A Feira do Livro da Guerra & Paz

Um vírus desviou-nos da Feira do Livro no Parque Eduardo VII. Nesta altura, a poucos dias do que seria o começo da Feira já estaríamos a esfregar as mãos para ir ao encontro dos livros com que passámos o ano a sonhar. E veio o raio do vírus. E agora?

Não é um vírus que nos vai vencer, a nós editores, aos nossos autores, aos nossos leitores. Tal como muito outros editores, a Guerra e Paz vai a casa dos leitores e leva ao colo os livros dos nossos autores. E começamos até mais cedo a nossa Feira do Livro fazendo-a coincidir com  a comemoração, no próximo dia 22, do Dia do Autor Português. De 20 a 27 de Maio, todas as obras de poetas e romancistas portugueses, os livros de Jorge de Sena, de Agustina, de José Jorge Letria, os poemas de Eugénia de Vasconcellos ou João Moita, os livros de Luís Osório, de Fernando Pessoa, de Eça de Queiroz. São 72 livros a preços que até fazem chorar de emoção os jacarandás que agora invadem o mês de Maio.

A compra mínima é de 10€, mas ao leitor que faça uma compra de 20€ a 29€ oferecemos um exemplar do magnífico Nacional e Transmissível de Eduardo Prado Coelho, livro de texto intimista e de um grafismo apetitoso, nacional e transmissível. E a quem faça uma compra de 30€ ou mais damos a nossa bela edição da Moby Dick, de Herman Melville. Entregamos-lhe os livros em sua casa, portes por nossa conta,e entregamos mesmo muito depressa e em segurança.

Não se esqueça, sexta-feira, no dia 22, às 17:00, está convidado para uma tertúlia. Assista e participe à conversa em directo entre José Jorge Letria, Eugénia de Vasconcellos, Luís Osório e Carlos Taveira, moderada por Manuel S. Fonseca. Uma conversa de amor ao livro, ao romance, à poesia, à maravilhosa vagabundagem da escrita e da nossa língua, a nossa bela língua errante.

A comédia que me faz chorar

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Vamos lá falar de respeito. Não tenho respeito nenhum por uma comédia que não me faça chorar. E ainda menos por um drama que não me faça rir.

Os cómicos mais lendários eram uns tipos tristes. Nos filmes de Chaplin e Buster Keaton é nos fios melodramáticos que ambos tropeçam, induzindo-nos a uma mansidão sentimental que logo a seguir estilhaçam com um gag. Ou seja, um tipo, quando é bom a fazer rir, ama. Escuso de dizer que quando é mau, odeia? Escuso, mas digo. Um dos problemas da comédia que hoje nos inunda é o ódio. O cómico, agora, não se dissolve na vida e ainda menos nas pessoas. O cómico passou a ser um juiz. Político, sobretudo. O sarcasmo substitui o gag. A altiva assertividade crítica destes novos cómicos amesquinha o objecto do humor. Às vezes não parece que estejam a fazer comédia, mas só a vingarem-se.

Ora bolas para a teoria. Vamos mas é ao cinema. Leo McCarey, um daqueles americanos irlandeses e católicos que fizeram a glória de Hollywood, foi o primeiro cineasta a ganhar o Oscar com uma comédia. Não é dessa, “Awful Truth”, com Cary Grant, que falo. A minha favorita, pelo que já me fez rir e chorar, é “Ruggles of Red Gap”. Um aristocrata inglês perde ao jogo o seu mordomo (Charles Laughton) para um milionário americano adoravelmente provinciano. Ruggles, o mordomo, é mais rígido do que um pau de vassoura: rígido na etiqueta que venera; rígido no respeito à estratificação social em que foi educado. Ao chegar a Red Gap, o saloiíssimo rincão onde vive o despretensioso milionário, Ruggles tem o choque da vida dele. O milionário é um poço de espontaneidade, os habitantes da small town uns gigantes de candura e generosidade.

De que é que nos rimos, no filme? Da humanização do mordomo. Uma a uma diluem-se as regras do espartilho que faziam Charles Laughton parecer um atávico armário com pernas. O mordomo desengoma-se, primeiro um braço, depois os lábios que aprendem a sorrir.

Acontece então uma das cenas mais políticas e mais comoventes do cinema americano. No saloon, os cámones todos a beber, alguém invoca o “discurso de Gettysburg”, dito por Lincoln, em plena Guerra Civil, no campo de batalha onde morreram 7500 homens. Um discurso que qualquer americano sabe de cor. Só que, no saloon – que vergonha – já ninguém se lembra. Até se ouvir um débil murmúrio. Voltam-se as cabeças e um grande plano mostra-nos os lábios de Laughton a dizer, como Lincoln, que “esta nação verá renascer a liberdade” e que “o governo do povo, pelo povo, para o povo jamais perecerá da face da terra.” O que vemos, nesse plano, é o rosto de um homem, um mordomo, que acaba de conquistar a plena humanidade. E a olharmos para esse homem igual aos outros homens, não sabemos, é verdade, se havemos de rir, se havemos de chorar. Fazemos, é bom de ver, as duas coisas.

O ânus cantor

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Flatulava como quem fala. E eu estou a falar – a ver se não me confundo – de Joseph Pujol. Podia descrever-lhe o rosto anguloso, o bigode farto e negro a contrastar com a palidez do rosto, mas seria confundir o cu com as calças. Não era para a cara de Pujol que seja quem for olhava.

Olhos no seu olho, a França contemplava e extasiava-se com o posterior do marselhês Pujol, que trocara o aromático calor do forno de uma padaria pelo palco do Moulin Rouge. O ânus de Pujol, como o de qualquer um de nós, tinha os seus suspiros. Expirava, portanto. A inexorável diferença é que não só expirava, como inspirava também. Como e quando ele queria.

E venham, convida-vos o patrão do Moulin Rouge, assistir à entrevista em que o contratou. Pujol disse-lhe que era capaz, bufando, de imitar trovões, o disparo de um canhão. O patrão anuiu, mas não se rendeu. Tímido, Pujol anunciou: “Bebo, por trás”. O patrão trouxe água e o ânus de Pujol sorveu com elegância um litro que, com igual elegância, logo depositou noutro vaso, talvez já com ligeiro odor de água sulfurosa das termas.

Puxava o ar para o recto e libertava-o usando os esfíncteres. Descobrira isso, adolescente, a nadar no mar, quando sentiu o oceano a inundá-lo. O primeiro espectáculo no Moulin Rouge foi um êxito quase mortal. Esmagada por um espartilho, uma abundante francesa, incapaz de parar de rir, tombou desmaiada e teve de ser socorrida. Passou a haver uma enfermeira em permanência. Pujol, o flatómano, entrava de capa vermelha, calças pretas, gravata e luvas brancas. Imitava o Terramoto de São Francisco, mas começava pelo envergonhado peidinho de menina de colégio de freiras, logo o calórico traque de um talhante, a seguir o melodioso flato da noiva saciada em noite de núpcias, culminando na majestosa bufa de 20 segundos da costureira a rasgar dois metros de chita.

A essa introdução, e após mudança de roupa, nos bastidores, para umas calças com abertura apropriada, Pujol, com ventosidade bem medida, apagava velas a quase meio metro de distância. Deixava que o seu heterodoxo traseiro fumasse um pensativo cigarro e colocava, então, um tubo de borracha no seu órgão, canoro como ouvirão, ligando-o a uma ocarina. Tocava o tão lírico “Clair de Lune”, primeiro, logo depois o “O Sole Mio”, que o público, por lhe faltar rabo para mais, acompanhava a plenos pulmões. Em dias patrióticos, Pujol, ou essa parte dele de que não direi o nome para não enxovalhar a França, tocava a “Marselhesa”. Nestes nossos desditosos tempos de confinamento, Pujol teria vindo a uma varanda de Lisboa, prodigalizar a este povo sedento de ar puro um concerto de límpida analidade, entoando talvez os acordes do “Cheira bem, cheira a Lisboa”.

Em suma, Joseph Pujol, peidando-se das 8 às 9, foi durante anos a vedeta mais bem paga do Moulin Rouge, ganhando três vezes mais do que Sarah Bernhardt. Vinha vê-lo a realeza, o príncipe de Gales e o rei da Bélgica. Estarrecido com o prazer e o domínio que Pujol detinha dos seus esfíncteres, admirava-o o erógeno Sigmund Freud, então fixado na sua fase anal.

Pujol abandonou o mundo do espectáculo na I Grande Guerra, da qual dois dos seus filhos vieram inválidos. Sem ironia: a dor silenciou Pujol. Escolheu voltar ao cálido remanso da sua padaria. Morreu em 1945, soltando sabe-se lá que suspiros. A escola médica da Sorbonne quis comprar-lhe o corpo, fixada, é claro, no estudo do petit trou encantado. Os filhos recusaram. Consta que terão dito: “Há coisas na vida que devem ser tratadas simplesmente com reverência.”

Crónica publicada no Jornal de Negócios

O cinema é um lugar perigoso

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Walter Wanger e Joan Bennett

O produtor Walter Wanger puxou da pistola e, logo ali, em pleno estúdio, espetou um balázio no agente Jennings Lang que tombou redondo, mas não morto. Um só tiro. Por honra da firma.

Perdoem-me os leitores mais sensíveis começar à bruta, mas já vão ver que vem aí teoria selecta.

Wanger, que o produtor pronunciava como se pronuncia danger, por gostar da rima viril, produziu obras-primas como “Stagecoach”, de Ford, “Scarlett Street”, de Fritz Lang, ou o “Foreign Correspondent”, de Hitchcock. Foi grande ao pé de gente grande. Levou para casa, também, uma obra-prima, a belíssima actriz e mulher que era Joan Bennett. Bennett foi de uma beleza tão nocturna como clandestina em quatro filmes de Lang, e em filmes de Renoir e Ophuls.

Era a criação de Wanger. Fora ele que a pusera morena, conferindo-lhe o mistério e a figura que a atiraram para o estrelato. Wanger fez-lhe a carreira. De repente, em 1951, aparece um finório advogado de Nova Iorque, armado em carapau de corrida, convencendo Bennett a assinar um contrato com a MCA, uma agência de actores. Wanger não foi de modas. Acusou este Lang de andar enrolado com Bennett. Foi-se a ele e resolveu a coisa a tiro. Lang sobreviveu com um tiro na coxa, o casamento de Wanger e Bennett também, por mais 25 anos, e o produtor, invocando loucura temporária, passou quatro refastelados meses na cadeia.

É esta loucura, temporária ou não, que às vezes falta à teoria. Sobre as artes em geral, e o cinema não escapa, há uma indústria da teoria que parasita as obras sem precisar delas.  Faço-me de ingénuo e digo-vos: para mim, não há cinema, o que há é filmes. E dentro dos filmes há cenas, planos, actores, um décor que nos esmaga, uma certa luz que nos arrebata. Depois, já menos ingénuo, confesso que não deixo de ter uma teoria. Em boa verdade roubada a Truffaut e ao artigo (os dele eram sempre bons)  em que disse: “O cinema é fazer coisas belas a mulheres belas.” Era o que Wanger pensava e não me venham dizer que levou as coisas longe de mais.

Sobretudo, não me venham dizer que é possível criar tamanha e tão estarrecedora beleza sem um sobressalto físico. O amor de Godard pelos tremendos olhos de Anna Karina, o de Antonioni pelos eclipses de Monica Vitti, o de David O. Selzenick pela ardente Jennifer Jones, provam que, afinal, o amador se funde sempre na coisa amada: na vida por causa do cinema.

Marlene Dietrich sou eu”, disse, sem a menor ambiguidade, Josef von Sternberg, o pequenino homem que fez do rosto da Dietrich uma combinação de angulosa beleza e perdição. Tinham, juntos, no plateau, os êxtases – lembrem-se de “Morocco” ou de “Dishonored” – que na vida Sternberg algumas vezes viu fugir, prodigalizados por Marlene a outros amores tempestuosos. Wanger teria gasto o carregador da pistola.

Onde é que se metem os narizes

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O beijo de The Flesh and the Devil

De boca fechada já tinha havido muitos. A primeira vez que os amantes abriram a boca foi em “The Flesh and the Devil”. E não foi para falar, que o filme ainda era mudo. Primeiro, um cigarro passa da boca de Greta Garbo para a boca de John Gilbert. “És lindíssima” sussurra ele num elegante cartão escrito. “E tu… tu és tão novinho”, responde ela noutro cartão, por ser assim, por escrito, que os actores falavam no cinema mudo.

O cigarro já está na boca dele, as mãos aflitas à procura do fósforo que logo acendem. Não sabemos se é a labareda do fósforo, se a do ardor deles, que os ilumina como lua alguma iluminou amantes. Ofuscada, Garbo sopra e apaga a ardente cabecinha do fósforo como quem pede um beijo. Sabe-se lá que lábios, se os dele, se os dela, se abriram primeiro! Sabemos só que foi a primeira vez que num filme americano se beijou à francesa.

Há beijos escritos, beijos pintados. E míticos: o de Pigmaleão insuflou vida em Galateia. Em contos de fadas, o beijo de uma mulher faz de um sapo um príncipe. Rodin aprisionou em mármore frio e nu o beijo infernal que Dante lhe inspirou. Em “Romeu e Julieta”, cantou-o Shakespeare, como quem reza, fazendo dos lábios “dois peregrinos ruborizados” onde talvez “blushing” seja tanto o rubor como a calorosa vergonha que o precede.

Mas foi no cinema que os lábios peregrinos encontraram o seu santuário. O cinema beija melhor do que a literatura, até mesmo do que o luxo da pintura de Klimt. O movimento, luz e sombras do cinema oferecem tudo ao beijo. Fazem-no ingénuo e carnal, romântico e canalha, mignon e descarado.

Pensando que inventara o beijo, o cinema fez-lhe até a pedagogia. Em “For Whom the Bell Tolls”, a loura e sueca Ingrid Bergman, na cena em que mais celestes lhe vi os olhos, é uma improvável espanhola, uma improvável camponesa e a mais improvável Maria. Apaixonou-se por Gary Cooper, americano e combatente na Guerra Civil ao lado dos republicanos. Quer, mas não sabe como beijá-lo: “Onde é que se metem os narizes. Sempre me intrigou para onde é que vão os narizes,” diz, a escaldar de coqueterie. Senhor de um nariz que não se mete onde não é chamado, Cooper roça os lábios pelos lábios dela. “Afinal não se atravessam no caminho, pois não,” e já é ela que o beija, uma, duas vezes. À americana.

À americana, Hawks mostra em “To Have and Have Not”, as vantagens do trabalho de equipa. Bacall beija um impávido Bogart para lhe provar o sabor. Deve ter gostado porque o cântaro volta à fonte e já não me lembro se é logo, ou à terceira que o lento Bogart dá ordens à boca dele para reagir à dela: “É ainda melhor quando tu ajudas!”

À americana ou à francesa, boca mais fechada ou aberta, são precisos dois para o beijo. Nem mesmo tu, ó orgulhosa e fresca boca de Keira Knightley, beijas sozinha.

Henry Fonda não é o pai de Jane Fonda

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Henry Fonda não é o pai de Jane Fonda. Ou seja, é. Mas como se verá, ser ou não ser nem sempre é a questão.

Conheci primeiro Jane Fonda, colorida brilhante, plástica. Trocámos olhares lúbricos e ter-lhe-ei roubado algumas carícias. Não a aqueci nem a arrefeci e, “Barbarella” esquecida, passou-me. Coisas de adolescente. Eu não melhorei com a idade, ela muito.

Henry Fonda, conheci-o mais tarde. Apresentou-mo o João Bénard numa sessão da Gulbenkian. A mim e a mais 1.500 pessoas, em sala cheia, inquieta, emocionada.

É traumático conhecer pessoas em auditórios escuros como breu. Ainda por cima, Henry Fonda entrou na sala com os 35 anos de 1940, desenhado por um chiaroscuro que logo nos abria os olhos para a honestidade magoada do olhar dele. “The Grapes of Wrath” era o filme e, como o livro original de Steinbeck, em português “As Vinhas da Ira”

Nesse dia, Henry Fonda chamava-se Tom Joad e, apesar da ira que tutelava o filme, transpirava a decência dos justos. Via-se nele uma beleza inclassificável. Nem apolínea, nem dionisíaca. Os deuses, mesmo os gregos, não eram para ali chamados. Henry Fonda oferecia uma beleza humana, modesta, um modo de erguer o corpo na vertical, sem arrogância ou pose.

O corpo direito, a barba de dois dias a cobrir-lhe o rosto, sem disfarçar a cicatriz numa das faces, uns olhos divididos entre a angústia e a esperança, Henry Fonda era Tom Joad e não era apenas Tom Joad. Era o povo.

Eu julgava que já conhecia o povo. Descobri que o tinha visto, sim, mas conhecê-lo foi ali. “The Grapes of Wrath” retrata tempos de crise. Mostra uma família rural que perdeu a quinta para o Banco e, com os bens decrépitos atulhados numa camioneta miserável, segue estrada fora em busca de trabalho e da Califórnia redentora.

Tom Joad, Henry Fonda, é o filho, neto e sobrinho dessa família. Acossados, humilhados, roubados de tudo por Bancos, impostos, polícias, só lhes resta a razão última da sua dignidade. Na mais escura das noites, Tom despede-se da mãe prometendo-lhe “I’ll be all around in the dark, I’ll be everywhere”, e é nessas sombras que mergulha para, bem-aventurado e sedento de justiça, estar em todo o lado.

Nos olhos de Henry Fonda, na sua voz calma e de uma vibração segura, a mãe, Ma Joad, descobre a força e a razão para não voltar a ter medo, “co’s we’re the people”, porque somos o povo que vive.

E hoje, em qualquer parte do mundo, se vejo uma família que atafulha os bens decrépitos numa camioneta de pneus furados, em cada grito zangado, no medo de cada mãe perplexa, no riso de cada miúdo que ignora o futuro hipotecado, volto a ouvir a voz de Tom Joad, volto a ver o olhar claro, a fé de Henry Fonda.

Henry Fonda é mais do que o pai dos seus filhos. Nesse filme de John Ford, Henry Fonda é o povo que se vê all around, em todo o lado. Pode o povo copiar-lhe a voz firme e, ao olhar, roubar-lhe uma razão da esperança para esse mundo desolado que os próximos tempos anunciam?

Sessenta e nove

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Elegy, adaptação do romance de Philip Roth

Numero as crónicas que escrevo para esta página. Esta é, categórica, a 69. O número tem a impudica alegria de tudo o que é dúbio. Lembro um jantar de amigos. Louvávamos ao Raul Solnado o talento humorístico, mas ele chutou para canto, jurando pelas alminhas que humor espontâneo e repentista tinha o actor Armando Cortez. E logo, rolando palavras como cerejas, contou uma história carregada de virtude. Saía o Armando, apressadíssimo, do falecido café Monte Carlo e uma muito madura senhora cai-lhe em cima a perguntar se era por ali o Banco Nacional Ultramarino. “É sim, minha senhora, no 69.” A despistada senhora insistiu: “E o 69 é para cima ou para baixo?” O glorioso Armando não resistiu: “Ó, valha-me Deus, é um para cima e outro baixo.”

Um para cima, outro para baixo, não há algarismos que se enlacem com tanta graciosidade e leveza como, cara a cara, ou talvez não, que quem vê caras não vê corações, se enlaçam o 6 e o 9. Tudo o que se estende e alonga é gracioso, seja um rio, seja a recta de uma estrada alentejana, ou só um corpo, sobretudo dois corpos. E esta é, bem se vê, a nostálgica reflexão de quem já tem a interminável idade de um longo rio, como esses intermináveis Tejo, Nilo ou Amazonas, e se deleita a “recordar que o tempo é outro rio” por ter aprendido com Jorge Luís Borges, “que nos perdemos como o rio e que os rostos passam como a água.”

Perdido no rio da memória, flutuando em reminiscências, há em todo o velho um desaustinado amor pela juventude. Do homem velho, pelas primaveris pernas das raparigas, pelo arfante seio. Da mulher velha, pela esplêndido candor juvenil dos rapazes que virtuosamente adopta como sobrinhos. E já mordo e cuspo a generalização, para me sentar e contemplar o escritor Philip Roth.

É com ele ou dele que quero falar. Foi o amor e o ódio da América. Era o escritor lá de casa dessa América, dita inculta, que lê 20 vezes mais do que se lê nas casas portuguesas. Cada palavra, cada acto de Roth era escrutinado com espanto ou escândalo, ao que os seus romances mais impeliam, por ser ele mesmo, quase sempre, o protagonista deles, através de indisfarçados alter-egos. E eis o que me intriga: eram os romances dele que lhe copiavam a vida ou será que Roth saía dos romances para os vir viver nesta de outro modo triste vida? Em “O Animal Moribundo”, o protagonista ama Consuelo, sua aluna, tão lancinantemente bela como jovem. E ele, embora dionisíaco, lânguida e religiosamente devoto do corpo dela, esplêndido amante, é velho. Muito mais velho. Prodigioso na prova da cama, não quer submeter-se à prova social: a visita à família dela atormenta-o pela censura e olhares turvos que certamente esperam um velho que chupa assim a tão fresca e aberta juventude de Consuelo!

Pura ficção? Puríssima, claro, e por isso se repetiu na puríssima da vida de Roth, mais do que uma vez. A última aos 72 anos. Quanto anos tinha ela? Vinte e cinco ou trinta? Uma embriaguez ética apoderou-se da família da ninfa e Roth foi apostrofado e repudiado. Mesmo o fascínio da sereia pelo hirsuto velho bode declinou e o fruto do amor, mordido pelo verme, tombou apodrecido. Foi, contou um amigo, o escritor Benjamin Taylor, a olhar na morgue para o cadáver de Roth, o seu último amor. Nesse amor rejeitado, deu-se a bifurcação do corpo, esse anti-69 a que todo o velho se resigna: abdicar do seu reinado erótico. Resta ao velho a memória dos rostos, dos corpos que passaram como água cristalina, memória que apaga ou disfarça os presságios da noite mais escura.

Crónica publicada no Jornal de Negócios

Bem-aventurados livros que nos levam ao reino dos céus

A Guerra e Paz, em Maio, atira-se com toda a sede ao pote. Temos livros de combate e livros de puro prazer, para não dizer êxtase.

Lançamos-lhe um desafio. Faça uma pré-compra e beneficie de condições ultrajantemente excepcionais. É muito simples. Ora veja.

Não só tem um desconto de 10% em cada livro de que faça a pré-compra, como lhe oferecemos, se a sua compra for de 20€ ou mais, um livro lindíssimo, Contradança, com as cartas de Camões, e com a as ilustrações de um espião holandês que viajou para Goa infiltrado na corte do primeiro arcebispo português e, da Índia, mandou desenhos que revelavam a vida e os hábitos dos portugueses. São ilustrações extraordinárias desse terrível espião que dava pelo nome de Jan Huygen van Linschoten.

Se se entusiasmar e fizer uma pré-compra no valor de 40€ ou mais, não só lhe oferecemos a Contradança de Camões, como também um exemplar deste Livro de Agustina, a autobiografia que Agustina Bessa Luís escreveu pondo a língua portuguesa a roçar pelo mistério, insólito e contradições, como só ela era capaz de fazer.

E agora é só escolher os livros de combate e ideias ou os livros de prazer.

Nos primeiros, Combates pela Verdade, Portugal e os Escravos, da autoria de João Pedro Marques, é um livro que se confronta e ataca a leitura da escravatura proposta, por exemplo, por figuras como Fernando Rosas ou Fernanda Câncio. É um livro que se reivindica da História e dos seus métodos. Polémico em alto grau.

Testamento Vital, nos Dilemas Éticos do Fim da Vida, de um médico, J. Filipe Monteiro, traz-nos a uma discussão de que foi exemplo a recente situação da disponibilidade dos ventiladores em plena crise da Covid-19: até onde é que se deve levar a obsessão terapêutica e manter artificialmente ligado à máquina um doente sem cura. Saiba o que é o Testamento Vital.

E se quer conhecer as ideias de uma legião de novos autores das mais diversas áreas artísticas, ligado à Sociedade Portuguesa de Autores, de Boss A.C. a Rita Redshoes, passando por David Fonseca ou Maria Inês Almeida e Rita Vilela. Leia já estas entrevistas de Lugar dos Novos, uma co-edição da SPA com a Guerra e Paz.

Mas passemos ao sonho. Oferecemos-lhe, antes de mais, uma versão única de O Principezinho. Além do texto original integral, com as maravilhosas ilustrações, esta edição contém uma parte final em que se viaja pelo livro clássico com a apresentação de enigmas, perguntas e aventuras propostas pelo editor Manuel S. Fonseca. Não há nenhuma edição igual em Portugal.

Há mais duas viagens de puro prazer, ambas por Angola, mas muito distantes no tempo e no tom. Leia, de Onofre Santos, A Vida e Morte do Comandante Raúl Morales. É um mimo de amor e guerra, de combate e dança, de sedução e drama. Onofre Santos revela a sua pulsão sedutora e erótica. Ou será o comandante cubano Raul Morales, o protagonista, que domina o autor e o leva para onde quer?

Por fim, Estamos Aqui, de Branca Clara das Neves – com ilustrações prodigiosas de Neusa Trovoada –, em três línguas, português, kicongo e francês, é uma viagem pela cosmogonia kongo. Um livro mágico, encantatório, carregado de simbolismo, uma preciosidade estética, combinatória de ficção em que seres humanos e esculturas se tocam e confundem, subindo rio Congo acima, com passagem pelos lugares míticos que são Nóqui e Matadi. Um livro para ter na mão.

Basta comprar dois destes livros e Camões vai logo consigo. Com mais um jeitinho, e ligeira abertura do porta moedas, a grande Agustina logo se junta a Camões. Só mesmo na Guerra e Paz editores.