Felicidade e vida limpa

Eis as bicas curtas que fui servindo no CM, a 25, 26 e 27 de Fevereiro

A felicidade
Um estudo sobre a felicidade no Estados Unidos mostra uma tendência convergente entre brancos e negros, homens e mulheres. Comecemos pelas mulheres. As brancas, cuja vantagem era significativa, tiveram nas últimas décadas uma persistente queda nos seus padrões de felicidade. Exactamente o oposto das mulheres negras que melhoraram os seus índices de forma consistente e progressiva. Os homens negros melhoraram dos anos 70 aos 90 e estagnaram com Obama. Já os brancos, após a crise do subprime, tiveram um declínio a pique, baixando largamente a sua tradicional vantagem sobre os outros grupos. Começou aqui o ressentimento trumpiano?

Uma casa portuguesa
Já no fim dos meus tempos de punhinho no ar havia uma canção da Sérgio Godinho que levantava como bandeiras a paz, o pão, a habitação. Por causa da habitação, devíamos voltar a cantá-la. Não é só o equilíbrio do rosto das nossas cidades, e sobretudo de Lisboa e Porto, que está em risco, com a louca subida de preços e arrendamentos.

O fosso social começa e resolve-se na habitação. Expulsos para periferias, o casais e os jovens ficam longe dos melhores empregos, os filhos deles perdem acesso às melhores escolas. Na longa distância entre casa e emprego esvai-se a felicidade, o tempo do prazer e da partilha: começa a desigualdade.

O estigma da direita
A palavra “direita” ainda é, em política, um estigma. Todavia, se além do PS, achamos que a esquerda inclui o BE e o PCP, nada no mais razoável senso comum confere superioridade moral ou prática à esquerda. O horror que foi a PIDE e a repressão em muito pior foi também uma prática das PIDES dos regimes comunistas, ditos de esquerda. E se o que nos move é o bem-estar económico e uma vida digna dos portugueses, o melhor modelo que temos são países com governos de direita ou centristas, que o PS e PSD não enjeitariam, com prósperas economias de mercado, que geram riqueza para distribuir. Essa direita é, afinal, liberdade e progresso.

Bica Curta, Putin e etc

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De Putin a Cristina Ferreira, passando pelos meus dilemas de adolescência,
musseque e liceu, foi este o semi-diário de uma semana, de 3ª a 5ª, todo feito a Bicas Curtas. Sempre de chapéu posto.

putin

Bica Curta
3ª feira,  15/1/2019

Um sabor a Putin
Não sei se Putin vale uma bica curta. Mas antes de falar de Putin, falo da minha mãe, que já está no céu, e de lá me perdoa ainda mais do que na terra me perdoava. Aos cinco anos, a minha mãe deu-me o primeiro café. De cevada. Associo o sabor à bomba atómica que me assombrou a infância. Vivíamos no medo e excitação da guerra nuclear. Era um jogo de faz de conta, inócuo como esse café de meninos.
Mas agora Putin tem misseis nucleares hipersónicos. Indetectáveis. Indetectáveis e ininterceptáveis. Disse-o, a avisar Trump, bebia eu uma bica curta. Voltou-me à boca o atómico sabor a medo da infância. Ah, caneco, já não tem é a mesma inocência.

musseque

Bica Curta
4ª feira,  16/1/2019

Meu musseque, meu liceu
Gostava de saber, mas não sei. Levo a chávena aos lábios e nem a bica me sabe bem. A igualdade entre os seres humanos é um desejo que tenho desde menino. Cresceu comigo em Luanda, no musseque Sambizanga, onde cheguei aos cinco anos. Tenho outro desejo, o da incondicional liberdade. Percebi-o nos sete anos adolescentes em que estudei no Liceu Salvador Correia. São dois desejos que deviam ser gémeos. Porém, basta que os tão diferentes seres humanos exerçam a sua liberdade para que logo nasçam desigualdades. O que fazer? Limitamos a liberdade aos mais dotados reprimindo a sua riqueza criativa? Ou aceitamos a fatídica desigualdade?

cristina

Bica Curta
5ª feira,  17/1/2019

Ferros e bandarilhas
Os meus velhos amigos, da minha velha esquerda, estão cada vez mais exclusivistas. Só bebem a bica, curta ou cheia, em clubes privados que reservem o direito de admissão. Quando viram a Cristina Ferreira na capa do seu Expresso e do seu Público atiraram fora o pires e a chávena. A ideia de que haja cada vez mais actividades e funções com valor e dignidade social são bandarilhas e ferros que lhes cravam no lombo, olé. O simples facto de alguém ser excepcional num campo que não controlam horroriza o seu elitismo bacoco. E eu a pensar que a utopia em que juntos nos deitámos era a da mais ampla expansão da igualdade de tarefas e profissões…

Publicado no CM, Correio da Manhã

Esquerda e direita

pinterest

Frequentei as casinhas da esquerda o bastante para dizer que muitas vezes paira por ali, entre a salinha de estar e o caótico quarto, uma enorme dificuldade para se conviver com a beleza e, sobretudo, com a felicidade.

Em muito avarandado de direita pode até acontecer que, na piscina, se dispa tudo mas, com alguma frequência, o preconceito e a rigidez na relação com o “outro” são mais inamovíveis do que os muros de um castelo.

Mas não amarmos, à esquerda e à direita, é que não é solução. Porque, como disse o poeta:

A vida é bela, sem dúvida:
sobretudo por não termos outra,
e sempre supormos que amanhã se entrega
o corpo que já ontem desejávamos.

Jorge de Sena, Exorcismos