Roubaram? Prisão perpétua

Já todos vimos “Taxi Driver”. Mas sabemos mesmo quem fez e como se fez “Taxi Driver”? Não leiam se têm medo de experiências convulsas, mas este é mesmo um dos artigos que mais gozo me deu escrever.

Taxi

É um livro, “Taxi Dri­ver”, e começa exac­ta­mente onde o filme come­çou. Começa na cabeça de Paul Sch­ra­der. Da página 12 à 24, numa entre­vista catár­tica, o livro mos­tra os mio­los do seu criador.

Lemos e vemos a cabeça de um tipo que tem difi­cul­dade em dor­mir, sem­pre acor­dado até às 4, até às 5 da matina. Inqui­eto, esquizo, esconde uma gar­rafa de whisky no bolso do casaco, e mete-se no carro, a deam­bu­lar pelas wee-wee hours de Los Ange­les. Pára nuns antros a ver por­no­gra­fia, a essas horas a que se via por­no­gra­fia, antes da web bar­rar com ela as nos­sas tor­ra­das do pequeno-almoço. Não con­se­gue dor­mir, não con­se­gue comer. Sch­ra­der quer escre­ver fil­mes e traz no corpo um livro de desas­sos­sego. A esta exce­lente cabeça salvou-a um mau estô­mago. Paul Sch­ra­der teve uma úlcera e a aben­ço­ada úlcera parou com aquele ultraje aos prin­cí­pios cal­vi­nis­tas bebi­dos no leite materno. Pen­sava redimir-se aban­do­nando L.A., quando se lhe dese­nha no cére­bro a metá­fora do táxi, como a Álvaro de Cam­pos a da taba­ca­ria, e escreve o guião de “Taxi Dri­ver”.

Paul Sch­ra­der era pouco mais do que um des­gra­çado. Nin­guém lhe ligou nenhuma até escre­ver “Yakuza”, argu­mento que um estú­dio com­prou por um balúr­dio. Com milha­res de dóla­res a aquecer-lhe o ego e os bol­sos, vol­tou a “Taxi Dri­ver”. Arran­jou um par de pro­du­to­res ide­a­lis­tas, faltava-lhe o rea­li­za­dor. Foi ele que des­co­briu Scor­sese. Viu “Mean Stre­ets”, essa meia-dose de coca pura, e disse aos pro­du­to­res que que­ria o pacote inteiro: que­ria o rea­li­za­dor, Mar­tin Scor­sese, e o actor, Robert De Niro.

Está tudo neste livro, mas é pre­ciso ter algum mús­culo para o ler­mos. Com 38 cen­tí­me­tros de altura, por 25 de lar­gura, quase 4 cen­tí­me­tros de lom­bada, este é um dos casos em que o tama­nho conta. Ou seja, nem pen­sem levá-lo para a cama. Abra-se em cima de uma mesa, que nin­guém aguenta andar a ler com 5 qui­los nos bra­ços. São 400 pági­nas de pouco texto e mui­tas foto­gra­fias assi­na­das por Steve Scha­piro. Quem é Scha­piro? Não sei. Esta monu­men­tal edi­ção da Tas­chen dá-lhe hon­ras de capa e depois não lhe liga pevide. Nem uma nota bio­grá­fica, um rodapé auto­ral. Olha, foi um tipo que teve a sorte de foto­gra­far o que acon­te­ceu. Vamos então ao que aconteceu.

O Expresso tem para aqui um cro­nista, tira da vida e mete no cinema, que até parece que só há fil­mes ame­ri­ca­nos. Ora vai-se a ver e todo o ver­da­deiro artista ame­ri­cano é um mari­conço afran­ce­sado. Basta vol­tar à cabeça de Sch­ra­der que dei­xá­mos lá em cima. A cabeça dele andava assim por estar embe­bida de “A Náu­sea”, de Sar­tre. Sch­ra­der, nas­cido no Michi­gan, objecto de aus­te­ri­dade pul­si­o­nal pro­tes­tante durante a infân­cia, quis escre­ver um guião sobre o herói exis­ten­cial à euro­peia. Mamou Sar­tre, e ele não diz, tal­vez por ver­go­nha, mas se calhar tam­bém se enfro­nhou no Ber­na­nos, vendo depois nas cine­ma­te­cas o “Jour­nal d’un Curé de Cam­pagne” do esque­cido jan­se­nista que é Robert Bres­son. Ora, o que um padre de Ber­na­nos ou de Bres­son mete para den­tro em des­po­ja­mento e lei­tu­ras de bre­viá­rio, o pro­ta­go­nista de “Taxi Dri­ver” mete para fora a Mag­nums .44 – ele que visi­vel­mente, de si mesmo, tem difi­cul­dade em meter seja o que for.

Taxi Dri­ver” era, por­tanto, um filme de Sch­ra­der. Chega Scor­sese e, de ame­ri­cano para ame­ri­cano, rouba-lhe o filme. “Fui eu que escrevi isto”, disse Scor­sese ao ler o guião. “Cada uma des­tas pala­vras arde debaixo da minha fuc­kin’ skin.

Mas rou­bou como? Mudando de fran­ce­ses. Dou exem­plos e vou ser gene­roso. Sch­ra­der desunhara-se a des­cre­ver por­me­no­res do quo­ti­di­ano, pequenos-almoços, ruas, silhu­e­tas das pes­soas que pas­sam, sacando-as ao Bres­son de “Pick­poc­ket” e “Mou­chette”, coi­si­nhas mais ínte­gras e éticas do que esté­ti­cas. Scor­sese pul­ve­ri­zou as ideias depres­si­vas e a con­cep­tu­a­li­za­ção de Sch­ra­der: pas­sou tudo a ser godar­di­ano, ima­gens ner­vo­sas, tra­ba­lha­das a tra­vel­lings e pano­râ­mi­cas. E há outra coisa: Sch­ra­der tinha escrito um filme cal­vi­nista, des­pido, ascé­tico. Está no Robert De Niro do filme, naquele braço tenso e teso que De Niro mos­tra ao espe­lho e que pode­mos ver, no livro, nas 22 pági­nas de fotos, de beleza devas­ta­dora, do capí­tulo “total orga­ni­za­tion is neces­sary”.

Era o que Sch­ra­der que­ria, mas o cora­ção de Scor­sese, for­mado em Vir­gem Maria, roma­rias, pro­cis­sões e comu­nhão solene, cris­mou aquela trampa seca e gélida de Sch­ra­der com, digo eu, um renas­cen­tismo sici­li­ano: Nova Ior­que, a cidade do filme, converte-se numa igreja cató­lica. Néo­nes como se fos­sem alta­res, mul­ti­dões de pere­gri­nos em noi­tes de 42nd Street, semá­fo­ros e faróis que pare­cem a pro­cis­são das velas. Scor­sese meteu um calor medi­ter­râ­nico onde a Sch­ra­der fazia um frio escandinavo.

DeNiro

Há sem­pre um ladrão que rouba outro ladrão. Iro­nia das iro­nias, Robert De Niro rou­bou a Scor­sese, que já a rou­bara a Sch­ra­der, a melhor cena. Lembram-se? Frente ao espe­lho, o actor expe­ri­menta as armas, corpo magro, seco, que jamais pen­sa­ría­mos que viesse a dar a bola redonda e balofa de “Raging Bull”. Sch­ra­der via a cena quase como uma ascese, via De Niro como uma frí­gida Teresa d’Ávila que tirasse um Colt 38 de entre as per­nas. Mas Scor­sese fil­mou tudo com o baixo-ventre de Godard, numa linha “mon­tage, mon beau souci”, numa frag­men­ta­ção meio expe­ri­men­tal. Um a rou­bar ao outro e, do nada, a olhar-se ao espe­lho, o cabrão do actor começa a dizer coi­sas, “are you tal­kin to me, are you tal­kin to me!”, num impro­viso que não estava escrito, nem pla­ni­fi­cado, dei­xando os donos do filme a tinir. De Niro, nessa cena, vale uma década de cinema.

Rou­bou mais. De Niro rou­bou a cabeça ulce­rosa que fizera Sch­ra­der escre­ver tanta soli­dão. Numa foto, na página 13, vê-se De Niro, a pé, com o disco que vai ofe­re­cer a uma puta­tiva namo­rada. Há um tipo atrás dele, de fato azul, e é tudo igual, a aber­tura de bra­ços, o mesmo botão aper­tado do fato, as per­nas cam­baias. Esse tipo é Paul Sch­ra­der e vê-se que é, como De Niro, o mesmo tipo de rato que, a pé ou de táxi, se move bem no esgoto mais escuro.

Taxi Dri­ver” é o livro de um filme que nos rouba a calma e o sos­sego. Com um fri­go­rí­fico de emo­ções den­tro de si, um tipo con­duz um táxi na noite de uma cidade que ele vê como uma cate­dral pejada de lixo humano. Sonha com um sopro de reden­ção que lave tudo a san­gue. Tipos des­tes, avisa Sch­ra­der, devem ser aba­ti­dos. Tenho agora o tipo preso num livro de cinco qui­los da Tas­chen. Pri­são perpétua.

De Niro

Do coração e dois palmos abaixo

Fizeram-me perguntas. Três. Aqui. As perguntas são de J.A. Nunes Carneiro e o sítio chama-se Novos Livros, “uma revista de leitores para leitores, porque gostamos muito de partilhar”. Para mim, foi um prazer.

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1-Como surgiu a ideia de escrever este seu livro «O Pequeno Livro dos Grandes Insultos»?

R- Escrevi, por amor à fala e às palavras da amada cidade de Luanda, um Pequeno Dicionário Caluanda. Ora, depois dessa degustação tropical, veio-me aos sentidos que os sons mais bonitos e as combinações mais imaginativas, por isso mais penetrantes, são as dessa linguagem que se aventura pelos territórios do tabu, ou seja os mais obscenos palavrões, os insultos que fazem correr uma cortina de vergonha pela cara de qualquer um. Estava dado o mote para fazer um livro, ou melhor, uma declaração de amor aos grandes insultos e aos mais nobres palavrões.

2-Sendo um livro pequeno em tamanho, sente-se que houve um pesquisa minuciosa: o que mais o surpreendeu nesse processo?

R- Houve uma onda de amizade. As contribuições chegaram-me de todos os amigos, do recôndito Oriente ao Canadá, passando pela nobre e invicta cidade do Porto. A Guerra e Paz, todinha, e em particular a equipa editorial, deu um precioso contributo, e o miúdo malcriado que descobri ainda existir nesta minha velha carcaça, o adolescente de Luanda, santinho em casa e desbragado na rua, ressuscitou em todo o seu vernacular esplendor. Sim, também houve uns livros pelo meio.

3-Depois de lermos este seu livro, em que estante o devemos arrumar: junto das enciclopédias, dos livros de humor, dos livros de auto-ajuda, dos manuais de negociação ou dos livros inclassificáveis?

R- Este é um livro que nos põe a saltar o coração e nos acaricia dois bons palmos mais abaixo – a que lugar da estante é que isso corresponde? Acho que talvez seja melhor levar este livro para a mesinha de cabeceira. Afinal, está provado, o palavrão é mais do que comunicação, é um processo de interacção directa com os centros de emoção de qualquer ser humano. Uma só classificação: paixão.

A tesoura de Grace Kelly

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O dinheiro tanto move montanhas como movia Alfred Hitchcock e as personagens dos filmes dele. Por dinheiro, um antigo campeão de ténis, personagem de “Dial M For Murder”, manda matar a mulher, temendo que ela o deixe e leve a fortuna, trocando-o por um romancista de policiais, como romancista de policiais também era o meu amigo Dinis Machado, que muito amava a sua Dulce Cabrita.

Onde eles estejam, conto-lhes esta história, que os deliciaria. A mim, contou-ma um livro de Vincent Pinel, o monumental “Le Siècle du Cinèma”, que só não vem mais aqui falar connosco porque pesa uns autoritários e inamovíveis cinco quilos.

Foi em Marselha, e era 1982. Não minto se disser que estou a ver, nessa Marselha então pintada a crime, um assassino a soldo infiltrar-se numa casa onde está a mulher casada. O flagicioso vai matá-la. Foi o marido da mulher marselhesa que lhe encomendou a morte. Enquanto o assassino faz o trabalho, o marido traça, a régua e esquadro, o seu alibi. Viajou para Paris e levou a filha. Num gesto que ele imagina de altíssimo requinte, entra num cinema de Saint-Germain des Prés, e leva a filha a ver “Dial M For Murder”, o primeiro e único filme que Hitch fez em 3D, para mais nos arrepiarmos e sentirmos o momento em que, defendendo-se, a mulher crava uma tesoura nas costas do assassino, que a deveria estrangular. Grace Kelly, a mulher do filme de Hitchcock, salva-se.

O homem real, o francês que encomendou a morte da mulher em Marselha, cinefilamente sentado ao lado da filha, sabe que vai corrigir na realidade o que falhou na ficção. O seu sórdido plano cumprir-se-á, a mulher será estrangulada e o seu alibi, tão turisticamente artístico e afectivo, é impenetrável e indestrutível. Não contou com a vibrante energia que a cena de sobrevivência da delicada Grace Kelly transmite ao mundo sempre que um cinema a exibe. Em Marselha, a mulher casada, tomada pelo instinto de Grace Kelly, resiste e sobrevive. O assassino e o mandante são presos, subordinando-se a realidade ao que a arte lhe ensina.

Só Grace Kelly não sobrevive. Nesse Setembro de 1982, cansada talvez pela energia que sempre o artista perde quando os seus filmes passam, estampa o carro numa das altíssimas ribanceiras onde já filmara com Hitchcock. Sai do corpo a arte que salva outros corpos.

Scissors

Publicado no Expresso

a tua boca entreaberta

LeahSe estivesse vivo (está?) teria 117 anos. José Rodrigues Miguéis foi o nosso único (ou o primeiro?) escritor de Bruxelas. Agora que Bruxelas é praticamente nossa, deixem-me evocar o conto da literatura portuguesa em que mais Bruxelas nos aparece de sexualidade cálida e generosa.

São só 28 páginas. Quase todas passadas no interior de uma pensão de Bruxelas. Vinte e oito páginas de lirismo sensível e “coagulado”, nas palavras do próprio, o hoje quase ignorado José Rodrigues Miguéis, que andou “clandestino” pela Europa, e se auto-exilou na América, onde acabou por morrer, bem longe da ditosa pátria que a ele a ditadura tornara tão desamada.

A história passa-se, claro, em Bruxelas – terá sido entre 1929 e 33 que Miguéis lá viveu – quando a Europa era um desunido e inconciliável puzzle de nações. Local da acção: já disse que era uma pensão, acrescento que tinha “o que quer que fosse de decadente, descuidado e boémio.

O narrador, uma voz quase apática, de olhar distraído e ânimo sufocado (num desconsolo que hesitava entre as três e as quatro da tarde), é surpreendido por um rosto, um corpo, uma mulher, o centro de uma narrativa tão ágil que se atreve a apresentá-la através de interrogativa, no meio de um monólogo sobre os méritos da vida em solidão e em lugares longínquos: “Mas esta dialéctica da misantropia (ou timidez) não será demasiado especiosa para ti, Léah?

Nós, de Léah, até aí, não tínhamos sequer ouvido falar. E quase nada continuaremos a ouvir dizer, a não ser apanhar-lhe o rumor de um riso, o nome dela gritado por outros hóspedes, farrapos de conversas a meia voz. E silêncios que talvez sejam os dela.

Já vamos a um terço do conto (ou novela?), quando a raiva de um quarto por arrumar faz o narrador gritar, “com todo o meu fôlego de português da serra: — Léaaaaah!

E em três curtos parágrafos, o tempo de subir escadas, de se acelerar o coração, vemo-la – “vi-te: pela primeira vez” diz com mais propriedade o narrador – e a luz em cheio na cara revela “A tua boca entreaberta de espanto, viva e carnuda…” No mesmo parágrafo vemos mais, ficando a saber de seios, fortes e salientes, e da curva criadora e firme das ancas

Na vida deste narrador sem qualidades, Léah, a criada da pensão, falando o “francês aveludado de Pas de Calais”, é uma explosão que se “abre e rescende como uma flor”, como é (na minha mal informada opinião) a primeira afirmação na literatura portuguesa de uma sexualidade desinibida, sendo seguramente a celebração de uma “carne comunicativa, terna e compassiva”.

O narrador e Léah amam-se, a partir daí, todas ou quase todas as noites, ou mesmo às quatro da tarde – cabeça de quem reclinada sobre o regaço de quem? boca sincera e solícita dela a apaziguar a lusitana exasperação dele, a quem ela chama Monsieur Carlôss.

Léah oferece-se tépida e pagã, como pagã vai depois oferecer, a Monsieur Carlôss, a irmã, levantando-lhe devagar a saia: “Não é verdade que é linda?… E ainda é virgem” e pedindo-lhe que a beije, o primeiro beijo que a fará sofrer.

Léah, para que conste, tem um pauv’ Fe’dinand, de bom emprego e pressa de casar, que ela não ama, mas de quem gosta, por bonito e decente.

Foi pela irmã, pelo pauv’ Fe’dinand resignadamente contente só de sair com ela, ou foi por causa de Madame Lambertin, a patroa flamenga de maneiras livres e em cujo colo o narrador antes – antes de ti, Léah, antes de ti – tomara equivalentes liberdades – por quem ou por que foi não sabemos, mas ao narrador e Léah acontece-lhes o primeiro beijo funesto: “por dentro de mim eram tristes e amargos” diz desse beijo e dos que se seguem o eu que Miguéis pôs a contar-nos a história.

Quem, como na canção patética de William Blake, terá, primeiro, acolhido no acendrado colo o imundo verme do egoísmo e do medo?

Léah, francesa de Pas de Calais, criada de pensão em Bruxelas ama, em liberdade e plenitude juvenil, um narrador que se diz português e enfronhado em experiências de biólogo difuso. Ele sofre as dores do pauv’ Fe’dinand e passa a julgar-se “réu de traição e deslealdade”.

Ela talvez visse no amor dele a fuga a uma existência mesquinha e monótona. Ele esquiva-se, buscando na fuga alívio de um amor que estilhaça o egoísmo da sua convicta misantropia. E separam-se.

Passam dias, semanas, meses, um ano ou mais, “quando, um pouco atrás de mim, uma voz familiar exclamou com surpresa:
– Monsieur Carlôss”
Voltei-me. Eras tu.

Para o fim da história faltam mais de uma dúzia de parágrafos, o que dá, com bom espaçamento e letra de corpinho decente, duas páginas e meia. É o que vos peço que leiam depois de terem lido as emotivas 26 páginas que as antecedem. “Léah” é um conto escrito num português simples e cristalino. Límpido, disse Jorge de Sena. Está no volume “Léah e Outras Histórias, nas Obras Completas de José Rodrigues Miguéis, da Editorial Estampa. A 6ª edição, a que conservei, é de 1981.

Miguéis
Miguéis

Os olhos de Monica Vitti

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Não me atrevo à injustiça de clamar que já não ninguém nesta enorme sala que ainda se lembre de quem era Antonioni. Há e não só os frequentadores da Cinemateca – não sei quantos se lembram, mas pelos braços levantados parecem-me ser mais do os dedos de duas mãos. E, com sorte, lembram-se também os que, inspirados pela peregrina e longínqua ideia de eterno feminino, ainda guardam, e sempre vão guardar, naqueles olhos que a terra há-de comer, a silhueta da mais sofisticada e nórdica das italianas, Monica Vitti.

Michelangelo Antonioni e Monica Vitti encontraram-se pela primeira vez num filme perturbante, austero e escasso, que deu pelo nome de “L’Avventura”. Preto e branco, franciscanamente financiado, quanto mais não fosse porque o realizador se limitava a dizer aos produtores que era a história de uma rapariga que desaparecia numa ilha desabitada e que nunca mais ninguém encontrava. E, dito isto, não dizia, nem sob tortura, mais uma palavra.

A mais bela história da rodagem, onde não é descabido aludir, para estar de acordo com o espírito de Antonioni, a esses fantasmas da imaginação a que chamamos o Mito, o Mistério e o Eterno, aconteceu em Lisca Bianca – a tal ilha deserta – quando, no horizonte, a alguns quilómetros, surgiu uma tromba marinha, uma espécie de gigantesco cone invertido. Lá vinha ele, ameaçador, em direcção a Lisca Bianca. O cineasta decidiu incorporar a “aparição” no filme e estava disposto a tudo (danassem-se céus e infernos) para ter a imagem mais próxima que pudesse.

LAvventura

Mas a bela Vitti de olhos verdes, quando a população local que trabalhava na equipa, lhe disse que se a tromba ali chegasse os poderia arrastar a todos, entrou em pânico. “E che si fa?” perguntou. Um dos homens, Bartolo, tinha dons e sabia la parola, uma reza ritual que poderia atalhar a tromba marinha. Pode bem ser que os leitores desta breve nota sejam leitores de pouca fé, mas fé e crença era o que a Vitti mais tinha e aqueles seus esplendorosos olhos verdes logo ali imploraram a Bartolo que usasse o dom. E conta a tão bela como tremente Monica Vitti: “Ele olhou-me, seriíssimo, depois, levantou a perna esquerda e cruzou-a com a direita, fez o sinal da cruz, murmurou a fórmula e, acreditem ou não, a tromba desapareceu. Michelangelo, que era céptico quanto aos poderes de Bartolo, começou a atirar-se a ele, a insultá-lo e a ameaçá-lo de despedimento”.

 Serve o vídeo abaixo para que recordem a “incomunicável” beleza desse filme que foi o primeiro da famosa “trilogia da doença dos sentimentos” – “L’Avventura, La Notte, L’Eclisse – que Antonioni assinou.

Carta Aberta a Marcelo

Por amor aos livros, no que se deseja que não seja apenas um gesto quixotesco para conseguir que os nossos filhos e netos continuem a alimentar no livro a sua imaginação, a sua afectivdade e o seu conhecimento, um editor, que por acaso também é o dono desta Página Negra, escreveu esta Cara Aberta ao Presidente Marcelo.

loucos

 

Carta Aberta
ao Presidente da República Portuguesa

Presidente Marcelo,

Dê-nos mais bebés. O país inteiro, Senhor Presidente, pede-lhe mais bebés, e a Guerra e Paz, Editores, por razões egoístas, mas benignas, junta-se ao coro. Dê-nos mais bebés, Presidente Marcelo! Conhecendo e admirando o seu espírito voluntarioso, não lhe pedimos que seja o Presidente a fazê-los, pondo em alvoroço milhares de lares portugueses. Mas conhecendo todos, e todos admirando a sua veia inovadora e o seu azougado dinamismo, pedimos-lhe que inicie uma campanha que lance os portugueses e as portuguesas nos braços uns dos outros para que uma nuvem de mil cegonhas cubra os céus de Portugal.

Atrevemo-nos a sugerir que, a partir de agora, o Presidente Marcelo, num acto de discriminação positiva, só faça selfies com casais que apresentem sinais exteriores de estado interessante. Estamos certos de que, num salto de fé, um milhão de portugueses se apressaria a mergulhar na cálida enseada em que é preciso mergulhar-se para que nasçam bebés, com o mesmo entusiasmo e lírica graça com que já o vimos a si mergulhar nas fecundas águas de tantos rios e praias de Portugal.

Eis, senhor Presidente, o lema para a próxima fase do seu mandato: «Já se fazem, outra vez, bebés em Portugal.»

Permita-nos, Senhor Presidente, que confessemos as nossas razões particulares para o termos vindo desinquietar nestes propósitos. Vaidade de pais babosos, achamos que temos a mais bonita colecção do mundo de livros infanto-juvenis. Chama-se «Os Livros Estão Loucos» e foi feita à sua imagem e semelhança: são livros cujo exterior, pintado à mão, causa logo o mesmo oh! de espanto e alegria que o belo bronzeado do seu rosto provoca aos portugueses; por dentro, são livros tão imprevisíveis como o Senhor Presidente, nem sempre vão escritos por linhas direitas e podem até obrigar os jovens leitores a andar com a cabeça à roda se os quiserem ler, como o Senhor Presidente faz tão bem a jornalistas ou a políticos.

Mas que livros são esses, exige-nos agora saber? São clássicos, como clássicos são os melhores modelos que inspiram a sua acção política. «Os Livros Estão Loucos» são adaptações de Shakespeare ou de Cervantes, por exemplo, o Robinson Crusoé, o Romeu e Julieta, o Oliver Twist ou o último, o Dom Quixote. Tal como o Senhor Presidente tem adaptado a Portugal as lições dos grandes estadistas do passado, colorindo-as à sua maneira, nós adaptámos estes clássicos de forma a que os jovens leitores, dos oito aos 14 anos, tenham aqui a mesma sensação de frescura e aventura que o Presidente Marcelo teve, pequenino e bem antes de ser Presidente, quando se atirou pela primeira vez às bravas ondas do Guincho.

A Guerra e Paz, Editores, em pouco mais de um ano, fez nove filhos, estes livros que estão cheios de aventura, de irreverência, de cores e até de algumas provocações. E veja, estimado Presidente, com os seus próprios olhos, se não são bonitos! Há uma geração que está já a lê-los. Mas não queremos que, amanhã, estes livros fiquem tristes, na solitária estante, sem os leitores que merecem ter. Presidente Marcelo, dê-nos hoje os bebés que hão-de ler estes «Livros Loucos» amanhã.

Presidente, aconselhe o nosso Primeiro, mande recado ao Parlamento: que os portugueses se amem para que o país se encha de alegria e possamos voltar a ver as ruas cheias de risos e filas e filas de felizes catraios a cantarem «Que linda falua, / que lá vem, lá vem, / é uma falua, / que vem de Belém.»

Dê mais bebés a Portugal, Presidente. Nós já temos os livros que os hão-de encantar. «Os Livros Estão Loucos» do presente sonham com os jovens leitores do futuro, e o futuro está na sua mão.

Esquerda e direita

pinterest

Frequentei as casinhas da esquerda o bastante para dizer que muitas vezes paira por ali, entre a salinha de estar e o caótico quarto, uma enorme dificuldade para se conviver com a beleza e, sobretudo, com a felicidade.

Em muito avarandado de direita pode até acontecer que, na piscina, se dispa tudo mas, com alguma frequência, o preconceito e a rigidez na relação com o “outro” são mais inamovíveis do que os muros de um castelo.

Mas não amarmos, à esquerda e à direita, é que não é solução. Porque, como disse o poeta:

A vida é bela, sem dúvida:
sobretudo por não termos outra,
e sempre supormos que amanhã se entrega
o corpo que já ontem desejávamos.

Jorge de Sena, Exorcismos

Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo

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Anaïs Nin e Henry Miller

Amor que acaba, nunca foi amor. Amor que é amor é eterno e não faz batota: amor que é amor nunca acaba.

Quem cantou a ideia de “amor único” foi Nelson Rodrigues, cronista brasileiro que, em “A Cabra Vadia” ou “O Óbvio Ululante”, escreveu com ortográfico desacordo um português querubínico. A Nelson sempre o atormentava a mesma nostalgia, a nostalgia do amor único e eterno. O amor do menino pela menina da porta ao lado, que começa aos 12 anos e dura a vida toda, o amor dos amantes que se matam, consolados pela vertigem duma paixão que os dispensa, sem cerimónias, de prestar contas ao mundo ou aos homens, a Deus ou ao Diabo, ao Céu ou ao Inferno.

Mas dito isto, pergunto: será que estamos preparados para os extremos inclementes de tanta paixão? Ou será que o amor eterno, o amor único, é apenas literatura?

E se a paixão for vil ou mentirosa, ou luminosa e efémera como um relâmpago, é menos paixão? Deixem-me dar exemplos. Literatura por literatura, basta-me como exemplo a volúpia dos encontros proibidos de alguns escritores. Anaïs Nin e Henry Miller tiveram o mais vicioso dos romances, ali mesmo, nas barbas do marido de Anaïs, sem que jamais ele suspeitasse. Era menos amor o amor deles por causa da mansa e traída fidelidade desse homem para cujos trémulos braços, no fim, a escritora voltou, acusando Miller de reduzir as mulheres à contingência biológica de “um buraco”?

Foi menos amor o desesperado e maldito “affair” em que F. Scott Fitzgerald, esquecendo a sua deprimida Zelda, se entregou a Dorothy Parker, ainda que, nessas brevíssimas e ternas noites, a Dorothy apenas a inspirasse uma profunda compaixão?

O amor que acaba não era amor, quis ensinar-nos Nelson Rodrigues. Mas também foi ele que disse “não se poder amar e ser feliz ao mesmo tempo”. Nelson, Nelson, com um veneno nos matas, com outro veneno nos curas.