Nem vais acreditar

E já que estávamos aqui com a mão na deposição de Cristo no túmulo, juntemos as mãos para assistir à criação de Deus pela insatisfeita e perplexa humanidade.

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É um bocadinho estranho que haja quem acredite em Deus. Mas o que é mesmo bizarro é que possa haver quem acredite que não acredita.

Acreditar em Deus é ser um menino, ter sonhos de astrónomo que até muda a posição dos planetas, ter medo dos trovões ou de que ela, “tão linda que ela é!”, nunca vá gostar de mim, e poder dizer, “ó meu Deus, dá-ma inteirinha, toda, que eu prometo ser muito bonzinho!

Acreditar que não se acredita em Deus é uma coisa de miúdos impertinentes, que se julgam muito espertos por descobrirem que já não há Pai Natal e por andarem a dizer coisas muito feias sobre a Capuchinho Vermelho. Enfim, aquele género de miúdos que esfolam o joelho e se põem com cara de pau em vez de chorarem e já passou.

Na verdade, há um sentido de acreditar em Deus em que ninguém acredita. Nem mesmo o Papa. É o Deus homenzarrão, todo nu e só com umas barbas que parecem estar a arder. Perguntei na minha rua, na pastelaria da esquina, na oficina, nos dois cabeleireiros que não se podem ver nem mortos, e as pessoas acreditam em Deus como numa mousse de chocolate, como se fosse a afinação do motor que vai pôr esta máquina a rasgar como uma seta, como a doce massagem ao couro cabeludo. Todos me disseram que não é Deus quando atropelamos uma pessoa com o nosso carro, nem é Deus (embora pareça) que escreve a poesia de Herberto Helder. As pessoas sabem. Deus é um miminho que só se mete na nossa vida quando o chamamos. Em geral, quando andamos mais aflitos.

Estas pessoas, que são, todas, meninos bonzinhos, acreditam em Deus à confiança. Não precisam de estar a perguntar se Ele existe ou não, ou se é Ele com letra grande ou ele com letra pequena. Ouviram dizer e acreditam. Leram histórias e acreditam. Sabem, dos milagres “é verdade!”, e acreditam. Não se vão dar ao trabalho desagradável de ler Platão ou São Tomás de Aquino e fazem bem porque o que é bom é acreditar.

Por amor de Deus!”, dizem elas, as pessoas da minha rua, com orgulho por continuarem a ser como os pais deles, os pais dos pais, os pais dos pais dos pais. São, já perceberam, pessoas que não se envergonham dos pais que tiveram e que os apresentam às outras pessoas, mesmo às mais finas, sem estarem a dizer “ai, desculpem lá que eles são um bocadinho saloios e têm medo de fantasmas.” A mim dá-me uma grande alegria não se deitar fora uma família com mais de 2.500 anos. E sei que é mais, mas não consigo arranjar fotografias.

É por isso que me fazem aflição, não os que não acreditam (nem a Madre Teresa acreditava!), mas os que acreditam que não acreditam. Será que não viram que os que acreditam estão quase todos a fazer de conta? Alguns dos que não acreditam viram, mas o que querem mesmo é acabar com esse jogo da imaginação. Percebe-se. Quer dizer, é irritante. Só não se percebe que não percebam a inteligência da brincadeira e tentem fazer-nos crer que não é um lindo fazer de conta em que tanto se inspiraram os outros faz de conta que são a poesia, a pintura, o teatro, a música. Até mesmo os faz de conta que é fazer cidades, dar horários aos comboios e cozinhar como Jamie Oliver.

Para que faça algum sentido eles acreditarem que não acreditam, os que acreditam que não acreditam precisam de fazer passar os que acreditam por totós. “Olha, aquele acredita!” e apontam e é feio.

Tentam fingir que os que acreditam não sabem que acreditam no que sabem muito ter sido inventado com a imaginação delicada de uma menina que veste vestidos à boneca. Às vezes a boneca veste um vestidinho escolástico, outras vezes renascentista, às vezes despe-se com audácia iluminista.

Há uns (tenho mesmo um nome na ponta da língua, mas não digo), que não querem que se vistam mais vestidos à boneca. Temos de estar sempre a lembrar-lhes que, assim, não se tem o prazer de a despir, levantar um bocadinho o virginal manto à bonequinha cristã, tirar a burka à islâmica, desenrolar o sari sarapatel à budista.

Acreditar-se que não se acredita, mesmo que se tenha razão (mas razão em quê, se ninguém “acredita”), é a coisa mais chata e “desimaginativa” que pode haver. É como provar que a poesia não tem valor científico – “pronto, leva lá o raio da bicicleta, ó meu génio da matemática!

Ainda se os que acreditam que não acreditam, acreditassem que não acreditam de faz de conta, mas não, eles garantem que é científica a sua negação e que mesmo que um dos outros meninos seja bom cientista, bom político, bom poeta, só pelo facto de acreditar já é menos brilhante ou nem cintila de todo.

Os que acreditam, sabem que acreditam em histórias inventadas pelo tetravô grego com caos e noite e dia e que depois o trisavô judeu começou a contar uma história com milagres, espinhos, um calvário e não sei quantas bem-aventuranças. E sabem que há tetravôs chineses e indianos, árabes. E sabem sobretudo, sem se zangar e pôr a cara de pau de quem tem os joelhos esfolados, que foram estas histórias que nos fizeram amar como às vezes amamos, odiar, salvar, matar, socorrer, louvar, queimar, inventar, ou seja, conjugar os verbos regulares e irregulares, transitivos e intransitivos, na mais louca e imperfeita sinfonia, a única em que, afinal, nos soubemos e saberemos cantar.

Todo o crente é um fingidor. Finge tão completamente, que chega a fingir que é crença, a crença que deveras sente.

Deus vende

Bica Curta publicada no CM na 5ª feira, dia 7 de Março

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Deus vende

Einstein, o físico da teoria da relatividade, escreveu uma carta a um filósofo judeu, criticando um livro que lera. O livro, “Escolhe a Vida: O Apelo da Bíblia à Revolta”, propunha que o judaísmo fosse a base de uma nova moral altruísta.

Na carta, Einstein rejeita esse papel do judaísmo e das religiões, que considera superstições primitivas. Diz: “a palavra Deus é apenas a expressão e o produto da fraqueza humana”. A chamada “carta de Deus” foi vendida em leilão da Sotheby’s por três milhões de dólares. Afinal, Deus vende e a superstição vale o seu peso em ouro. Ah, a fortuna que eu ganhava se Deus tomasse comigo a bica curta.

Deus não pode matar-se

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Ao criar Deus, à sua imagem, mas à sua dissemelhança, o homem conferiu-lhe um conjunto de atributos essenciais e únicos, tão extravagantes como aterrorizadores. Elejo, entre outros, a omnipotência, a omnisciência e a omnibenevolência. Para que seja consistente a narrativa romanesca e filosófica com que os humanos Lhe cantam a biografia, os atributos divinos têm de revestir necessidade lógica e resistir ao desafio infame do paradoxo. Feito o exercício, é notório que exagerámos largamente pelo menos um dos atributos de Deus, o da sua omnipotência.

Por exemplo, Deus não pode matar-se. Cada um de nós pode, se assim o entender e for oportuno, suicidar-se. Deus não: a arbitrariedade do gesto negaria a Sua eternidade. Ao que acrescem razões morais: Deus não se pode matar porque o pecado Lhe é interdito. Fomos aliás tão mesquinhos ao criá-Lo que, não Lhe conferindo essa suicidária, ou até eutanásica, autonomia, chegámos ao ponto de O diminuir autorizando-nos a prerrogativa de O matarmos nós – um alemão, Friedrich Nietzsche, foi o seu mais patético e minucioso executor, no final do século XIX.

Mas há mais. Há outro impoder a beliscar a omnipotência divina. Deus não pode fazer que quem viva não tenha vivido. Estaline ou Mao-Tsé-Tung, a coberto da espúria liberdade do relativismo, deleitaram-se com a manipulação do passado, apagando vidas e reescrevendo a história. É um poder reservado aos humanos: apagar alguém da fotografia, que é como quem diz, da História. Deus está, nesse aspecto, de mãos atadas: negar existência a quem existiu seria mentir, matéria em que Deus, por lógica, metafísica e ética, é incompetente. A omnipotência divina aplicar-se-á ao presente e ao futuro (com a excepção da possibilidade de se matar), mas não se aplica ao passado.

Deus é uma possibilidade que criámos numa noite de insónia. Oferecemos-Lhe a eternidade para que Ele a viva, minuto a minuto, como um infinito pesadelo.

(Divagação melancólica e livre sobre excertos da “História Natural”, de Plínio, filtrados por “Porquê Ler os Clássicos?” de Italo Calvino, e sobre os artigos “Divine Atributes” e “Paradoxs of Omnipotence” do “The Cambridge Dictionary of Philosophy”)

A porta do paraíso

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Se aos 20 anos, no escuro do cinema, quisesse deslizar a mão acima do joelho, por baixo da tua saia, não te levaria a ver, de Terrence Malick, “Tree of Life”.

É um filme complicado e simples. Filma a infância de três miúdos, pai e mãe, no Texas dos anos 50. Filma-lhes o medo e a alegria, vida e morte. Nos filmes habituámo-nos a que a vida faça sentido. Neste, o sentido das personagens não cabe nem se resolve na vida deles. Mas é um filme belo e simples como a mão sobre a redonda doçura de um joelho.

“Tree of Life” tem sede e fome de sentido: sede cósmica; fome metafísica. Não lhe basta filmar uma família. Filma – como o Kubrick de “2001”, dirão e mentem – a origem delirante de céu e terra, a luz bruxuleante, quase nada, onde começámos (que é o nada? o que é começar?) até à obscena explosão de vida a que chamamos natureza. É um turbilhão exaltante, mas já não é tão simples: tiro a mão, retrais o joelho.

Repito: a matéria de “Tree of Life” é o sentido. A de “Apocalypse Now”, lembram-se, era o rio; a de “Eyes Wide Shut” a impotência. Malick filma o infilmável: o sentido da vida, da dor, da felicidade. Aceitemos a ilusão de que o centro do filme é Jack, o irmão mais velho. Jack diz palavras terríveis à ausência de sentido. Trata-a por Tu maiúsculo e, quando procura a graça, sufocado de fé como Job na Bíblia, diz-lhe “Quem somos nós para Ti?” Mas o que deveria perguntar é “Sem Ti, o que é que nós somos para nós?” O silêncio desse invisível Tu, Deus talvez, é pavoroso e o vazio deste “pedaço” de filme é de uma espantada complicação.

“Tree of Life” não conta uma história. Malick começa a filmar as suas personagens onde “East of Eden” ou “Rebel Without a Cause” as deixaram nos anos 50. Elia Kazan e Nicholas Ray já tinham contado as histórias de amor e ódio ao pai, desejo da mãe, mortais ciúmes de um irmão. Malick filma sobre as ruínas e fragmentos desses “clássicos”: exibe o cruel tiro dum irmão no dedo doutro irmão, mostra o nariz do rapaz que cheira e acaricia e lingerie da vizinha. Filma o perplexo Sean Penn como se o presente dele fosse uma mão e o passado lhe escorresse pelos dedos entreabertos. Presente que o passado infecta de sentido.

“Tree of Life” precisa da cara amargurada do pretensioso Sean Penn para nela desaguarem as cenas familiares dos anos 50, troços de home movie em que até a felicidade é filmada com a aura da infelicidade. Mas glória de “Tree of Life” é a cara de Brad Pitt, pasmosa criação de pai abraâmico, e é a cara de Hunter McCraken, o miúdo que, no belíssimo desenho da infância de Jack, desenha a nostalgia da inocência e a patética vontade do paraíso. Ou não fosse a porta do cinema a porta do paraíso a que se acolhe uma mão, a lisa pele de um joelho.

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