vida excitante.

P.s. – Não juro pela cientificidade da coisa, mas com o que aí vai de fake news também tenho direito, não?

A Marinha boliviana

Marinha em terra.jpg

Titulado “Sognando l’Oceano”, a reportagem diz que a Bolívia, após uma guerra de 25 anos com o Chile, em 1904, assinou um tratado de paz que isolou o país do mar.

A Bolívia é, como o cozido das furnas, uma panela rodeada de terra por todos os lados. Querem mais angústia e razões para desamor patriótico? Mas os andinos. que “huelen a sangre y a gloria”, não se impressionam. Até hoje, a Bolívia mantém a Marinha como um ramo das forças armadas. Com aprumo, 5 mil marinheiros compõem a Força Naval da Marinha.

Exercitam-se na nobre arte da sua guerra no Lago Titicaca (nem o cacafónico nome os desmotiva), esperando que os 75 quilómetros de Chile que os separam do imenso Pacífico sejam um dia vencidos. Como diz um dos almirantes: “Se a Bolívia não chegar um dia ao mar, o mar chegará um dia à Bolívia”.

Para o nosso olhar cínico, europeu e sem pátria, são só marujos de cabotagem. Eles, crentes e poéticos, na impossibilidade de terem um navio escola, construíram uma escola em forma de navio e treinam-se com garbo, comemorando a 23 de Março o Dia do Mar com cujas ondas, sal e espuma sonham há 105 anos. A Bolívia é o único destino de sonho.

 

Sentados, à beira da noite

bonjour

Lembrei-me de que Jean Seberg, em Bonjour Tristesse, é Cécile, e a Cécile cabe dizer uma das mais inesquecíveis réplicas que consigo repetir de cor: “It’s getting out of control. I just wish I were a lot older or a lot younger.”

E eis o que espero do Verão, entrar nele muito mais velho a ver se saio dele muito mais novo.

B_tristesse

Às vezes, gosta-se por causa do que se vê. Outras, gosta-se por causa do que se sente. De Bonjour Tristesse (1958), o filme mais a cores de que me lembro, gosto do que vejo e gosto do que sinto. O filme, dirigido por Otto Preminger, é de 1958. A mim parece-me mais fresco do que o leite vigor do dia. Jean Seberg, a protagonista, tem muita culpa. A beleza dela é tão luminosa que cega.

E o guarda-roupa dá vida a um morto: blusas leves, calções que oscilam entre o curto e o muito curto, fatos de banho vermelhos, amarelos e azuis que lhe fazem fina a cintura, cabelo dourado quase rapado, vestido preto preso ao pescoço por uma gola tão pequenina. Tudo se passa dentro duma campânula chamada Verão. Faz calor (e ainda não se falava do aquecimento global). Passa uma brisa. Um frémito faz estremecer os corpos sentados à beira da noite. É Agosto e só me apetece mar. O banho nu da meia-noite.

red

 

Marx ao piano

As quatro mãos que vão ver no vídeo pertencem, de forma mais ou menos aleatória, a Chico e Harpo Marx. Os tratos dados ao piano, à la John Cage de vaudeville, tiveram lugar em 1941, num filme chamado Big  Store. Gostaria de declarar, com ar solene, que o divertimento é a coisa mais séria do mundo. Devia, por isso, ser a mais bem paga.

ps– video muito bem lembrado por amigo meu. Thanks god-inho.