
A covid-19 povoou o nosso mundo de humilhação. Com cara arrogante, e não digo sequer que seja a de um Hitler ou de um Estaline, mas talvez a de um daqueles ministros tonitruantes do XXII governo constitucional, a covid-19 obrigou-nos a levar a humilhação para casa. Confinou-nos e, se me desculpam o neologismo, pusilanimou-nos.
Ora, por mais que apalpemos o ser humano, sempre restará nele, noves fora alguma coisa, uma impalpável insatisfação, até um vestígio de insubordinação. Leiam a carta que recebeu um amigo meu de Paris: “Monsieur, vimo-lo, há pouco, no acto de urinar da sua janela sobre as pessoas que passavam na rua. É um comportamento inaceitável! O confinamento não justifica tudo. Chamaremos a polícia em caso de recidiva.”
Assinavam essa carta, escrita a bic azul ponta fina, os condóminos, que sublinharam a grosso a palavra “inaceitável”, pespegando-lhe um correctivo e intranquilo ponto de exclamação.
Mas nem toda a insubmissão é intranscendente. Dois gramas de indocilidade comandaram as veias de um padre católico de Cáceres: a clausura a bulir-lhe os nervos, subiu à torre da igreja, e do telhado, em streaming, para os seus cordeiros de Deus atulhados de pecados do mundo, celebrou, padre funâmbulo, a primeira missa equilibrista pós-concílio Vaticano II.
Ainda em plano inclinado, já regresso ao insublime mundo da futilidade. Na espanhola Vilagarcia, que mal sei se vota Podemos ou Vox, uma mulher, branquíssima de insatisfação, subiu ao muito oblíquo telhado do prédio. De biquíni, que rezo para que fosse de tecido mínimo e escândalo máximo, deixou-se torrar ao sol, os vizinhos em ai-jesus cá em baixo, braços abertos não fosse ela cair.
Eu gostava que tivesse sido na Amadora ou no bairro do Montenegro, em Faro, mas foi num outro lugar estrangeiro. Nos mais acirrados dias da inclemente reclusão um homem vinha, dia a dia, à varanda: vestido de mergulhador, um dia; no outro de princesa; depois de Mbappé ou Cristiano Ronaldo; de bruxa; de astronauta; de boxeur. Megafone na mão, atordoava o mundo: “Estou chateado!” E traduzi mal, que a cada dia mudava de insatisfação: entediado, enfastiado, maçado, irritado. Nunca veio vestido de António Costa, Catarina Martins ou Rui Rio.
A gendarmerie francesa, numa aldeia do Loire, encafifada pelo homem que passeava duas ovelhas como seus animais de estimação, proibiu-lhe as saídas e, à população, tuítou com pedagogia: “Ovelhas, avestruzes, lamas e crocodilos não são animais de estimação! Não podem, pois, ser usados como desculpa para sair de casa.” Eis a paciência de mestre-escola que falta ao ministro Cabrita.
Ousemos e viajemos. Em Trinidad e Tobago, os 29 anos de Che Lewis feneceram. Por uma disputa de terras, um bando entrou-lhe em casa e, a tiro, abateu Lewis e o pai. Se as suas almas foram assim despachadas ao Criador, já os corpos foram entregues à funerária, com pedido especial da família para o jovem Lewis. Embalsamaram-no e eis que o trazem à igreja evangélica, sentado numa cadeira, casaco rosa, calça branca, óculos escuros a rasgar, uma banga de komé, meu! Na igreja recusam-lhe a entrada. Fica à porta e quem passa protesta por ele estar sem máscara, prova que todo o morto é um insurrecto. Depois, sobem-no para o carro funerário de caixa aberta e atravessa a cidade, numa última visita. A escritora Colette, de um outro confinamento, deixara-nos uma lição: “A melhor maneira de sobreviver à Ocupação é ficar na cama.” Com estilo, os 29 anos de Lewis, insatisfeitos e insubmissos, desmentem a recolhida Colette.
Publicado, há umas boas semanas no Jornal de Negócios, no Weekend, que sai às sextas