
Publicado no Jornal de Negócios, há umas boas semanas, Entretanto, meteram-se as férias e coisa e tal, e só agora dei com estes amenos espiões.
Vejam, a bufaria, hoje, é praticamente uma cortesia. Durante anos esteve de cadeirinha, macia, administrativa, na Câmara de Lisboa. Deu, com uma gentileza de chá e torradas, os nomes de organizadores de 50 manifestações a Embaixadas de países amigos e inimigos, democracias e ditaduras.
Lembro: bastou a Anna Sage ter vestido uma saia rosa, para ser a “Lady in Red”, na noite em que levou ao cinema o gangster John Dillinger, bufando a digressão recreativa ao FBI, que à saída do filme crivou de balas esse Robin Hood de bancos, impedindo-o de ser ele a assaltar, com outra glória, o BES. A Câmara de Lisboa, inocente, é a nossa “Lady in White”, culminando a tradição de casino, bufaria barata e alta espionagem da nossa capital, que remonta à Segunda Guerra Mundial.
E não minto se disser que pode haver um impulso idealista no deceptivo espião. Tenho os olhos no catalão Juan Pujol Garcia. Cresceu na Guerra de Espanha. O pai, burguês, educara-o no pacifismo e no bom senso da democracia. Forçado à guerra pelos republicanos, foi telegrafista para não dar um tiro. Acabou prisioneiro dos fascistas. Libertou-o um padre: já parecia velho aos 25 anos e ficou com uma velocíssima aversão ao fascismo e ao comunismo.
Deus, se for Deus, voa, eis o que sabemos com tanta certeza como sabemos que Hitler, por ser Hitler, faria a guerra. Pujol quer combater Hitler. Vai à Embaixada inglesa, em Madrid, e oferece-se como espião. É bom que saibam, Pujol desistiu dos estudos aos 13 anos: trocara tudo por um curso de avicultura. Se alguma coisa sabia, era de galinhas. Os ingleses devolveram-no à capoeira.
Não desiste. Urde um plano tortuoso. Oferece-se aos alemães. Convencerá, dessa maneira, os ingleses da sua utilidade. Diz aos nazis que tem um passaporte diplomático e que pode viajar e espiar em Inglaterra. Em pouco meses inunda os nazis com informações do Reino Unido.
Pujol viajou tanto à Inglaterra como eu já fui à Tasmânia. Está entre Lisboa, o Estoril e Cascais. Quem sabe se inspirado pela sombra de Fernando Pessoa, inventa heterónimos. Trabalham para ele, do território inglês, 23 espiões. Um venezuelano, embarcadiços, uma mulher que por não ser bonita é muito discreta… Há, num verso de Herberto Helder, uma máquina de fazer maçãs – a cabeça de Pujol era uma máquina de fazer espiões. Inventa-os, dá-lhe uma biografia, e com os mapas de guias turísticos e os horários dos caminhos de ferro ingleses, regala os nazis de informações. Todas falsas, mas povoadas de verdades que as credibilizam. Inventa um comboio de barcos ingleses em direcção a Malta e a marinha nazi, os insondáveis submarinos, vêm polvilhar o Mediterrâneo, logo seguidos pelos ingleses.
Um catalão enche os mares com uma informação falsa e o MI5 já o procura por toda a Inglaterra. Pujol e a mulher vão bater-lhes à porta, em Lisboa. Levam-no para Londres e, de boca aberta, chamam-lhe Garbo, o melhor dos actores.
Agora, dúplice, serve a causa que quer. E é Pujol, na roupinha de Garbo, que convencerá Hitler: o dia D será em Calais. No dia 6 de Junho, horas antes da invasão, autorizado por Eisenhower, avisa os nazis que vai haver um desembarque na Normandia, mas que é só para nazi ver. Convicto e confiante, Hitler manda Rommel estacionar os seus tanques em Calais. Pujol, espião espanhol, ganhou um terço, talvez meia guerra. Poupou vidas. Depois da Guerra, o MI5 inventou a sua morte em Angola, onde, para variar, nunca foi. Viveu, clandestino e em doce remanso, na Venezuela. Morreu em 88: os deuses pouparam-no à ditadura de Chávez.