Nelson Rodrigues, a cujos pecados me confesso

 

 

Nelson
Aos 13 anos, Nel­son come­çou a escre­ver repor­ta­gens poli­ci­ais no jor­nal de que seu pai era direc­tor

Voltar a este texto é, para mim, como rezar pai-nossos e avé-marias quando era adolescente. Rezava-os, consolado pela remissão dos pecados a que, assim, podia voltar com redobrado vigor e de alma limpa. Eu pecador a Nelson Rodrigues me confesso.
O texto sofreu, como sofriam esses pecados, refinamentos perversos. Anda a ser escrito desde que me estreei na blogosfera e até pelo velho Expresso já passou. Esta é a versão longa.

Nelson, Rodrigues, O Anjo Pornográfico
por Manuel S. Fonseca

 “Ou a mulher é fria ou morde. Sem den­tada não há amor possível.”

Estava no meio de um almoço e entre gene­ra­li­za­ções eu disse que gos­tava de ser um escri­tor. “Batata!” rea­gi­ram os ami­gos com comi­se­ra­ção. Não é um escri­tor quem quer. Só é um escri­tor quem a bio­gra­fia ajuda.

Dou o exem­plo do per­nam­bu­cano Nel­son Rodri­gues. Bio­gra­fi­ca­mente ele vai ser sem­pre cari­oca, prova ululante que só depois de viver­mos muito é que devía­mos deci­dir onde nas­cer. Para o que conta, para ser um escri­tor, Nel­son nas­ceu no Rio, viveu cari­oca e cari­oca morreu.

É só o começo. Um escri­tor inventa. Nel­son inven­tou o moderno tea­tro bra­si­leiro ao escre­ver a peça Ves­tido de Noiva e ainda teve tempo para inven­tar, com seu irmão, jor­na­lista des­por­tivo, o derby de futebol do Rio, o Fla-Flu que ainda hoje, da campa onde se enerva, ele deve ver com muito dis­tor­cida pai­xão pó de arroz, fluminense portanto, já que, como jurava Nelson, “a morte não exime nin­guém de seus deve­res clu­bís­ti­cos”.

Mas não é isto o que quero dizer. A bio­gra­fia tem de dar certo muito cedo. Nel­son tinha catorze irmãos. Ter catorze irmãos, esta sim, é já uma asser­ção bíblica, um arran­que lite­rá­rio. No Rio foram morar na Rua Ale­gre, e só o nome da rua é um facto bio­grá­fico de indis­far­çá­vel volú­pia. Nel­son era menino, pou­cos anos. Os vizinhos, naquele tempo, eram uma família. Mas um dia, a vizi­nha do lado, dona Cari­dade, entrou sem bons-dias pela casa de Nel­si­nho e decla­rou à mãe de catorze des­cen­den­tes: “Todos os seus filhos podem fre­quen­tar a minha casa, dona Esther. Menos o Nel­son.” O que Dona Cari­dade disse a seguir, é dito por quem sabe que está já a sub­si­diar uma voca­ção lite­rá­ria: vira Nel­son aos bei­jos em cima dos três ani­nhos de sua filha Odé­lia. Não em pé ou de lado; em cima. E acrescentou um sublinhado pormenor, em movi­mento. Qual­quer um dirá: imaginem o que vai ser este Rodrigues sabendo-se que, sem nunca se ter posto em cima, Fer­nando Pes­soa é quem é.

Pre­nún­cio da tra­gé­dia cari­oca de que Nel­son faria a sua dra­ma­tur­gia, foi a redac­ção com que o futuro cronista assom­brou a pro­fes­sora e uma inteira escola primária. O menino escre­veu uma his­tó­ria de adul­té­rio. Con­tou, na sua infantil redacção, como um marido, com pressa de cha­mar “meu anjo” à esposa amada, chega mais cedo a casa e a sur­pre­ende nua, esten­dida de ofe­re­cida na cama, enquanto um vulto, inso­lente mas só um vulto, sal­tava viril­mente pela janela para a madru­gada indi­fe­rente e cálida. Sem per­der um milí­me­tro de tanto amor, faca cega na mão, o marido mata a mulher e tomba ajo­e­lhado aos pés da cama, a pedir-lhe “perdoa-me por me traí­res”. Estava em jogo uma bio­gra­fia: a escola não dei­xou que nin­guém lesse a redacção do menino, mas concedeu-lhe um pré­mio, pre­ve­nindo gló­ria futura.

Aos 13 anos, Nel­son come­çou a escre­ver repor­ta­gens poli­ci­ais no jor­nal de que seu pai era direc­tor. Num dia de Natal, final dos anos 20 do século que pas­sou, com falta de assunto para pri­meira página, o pai e outros três irmãos mais velhos, todos jor­na­lis­tas, deci­di­ram que a maté­ria de aber­tura seria o des­quite de um casal de pública cele­bri­dade. (Já havia jetset e “famosos” no Rio de Janeiro dos anos 20.) No dia seguinte, a dama visada avan­çou com toda a sua ofensa pela redac­ção. Não encon­trando o patri­arca, viu Roberto, o irmão mais velho, e puxou o gati­lho do revól­ver novi­nho da com­pra dessa manhã. Não sei se, antecipando o estilo de Nelson, ela terá dito: “Tome o seu pre­sente de Natal!” À frente dos olhos de Nel­son, a tra­gé­dia cari­oca consumou-se: o irmão mor­reu e o pai ago­ni­za­ria 67 dias depois, con­su­mido pela dor e por uma trom­bose cere­bral. Nesse dia, Nel­son só que­ria uma coisa: mor­rer. Ferida bio­grá­fica, nunca mais sarou.

Mesmo sabendo que não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo, Nel­son Rodri­gues amou. No começo, com a matu­ri­dade dos 14 anos e numa lógica ina­ta­cá­vel, apaixonava-se por actri­zes e dor­mia com pros­ti­tu­tas. Eram amo­res de bei­jos e solu­ços. A bai­la­rina argen­tina de olhos azuis, a estu­dante de Copa­ca­bana, a pro­fes­sora de Ipa­nema. Divi­diu com o irmão Jof­fre a pai­xão por outra bai­la­rina, Eros Volú­sia – vejam: com nomes e fac­tos bio­grá­fi­cos des­tes é fácil ser-se escritor.

Já a Rua Ale­gre lhe tinha dado ajuda em maté­ria sen­ti­men­tal. Nel­son sem­pre lem­brava o sujeito de bigo­di­nho (pode ser que não tivesse, diria ele se aqui estivesse) que a mulher xin­gava à vista do bairro todo. Uma humi­lha­ção mul­ti­pli­cada, de anos. Um dia o sujei­ti­nho débil desa­mar­rou a culpa e, tam­bém na rua, bem no meio dela, bateu. De cinto, até. A vizi­nhança cor­reu para o espec­tá­culo: “bate mais, bate mais” pediam as mulhe­res. E ele bateu com a eufo­ria de um anjo ressentido, até se can­sar. Não foi só o mulhe­rio que aplau­diu. Ela, sofrida e orgu­lhosa, atirou-se-lhe aos pés e desa­tou a beijá-lo. “Toda mulher gosta de apa­nhar” filo­so­fou o ado­les­cente Nelson.

Sexo e morte, sublime e sór­dido – que outra coisa é que pode ser uma bio­gra­fia? Casou. Um dia, regres­sando ao jor­nal o Globo, depois de cura no sana­tó­rio, disseram-lhe: “Tem uma mulher na redac­ção, 19 anos, mora­dora do Está­cio e dura na queda”. “Pode dei­xar, está no papo” disse logo o des­lei­xado e indo­lente Nel­son. Era Elza, meia-siciliana, com uma famí­lia que a Nel­son nem vê-lo, numa rejei­ção que põe logo uma man­cha de honra numa bio­gra­fia. Casaram-se clan­des­ti­nos, no horá­rio de tra­ba­lho, come­mo­rando a torradas e café com leite, e jurando que noite de núp­cias só com o casa­mento reli­gi­oso. Cum­pri­ram. Des­ca­sa­riam muito mais tarde. Depois de outros dois casa­men­tos dele, vol­ta­ram a casar. Quando Nel­son mor­reu, Elza, ainda em vida, colo­cou como lhe pro­me­tera, o nome na lápide ao lado do nome dele, logo debaixo da ins­cri­ção: “Uni­dos para além da vida e da morte. É só.” Por­que, como toda a sua obra reclama, amor que acaba não era amor.

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“Pode dei­xar, está no papo” disse logo o des­lei­xado e indo­lente Nel­sonsira um título

Podia con­ti­nuar: a bio­gra­fia de Nel­son Rodri­gues é inul­tra­pas­sá­vel de copi­osa. Angustia-me uma pequena dúvida: foi mesmo a bio­gra­fia que o obri­gou a ser o escri­tor que é, cri­ando um ima­gi­ná­rio de sexo punido e puni­tivo, trai­ção, incesto, cru­eza, sen­ti­men­tos torturados, ou é por ser o escri­tor que é, que Nel­son Rodri­gues teve esta bio­gra­fia exces­siva, auto-paródica, isenta de tédio e tão ter­ri­vel­mente cheia de quotidiano?! Mas parece que não é bem assim e há mui­tas reservas…

Sim, mas há quem ponha reser­vas a Nel­son, segredam-me. Por patri­o­tismo lin­guís­tico, rejeito a mínima reserva, aviso já. Nenhuma reserva a Nel­son Rodri­gues é per­mi­tida, auto­ri­zada, mesmo a título de omis­são pre­sente ou inten­ção futura! A mínima reserva a Nelson é pecado mortal.

Reserva polí­tica? Atire a pri­meira pedra o que sou­ber resol­ver o dilema de quem era amigo de gene­rais e pai de guer­ri­lheiro.

Reserva artística? O tea­tro, coisa e tal? Mas vejam e quem não viu por­que não pode, leia que foi o que eu fiz, o “Álbum de Famí­lia”! Oh, o fim do 2º acto com Gui­lherme dis­pa­rando o revól­ver sobre a irmã Glo­ri­nha – duas vezes, meus ami­gos, duas vezes – com ciú­mes do pai. E leiam a “Engra­ça­di­nha!” e as cró­ni­cas. Des­me­su­rado, injusto, con­tra­di­tó­rio, isso tudo e mais o que seja, o autor cari­oca foi sobre­tudo alguém que reve­lou — antes do tempo — algu­mas arma­di­lhas do pen­sa­mento então domi­nante (se me per­mi­tem des­taco dois dos mai­o­res equí­vo­cos do pen­sa­mento político-mediático da altura, Sar­tre e Dom Hél­der da Câmara, que ele tra­tou como duas bes­tas qua­dra­das). Aben­ço­a­da­mente incor­recto nessa maté­ria, Nel­son foi cor­rec­tís­simo a escre­ver sobre o tumulto das rela­ções fami­li­a­res e amo­ro­sas. Adi­vi­nhou tudo: o dead end da classe média, o inferno dos trau­mas fami­li­a­res, o fim de um mundo base­ado na len­ti­dão dos “bon­des que não che­gam nunca”.

Foi ele mesmo que disse: “O artista tem que ser génio para alguns e imbe­cil para outros. Se puder ser imbe­cil para todos, melhor ainda.” Seja­mos unâ­ni­mes e con­ce­da­mos a Nel­son o esta­tuto de “melhor ainda” que é o que faz dele um dos mai­o­res pro­sa­do­res da lín­gua por­tu­guesa do século XX. Não se me ponham a olhar para os lírios do campo: olhem mas é para cada uma das fra­ses dele e delirem com a adjec­ti­vada jus­tiça que as molda, rindo-se das subs­tan­ti­vas injus­ti­ças que por­ven­tura con­te­nham. Ah, o que ainda hoje, sau­dosa, a lín­gua chora por ter per­dido a desar­vo­rada exci­ta­ção e afro­di­síaca sur­presa de um amante assim. Faz-lhe muita falta um homem lá em casa. À língua.

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a desar­vo­rada exci­ta­ção e afro­di­síaca sur­presa de um amante assim

Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo

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Anaïs Nin e Henry Miller

Amor que acaba, nunca foi amor. Amor que é amor é eterno e não faz batota: amor que é amor nunca acaba.

Quem cantou a ideia de “amor único” foi Nelson Rodrigues, cronista brasileiro que, em “A Cabra Vadia” ou “O Óbvio Ululante”, escreveu com ortográfico desacordo um português querubínico. A Nelson sempre o atormentava a mesma nostalgia, a nostalgia do amor único e eterno. O amor do menino pela menina da porta ao lado, que começa aos 12 anos e dura a vida toda, o amor dos amantes que se matam, consolados pela vertigem duma paixão que os dispensa, sem cerimónias, de prestar contas ao mundo ou aos homens, a Deus ou ao Diabo, ao Céu ou ao Inferno.

Mas dito isto, pergunto: será que estamos preparados para os extremos inclementes de tanta paixão? Ou será que o amor eterno, o amor único, é apenas literatura?

E se a paixão for vil ou mentirosa, ou luminosa e efémera como um relâmpago, é menos paixão? Deixem-me dar exemplos. Literatura por literatura, basta-me como exemplo a volúpia dos encontros proibidos de alguns escritores. Anaïs Nin e Henry Miller tiveram o mais vicioso dos romances, ali mesmo, nas barbas do marido de Anaïs, sem que jamais ele suspeitasse. Era menos amor o amor deles por causa da mansa e traída fidelidade desse homem para cujos trémulos braços, no fim, a escritora voltou, acusando Miller de reduzir as mulheres à contingência biológica de “um buraco”?

Foi menos amor o desesperado e maldito “affair” em que F. Scott Fitzgerald, esquecendo a sua deprimida Zelda, se entregou a Dorothy Parker, ainda que, nessas brevíssimas e ternas noites, a Dorothy apenas a inspirasse uma profunda compaixão?

O amor que acaba não era amor, quis ensinar-nos Nelson Rodrigues. Mas também foi ele que disse “não se poder amar e ser feliz ao mesmo tempo”. Nelson, Nelson, com um veneno nos matas, com outro veneno nos curas.

E no amor? Ninguém fala no amor?

Há 11 anos, estava eu de casa e pucarinho com Nelson Rodrigues, se assim se pode dizer

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Então e no amor? Ninguém fala no amor? Quem cantou a ideia de “amor único” foi Nelson Rodrigues, o extraordinário cronista brasileiro que, detestando em igual e rude medida Sartre e D. Helder da Câmara, escrevia um português excelso. Estivesse ele a tomar um cafézinho em Copacabana, ou a subir ao morro no bondinho, ou a entrar no Maracaná para ver seu Flu, sempre o assaltava a mesma nostalgia, a nostalgia do amor único e eterno. O amor do menino pela menina, vizinha do lado, que começa aos 12 anos e dura a vida toda, o amor que nos pega sem licença ao primeiro olhar, o amor dos amantes que se matam felizes, consolados pela vertigem da paixão que lhes basta, dispensando sem cerimónias o mundo e os Homens, Deus e o Diabo, o Céu e o Inferno.

Nelson, Nelsinho, dramaturgo, poeta de um quotidiano carioca que era, nos idos de 60, um doce quotidiano tablóide, estava nos antípodas das delícias desse Vinicius que preconizava, ainda assim, que num soneto de fidelidade desejou ao amor “Que não seja imortal, posto que é chama / Mas que seja infinito enquanto dure”.

Nelson não tinha a volúpia baudelairiana de Vinícius. Era mais da honesta e viril família do grande Rossellini que, nos seus filmes, sobretudo em Viagem em Itália, pintou Ingrid Bergman a uma luz que muito mais exaltava a esposa do que a aventureira. Ou talvez Nelsinho fosse da família de T. S. Eliot que com públicas palavras (abaixo canhestramente traduzidas) veio louvar a rosa do seu mais íntimo jardim.

DEDICATÓRIA À MINHA MULHER

Àquela a quem devo a sobressaltada delícia
Que acelera os meus sentidos ao acordar
E o ritmo que governa o repouso do nosso sono,
A respiração em uníssono

Dos amantes cujos corpos cheiram um ao outro
Que têm os mesmos pensamentos sem precisar de falar
E balbuciam os mesmos sons sem necessidade de sentido.

Nem o vento do inverno agreste gelará
Nem o sol do trópico inóspito fará mais brancas
As rosas do jardim que é nosso e só nosso

Mas esta dedicatória é para outros lerem:
Estas são palavras privadas que te dirijo em público.

T.S.Eliot, A Dedication to my Wife
In The Penguin Book of Love Poetry (p.70)

E nós? Ao tomarmos a bica ao balcão, perpassa por nós a nostalgia da moreninha que amámos entre a Primária e o Liceu? Em pleno Estádio da Luz, cantaríamos em público e sem pudor a doçura do Lar? Ainda haverá alguém que se atravesse para falar no amor?