Juntei os trapinhos com Fernando Pessoa… perdão, juntei os textos de Fernando Pessoa sobre Salazar, no livro Que Salazar era o Salazar de Fernando Pessoa? Leiam, garanto-vos que não se vão arrepender. A jornalista Fernanda Cachão entrevistou-me para o CM. É uma antecâmara do que vão encontrar no livro.

Começo por lhe fazer a pergunta que aparece na contracapa do livro: Fernando Pessoa foi alguma vez salazarista?
Se por salazarismo entendermos os 40 anos de ditadura, o cortejo de presos políticos, torturas da PIDE, guerra colonial, que hoje podemos e devemos imputar a Salazar, Fernando Pessoa, que nada disso viveu ou conheceu, nunca foi salazarista. Morreu três anos depois de Salazar chegar a Presidente do Conselho e decretar o unipartidarismo da União Nacional e plebiscitar a Constituição de 1933. É aqui que começa o que podemos designar politicamente como salazarismo e é exactamente esse quadro que alerta Fernando Pessoa, começando então os textos de Pessoa sobre Salazar a ser ácidos, satíricos e até violentamente ofensivos para o ditador.
Qual a razão fundamental para reunir os textos do poeta sobre o ditador?
É uma tradição da Guerra e Paz editores organizar antologias temáticas de Pessoa, sobre viagens, sobre sexualidade, sobre Cristo. Salazar é uma das figuras maiores, inarredável em vida e inarredável depois de morto, do nosso século XX. Ter o nosso maior poeta do século a comentar com minúcia a acção e os acontecimentos políticos desses anos de revolução e ditadura é de uma enorme riqueza. Tanto mais que podemos assim assistir, a partir de um olhar privilegiado, ao nascimento da figura política de Salazar e ver a sua evolução, tantas vezes feita com base em processos manhosos (as demissões sucessivas de Salazar, por exemplo). Do berço político ao trono tirânico, está tudo neste livrinho de Fernando Pessoa sobre Salazar.
Salazar é frequentemente considerado o espírito tacanho que governou Portugal 40 anos. No entanto, existem algumas coincidências de pensamento entre Fernando Pessoa e Salazar, quer partilhavam, por exemplo, um “profundo cepticismo quanto à capacidade intelectual da multidão”, uma visão pouco politicamente correcta para os padrões actuais?
Mas o que pensam hoje os grandes dirigentes políticos sobre a massa dos cidadãos? Se não fossem tão escrutinados, será que não manifestariam de forma mais ostensiva algum desdém pela turba? Pessoa e Salazar, nesse fim dos anos 20 do século passado respiravam o ar de um tempo em que as vanguardas, tanto as comunistas como as fascistas, se substituíam ao povo nas escolhas, nas decisões e nos discursos. Por outro lado, a ideia de que Salazar fosse pura e simplesmente um tacanho é errada e não nos deixará perceber as razões da sua longevidade no poder.
No texto “trata-se de governar estas bestas”, Fernando Pessoa escreve que “o primeiro dever do patriota é ver claro o que é a sua pátria”. Qual a actualidade do pensamento político de Pessoa?
O pensamento político de Fernando Pessoa é o da defesa de um feroz individualismo. Se ele estivesse vivo, hoje, por certo abominaria essa amalgama do identitarismo em que se quer dissolver cada ser humano. Seria talvez um anarquista de direita. Nalgum momento poderia, com o seu espírito libertário, votar na Iniciativa Liberal. Mas o grande valor dos textos deste livro está na sua riqueza histórica, na forma como Fernando Pessoa recusou o totalitarismo, reconhecendo-o imediatamente quer no fascismo, quer no comunismo. Poucos intelectuais europeus, mesmo os muito posteriores a ele, carregadinhos de informação, foram capazes de ter essa lucidez.
No texto, escrito em 1933, “Não há opressão em Portugal”, Pessoa classifica a ditadura como liberal e menospreza, por exemplo, a censura na imprensa, mas em 1935, no ano em que morre, dois anos após Salazar ter assumido a liderança do governo, lamenta, por exemplo, “a venda a retalho da alma portuguesa” e escreve o poema ‘António Oliveira Salazar’ (“Bebe a verdade /E a liberdade, /E com tal agrado/ Que já começam / A escassear no mercado”). O poeta antecipa rapidamente o que está por vir?
Fernando Pessoa, durante quatro anos, de 1928 a 1932, como milhões de portugueses, saudou o ministro das finanças que Salazar foi, como um ministro competente e com resultados que ele percebia como bons, como a imprensa internacional, em particular a inglesa, os saudou também. Mas foi sempre reticente quanto à passagem do “contabilista” a estadista. Diria que a percepção da tirania, que Salazar torna transparente com o partido único e com a montagem do aparelho autoritário, amargurou o último ano de vida de Pessoa – são de uma grande desolação os seus últimos textos – e precipitou a sua morte. Cereja em cima do bolo, se assim se pode dizer, a forma como Salazar concebe o papel da literatura, e de toda a criação artista, fazendo dela um instrumento servil do Poder e da sua moral, revoltou e tirou forças a Pessoa, que decidiu não mais escrever, por não querer escrever num quadro a que ele chamou “sovietismo de direita”.
A “desilusão”, precipitou a morte do poeta, como diz, ou a doença associada ao consumo de álcool?
Não sou um conhecedor profundo da biografia clínica de Pessoa, mas sabemos hoje como os traumas afectivos assombram e têm consequências somáticas. Que Pessoa rejeitou, pessoal e vivencialmente, o crescimento e densificação do autoritarismo de Salazar, nas roupas cada vez mais sinistras do Estado Novo, não tenho dúvidas. O artigo que ele escreveu a contestar o ataque e proibição da maçonaria é a sua última resposta vigorosa. Depois, segue-se a queda, ele já não vai à entrega do Prémio ao seu livro “Mensagem”. Adivinhava porventura o discurso que Salazar ali ia fazer e no qual, seguindo a “regra soviética”, como lhe chama Pessoa, Salazar praticamente determina o que um escritor “deve escrever”. Daí em diante, Pessoa fecha-se num casulo de amargura.
O texto ‘Chamamos-lhe por vezes jesuíta’ fala precisamente do papel da literatura e antecipa de uma forma absolutamente lúcida questões como quem o poderá substituir e quem o poderá derrubar. O pensamento de Fernando Pessoa reflecte de alguma forma o de alguma elite da altura?
Sim, Pessoa sonha, em 1935, com o derrube de Salazar e aponta até as forças que o podem fazer: “um movimento revolucionário das esquerdas”. Não sou historiador, mas creio que, nesse tempo, entre as elites, mesmo as elites económicas, que acusavam Salazar de “bolchevismo branco”, a ideia de derrubar Salazar seria, pelo menos na teoria, apetecível: ainda não estava distante a memória dos golpes e contragolpes que infestaram a história da República.
Pessoa e Salazar não poderiam ser maiores antónimos…
Sim, basta compararmos a obra de cada um. Do lado de Salazar, a construção de uma sociedade fechada, monopartidária, em que o seu ascetismo asperge todas os aspectos da vida, do lar à literatura devota, do trabalho às relações sociais. A criação de Salazar é devota. Do outro lado, Fernando Pessoa constrói uma obra plural, em que florescem personalidades tão distintas como Álvaro de Campos ou Alberto Caeiro, cruzando o lúdico com o dramático e por vezes épico ou trágico. A criação de Pessoa é lúdica, impregnada de prazer.
O que é que mais o surpreendeu nestes textos políticos de Pessoa?
Eu sou um leitor de Pessoa que privilegia nele um lado lúdico. Magistral e dramática que seja, a construção da heteronímia releva também do gosto de Pessoa por brincar como o menino que em muitos aspectos nunca terá deixado de ser. A família diz isso mesmo, que ele divertia os sobrinhos a fingir-se bêbado, a fazer de pássaro pousado numa só pata. O que acho extraordinário na sequência destes textos sobre Salazar é ver apagar-se em Fernando Pessoa o menino e inundarem-se os textos de uma lucidez crítica que caminha do vigor dos anos 20 para o desânimo de 1935.