Brando e a curiosidade satisfeita

Nunca emprestem 20 dólares a Marlon Brando. Foi o que o encenador e cineasta Elia Kazan deve ter pensado quando o dramaturgo Tennessee Williams lhe telefonou. “Já ardi”, terá rosnado Kazan.

Rebobino e vamos ver como tudo começou. Tennessee escrevera a peça “Um Eléctrico Chamado Desejo” e vendeu a produção a Irene Selznick. A senhora era filha de Louis B. Mayer, acabadinha de se divorciar de David O. Selznick, ou seja, a nata de Hollywood. Foi como injectar mostarda nas narinas dos intelectuais de esquerda nova-iorquinos. Gritaram “traição, traição”, lado para o qual Tennessee dormiu bem, de tão habituado a camas heterodoxas.

Tennessee vira a peça de Arthur Miller, “All My Sons”, e adorara a encenação de Kazan. Mandou-lhe o texto do “Eléctrico”. Foi a mulher de Kazan que o leu e o obrigou a aceitar. Ela e duas cartas de Tennessee, que os trans que assaltam palcos deviam ler para perceber o que é a arte: “Quando se começa a organizar uma peça em volta de um tema particular arriscamo-nos a dissipar a verosimilhança”, escreveu Tennessee.

Adiante. Já Tennessee e Kazan caíram nos braços um do outro e precisam de actores. Queriam, para o mítico papel de Stanley, actores de Hollywood. Primeiro John Garfield com o seu ar de boxeur, depois Burt Lancaster. Nenhum podia e nenhum era a chávena de chá de Williams. Alguém sugeriu o quase desconhecido Marlon Brando a Kazan. Não foi fácil encontrá-lo: tinha 23 anos, uma beleza de anjo erótico, e dormia cada noite no diferente apartamento da feliz contemplada com aquela bênção do céu.

Apanhou-o, por fim, deu-lhe o texto, meteu-lhe 20 dólares, de 1947, na mão, o preço do comboio para Cape Cod, onde o esperava Tennessee, a quem deveria fazer a leitura da sua parte. E já estamos nós e Kazan agarrados ao telefone. Passaram três, quatro dias, e Tennessee vem queixar-se: do actor nem cheiro.

Brando apareceu cinco ou seis dias depois. Estoirara os 20 dólares e veio, de boleia em boleia, em auto-stop, com uma adolescente na bagagem. Tennessee estava com o namorado, um mexicano explosivo e exuberante, e duas amigas no seu rancho. A canalização entupida, com toda a gente a fazer as necessidades atrás dos arbustos, e com a luz eléctrica também cortada. Foi, por isso, à luz da vela que surgiu a Tennessee Williams a aparição, e disse, “do mais belo jovem que alguma vez vi”.

O jovem perguntou por que raio estavam às escuras. Disseram-lhe. Agarrou numas moedas de cobre e substituiu o fusível queimado: fez-se luz. A seguir, foi à sanita e tratou de limpar a canalização: correu limpa a água. Era altura de ler e mostrar que tinha direito ao papel. Começou. Um minuto depois Tennessee sabia que Brando era Stanley Kowalski: “Um Stanley enviado por Deus na pessoa de Brando.”

Brando enriqueceu a personagem. Não era só um macho bruto, carregado de preconceitos, era um jovem insolente e de uma arrogante insensibilidade. Tennessee jura, nas memórias, que, por ética, a de nunca dormir com os actores das suas peças, silenciou o desejo. E Brando foi de total timidez com ele: convidou-o a caminharem na praia. Foram e vieram em total silêncio. O barulho, os gritos, a ovação, chegaram quando a peça estreou.

Curioso com a sexualidade de Tennessee estava Kazan. Queria saber o que fazem dois homossexuais na cama. Numa das suas mil infidelidades à mulher, trouxe uma amante e convidou Tennessee para um fim de semana. Só havia um quarto com duas camas gigantes. Cada casal foi para sua cama e, escreve Kazan: “A minha curiosidade ficou satisfeita.”

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