
A paixão alucina, a paixão tortura e pouco amor não é amor. Ou não era, que anda a atazanar-me o pavor de terem acabado as histórias de amor. Pelo menos histórias de amor como as de Samuel Fuller, o cineasta de “Big Red One”, o mais terno e impiedoso dos filmes de guerra. E vejam, está o guerreiro de cuecas, no seu apartamento de Montmartre com vista para o Sacré Coeur, a dar voltas, tremente, ao fundo da cama. Que medo o assolou?
Deixemos Sam e a sua angustiada roupa interior e voltemos à pergunta: ainda há histórias de amor? Li, num prestigiado semanário, um guia feminista para conduzir as relações amorosas. Confesso: era eu aluno desavindo e bissextíssimo do jovem professor Marcelo, ainda o país estrebuchava na longa noite, e lembro-me de ter lido passagens do Código Civil mais excitantes e de prosa com pundonores e brios mais líricos. Eis onde o amor hoje se deita: em mil prescrições puritanas e em papel de 25 linhas: circula-se com mais gárrula liberdade num campo minado.
E volto a Fuller. Conheci-o em Lisboa, bebi copos com ele em casa do António da Cunha Telles, e vi-o filmar ao pé da igreja de São Vicente, numa noite fria de Inverno, a cena de uma bela mulher nua a cavalo, rompendo o nevoeiro do Campo das Cebolas, cavalgada livre a explodir de desejo.
Já ele era, então, casado com Christa Lang. E é por causa de Christa que o vemos, descalço, humilde roupa interior, aos pés da cama do seu apartamento de homem solteiro. Estava em Paris, nos anos 60, para pensar num filme e caíram-lhe homenagens em cima: era o cineasta de “Pickpocket on South Street”, de filmes de guerra como “Steel Helmet” e “Merrils Marauders” (o filme de guerra em que choro sempre), do angustiante “Shock Corridor” e vieram Godard, Truffaut e tutti quanti fazer-lhe a merecida vénia.
Deliciava-se Fuller, no jardim de Chaillot, na Cinemateca, charuto na boca, depois de carinhoso papo com Truffaut, quando lhe aparece uma linda equatoriana, modelo, que se apresenta como Miss América do Sul. Falaram dois minutos, mas Fuller, temendo pedidos para filmes, pirou-se. Dias depois, à janela, vê a equatoriana a chamá-lo da rua: coincidência, a sessão de fotografia dela ser debaixo da janela dele. Fuller desce, bebem um petit café e combinam jantar. No dia, telefona-lhe a Miss América do Sul: pergunta se pode levar uma amiga. Fuller pensou: “Vai trazer chaperon, deve julgar que sou um velho sátiro!”
Está Fuller à mesa e entram as duas. A outra era Christa, alemã loura, e eu ia puxar dos habituais adjectivos de olhos esbugalhados, até perceber que, aos olhos do nosso Sam, Christa era inadjectivável e inenarrável. Foi o que foi, de conversas, olhares obnubilados. À saída, Fuller convida-a a jantar um dia com ele, a dois.
Ainda temos o sim dela nos ouvidos e já voltamos a ver Fuller aos pés da caminha de Montmarte, flagelado, meio nu, a olhar para o seu corpo que a idade, estandarte murcho, já banalizou. “O que pode – e isto é Sam a pensar – uma mulher ofuscante, flamífera, arrebatadora, ver num gajo a cair da tripeça como eu – que vida em conjunto ainda podemos ter?”. Esse medo, esse intenso amor de si para amar o outro, congelavam Fuller: demorou um dia, três dias, sete dias, neste transe místico.
O cavernoso americano moreno, Sam, desprezando o cérebro e comandado pelo coração, telefonou-lhe ao décimo dia. Soube depois, que Christa, loura alemã pletórica, tinha passado a espera de dez dias na mesma amorosa angústia. Viveram juntos 30 anos, até que a morte de Sam os separou: pouco amor não é amor.
Há assim amores: terríveis de bons.
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