Onde é que se metem os narizes

flesh and the devil
O beijo de The Flesh and the Devil

De boca fechada já tinha havido muitos. A primeira vez que os amantes abriram a boca foi em “The Flesh and the Devil”. E não foi para falar, que o filme ainda era mudo. Primeiro, um cigarro passa da boca de Greta Garbo para a boca de John Gilbert. “És lindíssima” sussurra ele num elegante cartão escrito. “E tu… tu és tão novinho”, responde ela noutro cartão, por ser assim, por escrito, que os actores falavam no cinema mudo.

O cigarro já está na boca dele, as mãos aflitas à procura do fósforo que logo acendem. Não sabemos se é a labareda do fósforo, se a do ardor deles, que os ilumina como lua alguma iluminou amantes. Ofuscada, Garbo sopra e apaga a ardente cabecinha do fósforo como quem pede um beijo. Sabe-se lá que lábios, se os dele, se os dela, se abriram primeiro! Sabemos só que foi a primeira vez que num filme americano se beijou à francesa.

Há beijos escritos, beijos pintados. E míticos: o de Pigmaleão insuflou vida em Galateia. Em contos de fadas, o beijo de uma mulher faz de um sapo um príncipe. Rodin aprisionou em mármore frio e nu o beijo infernal que Dante lhe inspirou. Em “Romeu e Julieta”, cantou-o Shakespeare, como quem reza, fazendo dos lábios “dois peregrinos ruborizados” onde talvez “blushing” seja tanto o rubor como a calorosa vergonha que o precede.

Mas foi no cinema que os lábios peregrinos encontraram o seu santuário. O cinema beija melhor do que a literatura, até mesmo do que o luxo da pintura de Klimt. O movimento, luz e sombras do cinema oferecem tudo ao beijo. Fazem-no ingénuo e carnal, romântico e canalha, mignon e descarado.

Pensando que inventara o beijo, o cinema fez-lhe até a pedagogia. Em “For Whom the Bell Tolls”, a loura e sueca Ingrid Bergman, na cena em que mais celestes lhe vi os olhos, é uma improvável espanhola, uma improvável camponesa e a mais improvável Maria. Apaixonou-se por Gary Cooper, americano e combatente na Guerra Civil ao lado dos republicanos. Quer, mas não sabe como beijá-lo: “Onde é que se metem os narizes. Sempre me intrigou para onde é que vão os narizes,” diz, a escaldar de coqueterie. Senhor de um nariz que não se mete onde não é chamado, Cooper roça os lábios pelos lábios dela. “Afinal não se atravessam no caminho, pois não,” e já é ela que o beija, uma, duas vezes. À americana.

À americana, Hawks mostra em “To Have and Have Not”, as vantagens do trabalho de equipa. Bacall beija um impávido Bogart para lhe provar o sabor. Deve ter gostado porque o cântaro volta à fonte e já não me lembro se é logo, ou à terceira que o lento Bogart dá ordens à boca dele para reagir à dela: “É ainda melhor quando tu ajudas!”

À americana ou à francesa, boca mais fechada ou aberta, são precisos dois para o beijo. Nem mesmo tu, ó orgulhosa e fresca boca de Keira Knightley, beijas sozinha.

Tenho a língua a ferver

 

transgressão

Quando a provocam, a língua mete-se logo onde sente que é chamada. Estou a falar-vos da língua vermelhinha, corada de emoção, que se sente ofendida e responde. A língua que se converte em insulto, ou melhor, em palavrão. Eu, que sou um ser humano tremendamente cordato, de tão fascinado por essa última etapa da língua, essa espécie de fronteira, reuni as palavras mais ofensivas da nossa língua – essas mesmas que não se podem dizer, e de que nos jornais aparece só a primeira consoante – e escrevi este Pequeno Livro dos Grandes Insultos. Convido-o a ler. Vai encontrar desafios inesperados e explicações surpreendentes. E um certo estilo de humor. Bem sei que é o meu humor, mas é humor, ainda assim.

Muito mais largo foi o critérios do professor José João Almeida para criar o seu imprescindível Dicionário do Calão e de Expressões Idiomáticas. Estão aqui cerca de 3300 entradas e em vada entrada uma lição. Por exemplo, sabe como surgiu a expressão «arriar a giga»? Quantos sinónimos terá a palavra «pénis»? Não lhe juro que a sua vida mude, mas a sua imaginação vai ficar vitaminada e a sua riqueza lexical será invejada.

Temos, hoje, nesta Feira da língua portuguesa, duas conversas à parte, que nos mostram a língua em pura vagabundagem, por diferentes paragens. Numa, só entram transmontanos de gema, na outra só caluandas, gente que viveu, vive ou sonha com Luanda. Uns e outros têm um tesouro à disposição no Dicionário de Palavras Soltas do Povo Transmontano e no Pequeno Dicionário Caluanda.

E ainda tenho de lhe falar de mais dois livros, um pequenino, outro enorme, mas ambos muito peculiares. Num, o livro pequenininho, só aparecem palavra supimpas. Isso, faz dele um livro muito, mas mesmo muito elegante, naturalmente, mas também muito mais útil. Porquê? Porque no dia-a-dia, em casa, no trabalho, na escola, no transporte público, na rede social, a vida só tem a ganhar com um uso mais liberal da palavra supimpa. É o Dicionário de Palavras Supimpas, de José Alfredo Neto.

No outro, o livro grande, é uma festa de descobertas, numa viagem por terra, mares e ares ao mundo das palavras cruzadas. Não perca este Dicionário Enciclopédico das Palavras Cruzadas, que a imensa paciência e igual engenho de Mário Bernardo Matos organizou para todos nós.

transgressão

 

Assim Nasceu uma Língua

Foi esta sala cheia que recebeu o livro de Fernando Venâncio que nos obrigar a revisitar as origens da língua portuguesa. Que língua é a nossa língua, de onde vem, em que concubinagem se entreteve ao longo de séculos e aonde, agora, vai?

Assim Nasceu uma Língua, de Fernando Venâncio é, arrisco dizer, eu que sou o editor e parte interessada, o livro do ano.

plateia

A mesa, sorridente, foi esta: Susana Santos na ponta direita, o autor, Fernando Venâncio a segui, ao seu lado a Professora Esperança Cardeira, que apresentou o livro com o meu outro querido autor Marco Neves, e eu aqui, na extrema esquerda, a dizer disparates.

a mesa_

Com o meu autor, Fernando Venâncio, na minha mão esquerda um livro, Assim Nasceu uma Língua, que já está nas livrarias portuguesas e galegas. E tu, Espanha ingrata de que estás à espera?

Venancio

Meus Kambas: Pedro Correia

E se não tivesse havido já três visitas a Meus Kambas, esta não seria a quarta, diria, se fizesse contas, Monsieur Jacques de La Palisse. É, portanto, a quarta vez que entramos na varanda pequenina com porta para a cozinha, onde recebo os amigos. Hoje, senta-se comigo o Pedro Correia, jornalista e autor, figura tutelar do Delito de Opinião, e uma figura que muito ajudou a fazer a blogosfera portuguesa, dotando-a de espírito de diálogo e convivialidade, esses dois imprescindíveis sinais de civilização.
É uma honra tê-lo aqui. E é um prazer ler este seu
As Palavras em Vias de Extinção.

vocabu

As palavras em vias de extinção
 Pedro Correia

Temos a mania de mudar o que está certo. Penso nisto ao ver alteradas, em sucessivos lançamentos editoriais, antigas designações de obras-primas da ficção literária vertidas para o nosso idioma: O Monte dos Vendavais derivou primeiro para O Monte dos Ventos Uivantes e depois para O Alto dos Vendavais; a Cabra-Cega, de Roger Vailland, tornou-se Jogo Curioso (alguém estará convencido de que se adequa assim à semântica portuguesa o Drôle de Jeu original?); o Catcher in the Rye, de Salinger, passou a intitular-se À Espera no Centeio, abandonando-se Uma Agulha no Palheiro, feliz título concebido na anterior tradução, de João Palma-Ferreira.

Anda agora por aí uma recente versão de Três Homens num Bote, divertido romance de Jerome K. Jerome com este nome consagrado há décadas em português. O novo tradutor e o novo editor optaram por outro título: Três Homens num Barco. O que de algum modo confirma a intensa compressão vocabular que a língua portuguesa vai sofrendo, com a definitiva eliminação de milhares de palavras subitamente tornadas imprestáveis nesta era das mensagens instantâneas, quando até já há quem escreva “romances” por telemóvel. Se bote e barco são sinónimos, mas o segundo termo se reveste de um teor mais impreciso e sem o relance humorístico que num bote para três já se insinua, porquê rejeitar a designação já consagrada? Não custa adivinhar: a outra é de apreensão mais fácil.

Assim vamos comunicando de forma cada vez mais esquemática, prestando culto ao literalismo despido de ironia e despovoado de metáforas, com um naipe de palavras cada vez mais reduzido, o que produz reflexos óbvios no pensamento e na própria cidadania. Vocábulos rudimentares conduzem fatalmente a raciocínios esquemáticos, cada vez mais distantes da complexidade e da sofisticação que só um domínio alargado das variações semânticas induz. Daí à visão do mundo e da vida a branco e negro, numa dicotomia simplista que favorece os demagogos de todos os matizes, vai um curto passo.

«A redução de vocabulário nos últimos anos tem sido dramática. Não apenas do vocabulário curto que, não há muito tempo, faria parte do dia-a-dia numa família medianamente instruída. Mas daquele que transportava uma tradição ancestral», alerta-nos Mário de Carvalho no seu excelente manual de escrita intitulado Quem Disser o Contrário é Porque Tem Razão, justamente galardoado em 2015 com o Prémio P.E.N. Clube para melhor ensaio. E o escritor concretiza, indo ao cerne da questão: «Se hoje muitos jovens não conseguem perceber um provérbio, isso acontece não somente porque o mundo rural desapareceu, mas porque se tem destruído a memória e ocultado a espessura da História. Uma das razões para ler é também a vontade de libertação, a expressão de um inconformismo que não aceita ficar encarcerado dentro dos limites do vocabulário básico.»

Já estivemos mais longe dos grunhidos monossilábicos como forma dominante de expressão oral. Não falta também por aí quem gostasse de os ver como matriz dominante da nossa escrita.

diccion