Bica Curta, Putin e etc

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De Putin a Cristina Ferreira, passando pelos meus dilemas de adolescência,
musseque e liceu, foi este o semi-diário de uma semana, de 3ª a 5ª, todo feito a Bicas Curtas. Sempre de chapéu posto.

putin

Bica Curta
3ª feira,  15/1/2019

Um sabor a Putin
Não sei se Putin vale uma bica curta. Mas antes de falar de Putin, falo da minha mãe, que já está no céu, e de lá me perdoa ainda mais do que na terra me perdoava. Aos cinco anos, a minha mãe deu-me o primeiro café. De cevada. Associo o sabor à bomba atómica que me assombrou a infância. Vivíamos no medo e excitação da guerra nuclear. Era um jogo de faz de conta, inócuo como esse café de meninos.
Mas agora Putin tem misseis nucleares hipersónicos. Indetectáveis. Indetectáveis e ininterceptáveis. Disse-o, a avisar Trump, bebia eu uma bica curta. Voltou-me à boca o atómico sabor a medo da infância. Ah, caneco, já não tem é a mesma inocência.

musseque

Bica Curta
4ª feira,  16/1/2019

Meu musseque, meu liceu
Gostava de saber, mas não sei. Levo a chávena aos lábios e nem a bica me sabe bem. A igualdade entre os seres humanos é um desejo que tenho desde menino. Cresceu comigo em Luanda, no musseque Sambizanga, onde cheguei aos cinco anos. Tenho outro desejo, o da incondicional liberdade. Percebi-o nos sete anos adolescentes em que estudei no Liceu Salvador Correia. São dois desejos que deviam ser gémeos. Porém, basta que os tão diferentes seres humanos exerçam a sua liberdade para que logo nasçam desigualdades. O que fazer? Limitamos a liberdade aos mais dotados reprimindo a sua riqueza criativa? Ou aceitamos a fatídica desigualdade?

cristina

Bica Curta
5ª feira,  17/1/2019

Ferros e bandarilhas
Os meus velhos amigos, da minha velha esquerda, estão cada vez mais exclusivistas. Só bebem a bica, curta ou cheia, em clubes privados que reservem o direito de admissão. Quando viram a Cristina Ferreira na capa do seu Expresso e do seu Público atiraram fora o pires e a chávena. A ideia de que haja cada vez mais actividades e funções com valor e dignidade social são bandarilhas e ferros que lhes cravam no lombo, olé. O simples facto de alguém ser excepcional num campo que não controlam horroriza o seu elitismo bacoco. E eu a pensar que a utopia em que juntos nos deitámos era a da mais ampla expansão da igualdade de tarefas e profissões…

Publicado no CM, Correio da Manhã

Bica Curta

 

bica curta

 

Mudei de vida em 2019, como já o cineasta Paulo Rocha nos avisava com o título de um belo filme seu protagonizado por Maria Barroso. Aceitei o desafio que o Octávio Ribeiro me lançou para escrever no Negócios e no Correio da Manhã.
Em boa verdade foi este último o grande desafio. Para o Negócios escrevo uma crónica com o tamanho a que estou habituado. O bico de obra era escrever à 3ª, 4ª e 5ª para o CM o que bem se pode chamar uma micro-crónica. Nunca mais de 640 caracteres, ou seja, duas a três frases. Como se conta uma história, como se desenvolve uma ideia e se chega a uma conclusão em três mirradas frases?
Eis a minha apresentação e a primeira semana. A cada 6ª. feira deixarei aqui a semana anterior 

 

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Bica Curta
5ª feira, 3/1/2019

Ui, quem é este?
Bom dia. Sou novo aqui. Se não se importam, virei a este café, à 3ª, 4ª e 5ª. Como me estão a tirar as medidas, confirmo: sem chapéu, tenho um metro e sessenta e quatro, e muita boa vontade.

Apresento-me. Casado, uma filha. Sou editor. De livros. Fiz televisão e filmes. Tenho uma certa idade, mas mal se nota. Apanhei o fim do império na longínqua Angola. Fui católico, mas não papa-hóstias. Aos 20 anos, era maoista, versão tropical; agora, entre direita e esquerda, tem dias. Gosto do Marcelo e não sou contra os políticos. A minha devoção? A Eusébio, imparável deus da minha infância. Como quero a bica? Curta, sim! Mas escaldada.

beijo

Bica Curta
3ª feira, 8/1/2019

Então e os beijos?
Hoje, a altura média do homem português é de um metro e setenta e três, o das mulheres menos 10 cm. Num século, o homem português cresceu quase 14 cm. Isso significa que eu, com o meu metro e sessenta e quatro, sou um anacronismo histórico. Ou seja, sou um tipo do século XIX que veio aqui tomar uma bica curta.

Mas o que mais me preocupa é a mulher portuguesa. Crescendo embora 12,5 cm num século, nesta escala de progressão, estará cada vez mais distante do homem, numa óbvia descriminação de género, que me indigna. Para não falar de posições mais arriscadas, e os beijos? Como nos beijaremos daqui a um século? Cada beijo uma hérnia?

suica-

Bica Curta
4ª feira, 9/1/2019

Parece que são parvos
Os suíços devem ser parvos. A mim é que não me apanham a beber bicas curtas na Suíça. Há dias, ou há meses, sei lá bem, foram a votos e rejeitaram que as quatro semanas de férias pagas que já recebem passassem a seis. E rejeitaram também que se estabelecesse uma regra para limitar o salário dos patrões a doze vezes o salário mais baixo da empresa. Pior, três quartos dos suíços votaram contra a criação de um salário mínimo universal. Raio de país de queijos e relógios de cuco.

Dizem eles que isso aumentaria os custos do trabalho e diminuiria a potente capacidade de exportação do país. Eh pá, há gente que não gosta de viver bem.

putin

Bica Curta
5ª feira, 10/1/2019

Um sabor a Putin
Não sei se Putin vale uma bica curta. Mas antes de falar de Putin, falo da minha mãe, que já está no céu, e de lá me perdoa ainda mais do que na terra me perdoava. Aos cinco anos, a minha mãe deu-me o primeiro café. De cevada. Associo o sabor à bomba atómica que me assombrou a infância. Vivíamos no medo e excitação da guerra nuclear. Era um jogo de faz de conta, inócuo como esse café de meninos.

Mas agora Putin tem misseis nucleares hipersónicos. Indetectáveis. Indetectáveis e ininterceptáveis. Disse-o, a avisar Trump, bebia eu uma bica curta. Voltou-me à boca o atómico sabor a medo da infância. Ah, caneco, já não tem é a mesma inocência.

Publicado no CM, Correio da Manhã