Sessenta e nove

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Elegy, adaptação do romance de Philip Roth

Numero as crónicas que escrevo para esta página. Esta é, categórica, a 69. O número tem a impudica alegria de tudo o que é dúbio. Lembro um jantar de amigos. Louvávamos ao Raul Solnado o talento humorístico, mas ele chutou para canto, jurando pelas alminhas que humor espontâneo e repentista tinha o actor Armando Cortez. E logo, rolando palavras como cerejas, contou uma história carregada de virtude. Saía o Armando, apressadíssimo, do falecido café Monte Carlo e uma muito madura senhora cai-lhe em cima a perguntar se era por ali o Banco Nacional Ultramarino. “É sim, minha senhora, no 69.” A despistada senhora insistiu: “E o 69 é para cima ou para baixo?” O glorioso Armando não resistiu: “Ó, valha-me Deus, é um para cima e outro baixo.”

Um para cima, outro para baixo, não há algarismos que se enlacem com tanta graciosidade e leveza como, cara a cara, ou talvez não, que quem vê caras não vê corações, se enlaçam o 6 e o 9. Tudo o que se estende e alonga é gracioso, seja um rio, seja a recta de uma estrada alentejana, ou só um corpo, sobretudo dois corpos. E esta é, bem se vê, a nostálgica reflexão de quem já tem a interminável idade de um longo rio, como esses intermináveis Tejo, Nilo ou Amazonas, e se deleita a “recordar que o tempo é outro rio” por ter aprendido com Jorge Luís Borges, “que nos perdemos como o rio e que os rostos passam como a água.”

Perdido no rio da memória, flutuando em reminiscências, há em todo o velho um desaustinado amor pela juventude. Do homem velho, pelas primaveris pernas das raparigas, pelo arfante seio. Da mulher velha, pela esplêndido candor juvenil dos rapazes que virtuosamente adopta como sobrinhos. E já mordo e cuspo a generalização, para me sentar e contemplar o escritor Philip Roth.

É com ele ou dele que quero falar. Foi o amor e o ódio da América. Era o escritor lá de casa dessa América, dita inculta, que lê 20 vezes mais do que se lê nas casas portuguesas. Cada palavra, cada acto de Roth era escrutinado com espanto ou escândalo, ao que os seus romances mais impeliam, por ser ele mesmo, quase sempre, o protagonista deles, através de indisfarçados alter-egos. E eis o que me intriga: eram os romances dele que lhe copiavam a vida ou será que Roth saía dos romances para os vir viver nesta de outro modo triste vida? Em “O Animal Moribundo”, o protagonista ama Consuelo, sua aluna, tão lancinantemente bela como jovem. E ele, embora dionisíaco, lânguida e religiosamente devoto do corpo dela, esplêndido amante, é velho. Muito mais velho. Prodigioso na prova da cama, não quer submeter-se à prova social: a visita à família dela atormenta-o pela censura e olhares turvos que certamente esperam um velho que chupa assim a tão fresca e aberta juventude de Consuelo!

Pura ficção? Puríssima, claro, e por isso se repetiu na puríssima da vida de Roth, mais do que uma vez. A última aos 72 anos. Quanto anos tinha ela? Vinte e cinco ou trinta? Uma embriaguez ética apoderou-se da família da ninfa e Roth foi apostrofado e repudiado. Mesmo o fascínio da sereia pelo hirsuto velho bode declinou e o fruto do amor, mordido pelo verme, tombou apodrecido. Foi, contou um amigo, o escritor Benjamin Taylor, a olhar na morgue para o cadáver de Roth, o seu último amor. Nesse amor rejeitado, deu-se a bifurcação do corpo, esse anti-69 a que todo o velho se resigna: abdicar do seu reinado erótico. Resta ao velho a memória dos rostos, dos corpos que passaram como água cristalina, memória que apaga ou disfarça os presságios da noite mais escura.

Crónica publicada no Jornal de Negócios

Vamos todos viver cem anos

old people

Em 2050 haverá já 6 milhões de pessoas com 100 anos de idade, contra as 340 mil que, entre os que estão em cadeiras de rodas, os que saltam como papoilas em aldeias chinesas  e os sensatamente acamados, estão ainda hoje a dar sinal de si. Estes dados constam de um estudo da revista médica britânica Lancet e eu quando um médico fala meto logo a pistola no coldre.

Acredito e não tenho dúvidas: vamos ter de viver duas vezes para aguentarmos a chatice dos 105 e 110 anos. É preciso começar já a pensar esse mundo geriátrico. Reformas laborais precisam-se. Imagino que se trabalhará dos 25 aos 45, com reforma até aos 65. Regresso ao mundo do trabalho nessa altura, com nova carga de trabalho até aos 85 e reforma definitiva a seguir. Os casamentos só serão autorizados a maiores de 35 anos, estabelecendo-se o seu máximo prazo de validade em 25 anos. Em todo o caso, aos 65 anos serão extintos todos os relacionamentos existentes, desfazendo-se com brandymel ou licor beirão os sinais de adictividade que possam existir, e exigindo-se um brand new start (em português, um recomeço limpinho) aos então maduros cidadãos.

Um conselho careta aqui deste mundo adolescente: cuidado com as escolhas, afinal you only live twice.