A viúva e a sua mala

Era a viúva e a sua mala, no aeroporto de Lisboa. Eu, sentado ao lado dela, no autocarro que nos levaria até à escada do avião. “E depois?” me perguntou ela na sua doce sintaxe brasileira. Disse-lhe que teríamos de subir a escada do avião carregando as nossas malas de mão. “Moço – desabafou, então – as saudades que tenho de viajar com meu marido. Nunca peguei mala. Ele na frente, carregando saco e eu, viu, como borboleta, lhe seguindo, falando, rindo, saltando. Ai, a saudade desse marido.”

E já suspendo a comunicativa viúva brasileira, para lembrar, não o marido morto dela, mas o estudo recente da Universidade de Pádua: a viúva, quando o marido morre, é como se lhe tirassem um capacete sufocante e húmido de cima. A viúva tem muito menos stress do que a mulher casada. O risco de depressão tomba ali uns 23%. O viúvo, esse sim, sofre: um camião de medo de ficar sozinho e abandonado, sem a sua última cuidadora. Já a viúva, consciente de que há um bom naco de vida depois do marido, vê na morte do impotente um alívio: desaparece o risco de ter de o limpar como quem limpa o rabinho a meninos.

E nem sequer vou fazer a maldade de arriscar uma analogia, vá lá, uma analogiazinha com a famosa aranha, a viúva negra. Mas recordo que a “viúva negra” seduz o macho, faz com ele amor, se assim se pode dizer, e logo a seguir o come, ou seja, devora, numa sequência de “meet, fuck, eat” irrevogável e irreversível.

E volto à saudade nordestina da minha viúva brasileira. Evocava os anos que viveu com esse marido, e vinham pelo mundo, viajando, carregados de malas para visitar o filho que agora está no Porto vindo dos Estados Unidos, ou o outro que mora em Paris. E a viúva desdobrava o seu amor por esse homem potente, que lhe fazia filhos e carregava, como Hércules, todas as malas. Estávamos ali, no autocarro que nos levaria ao avião, e a minha viúva brasileira, essa tez de pele que dá a mistura dos genes brancos, pretos e índios, voz musical, no rosto uma carga de alegria e esperança bem com a vida, que a Universidade de Pádua agora detectou em todas as viúvas, e só me saía a lembrança silenciosa da personagem da actriz Manuela de Freitas, no “Passado e o Presente” de Manoel de Oliveira. Já se esqueceram? A personagem da Manuela, uma viúva profissional, só se apaixonava pelos maridos depois de eles morrerem, para desespero do vivo marido com quem estivesse casada.

Perguntei à viúva nordestina, se vinha em viagem de luto desse viúvo prestável, límpido carregador de malas. “Moço, há quanto tempo, esse marido já morreu!” Demorou uns segundos e retomou: “Quem morreu, faz uma semana, foi meu segundo marido.” Eu ouvi e, meu Deus, agora que faço? Dou os pêsames? Já a minha viúva, com seu travo de samba baiano, se ria. Ri junto. “Como o moço se chama?” E eu disse, “Manuel como todo o português”. E ela: “Manuel, agora veja, esse segundo marido estava ao meu lado, levou a mão ao peito e tombou sem um pio.” E logo a viúva destressada abre o telemóvel e mostra a fotografia: “Veja, era esse negão, 34 anos, um cara a exalar saúde; eu com 60 e me morre nos braços.” E continuou a rir, como bem manda o estudo da Universidade de Pádua. “Ao seu lado?” remoí eu. “Manuel, seria muito pior se fosse ao lado de outra, né?!”

Com aquela sufocada timidez que qualquer Manuel tem ao lado de uma eufórica viúva brasileira, sacudi o macambúzio portuga que dorme em mim. Disse-lhe: “Em homenagem a seus viúvos, eu carrego sua mala na escada do avião, mas a senhora jura que não me pede em casamento.”

Publicado no Jornal de Negócios

Leave a Reply

Fill in your details below or click an icon to log in:

WordPress.com Logo

You are commenting using your WordPress.com account. Log Out /  Change )

Facebook photo

You are commenting using your Facebook account. Log Out /  Change )

Connecting to %s

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.