Não

Nicholson

Queres…
– Não.
– Mas eu ainda não disse o que…
– Não.
– Deixa-me ao menos…
– Não! Não e não. Já disse. E seja o que for, é não!

Desiludam-se os que pensam que noutra língua – seja o grego ou o alemão -, este diálogo jamais poderia ter lugar. Não há o trovão de uma língua no mundo, uma linguazinha, um dialecto, uma sumida e surrada soma de sons sistematizada, que não se gabe, orgulhe, vanglorie da sua inequívoca capacidade de negar.

Mas assim ladrada, ão, ão, ão, só mesmo em português…”, sugerem-me, esperançados, os estetas deste blog. Não sou especialista, mas garantem-me os que têm a filologia debaixo da pele que NÃO é bem assim. Para negar, nenhuma língua tem a vergonha do Pedro que três vezes negou antes que o galo cantasse. Para negar, qualquer língua, toda a língua, abre bem a boca, redonda, sonora, evitando que restem dúvidas entre locutor e auditor: NÃO. Ouviste? Não. Não é não. Quer dizer, não é sim, é NÃO.

Um NÃO que seja tomado pelo seu contrário é o princípio da macacada e o fim da picada. Ser plena e categoricamente negativo é o grito de Ipiranga de qualquer língua. Há cambiantes, nuances, mariquices e outras grandessíssimas chatices quando se trata (só) de afirmar. Entendidos, subentendidos, mal-entendidos é a selva afrodisíaca da afirmação.

Mas negar é NÃO, é um ponto final, uma recusa, uma falta de tusa. Os franceses, insuportáveis cartesianos, para evitar falhas no sistema, ao non, que como nós herdaram do latim, acrescentaram uma espécie de apostas múltiplas, na linha do euromilhões, desdobrando o irrefutável monossílabo num ne qualquer coisa pas. “Querias, não querias, filho? Pois bem, ouves o ne e já sabes que estás a ir de patins, mas quando te der com o pas é como se um tijolo te tivesse caído em cima!

As línguas evoluem. Para afirmar arranjam-se circunlóquios, solilóquios, e outras equívocas formas que matizem o dito e dêem uso à hermenêutica. Para negar, todas as línguas se juntam no mais obsceno dos partouze para reforçar o NÃO, NON, NE qualquer coisa PAS.

Vigoroso e audível: NEIN! NOT AT ALL! ÜBERHAUPT NICHT. NON…MICA. Melhor só o chinês BÌNGBÚ que não só é não, como é não e um veemente “não, contrariamente ao que Vossa Excelência na sua retorcida mente pensa, e limpe-se lá a esta toalha que não o quero envergonhar.

Porque, sim, há línguas que levam o negacionismo à perfeição. Em português, por mais que tente não arranco um verbo que seja o contrário de “ser”. Tenho de recorrer à muleta, ao redondinho advérbio “não” para dizer o “não-ser”. Húngaros, coreanos, árabes, indonésios e turcos – e deve haver mais – ao NÃO gritado somam a invenção de verbos originais que são a negação de verbos como ser e haver. Em Istambul deģil é “não-ser”, enquanto dir é o shakespeareano “to be”. Um luxo asiático.

Estando perfeitamente a par das discussões que desarvoradamente correm por este mundo sobre passado, presente e futuro e a respectiva ontologia e extensão, há línguas que se armaram de verdadeiros varapaus negativos, negacionistas ou o lá o que seja, distinguindo entre o não ao passado e o não ao futuro. Lan é uma partícula de negação que os árabes reservam para o futuro, do mesmo modo que os chineses negam o passado com méi e o futuro-presente com .

Acho mesmo muito bem: o presente, o futuro? Bú.

Meus Kambas: Pedro Correia

E se não tivesse havido já três visitas a Meus Kambas, esta não seria a quarta, diria, se fizesse contas, Monsieur Jacques de La Palisse. É, portanto, a quarta vez que entramos na varanda pequenina com porta para a cozinha, onde recebo os amigos. Hoje, senta-se comigo o Pedro Correia, jornalista e autor, figura tutelar do Delito de Opinião, e uma figura que muito ajudou a fazer a blogosfera portuguesa, dotando-a de espírito de diálogo e convivialidade, esses dois imprescindíveis sinais de civilização.
É uma honra tê-lo aqui. E é um prazer ler este seu
As Palavras em Vias de Extinção.

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As palavras em vias de extinção
 Pedro Correia

Temos a mania de mudar o que está certo. Penso nisto ao ver alteradas, em sucessivos lançamentos editoriais, antigas designações de obras-primas da ficção literária vertidas para o nosso idioma: O Monte dos Vendavais derivou primeiro para O Monte dos Ventos Uivantes e depois para O Alto dos Vendavais; a Cabra-Cega, de Roger Vailland, tornou-se Jogo Curioso (alguém estará convencido de que se adequa assim à semântica portuguesa o Drôle de Jeu original?); o Catcher in the Rye, de Salinger, passou a intitular-se À Espera no Centeio, abandonando-se Uma Agulha no Palheiro, feliz título concebido na anterior tradução, de João Palma-Ferreira.

Anda agora por aí uma recente versão de Três Homens num Bote, divertido romance de Jerome K. Jerome com este nome consagrado há décadas em português. O novo tradutor e o novo editor optaram por outro título: Três Homens num Barco. O que de algum modo confirma a intensa compressão vocabular que a língua portuguesa vai sofrendo, com a definitiva eliminação de milhares de palavras subitamente tornadas imprestáveis nesta era das mensagens instantâneas, quando até já há quem escreva “romances” por telemóvel. Se bote e barco são sinónimos, mas o segundo termo se reveste de um teor mais impreciso e sem o relance humorístico que num bote para três já se insinua, porquê rejeitar a designação já consagrada? Não custa adivinhar: a outra é de apreensão mais fácil.

Assim vamos comunicando de forma cada vez mais esquemática, prestando culto ao literalismo despido de ironia e despovoado de metáforas, com um naipe de palavras cada vez mais reduzido, o que produz reflexos óbvios no pensamento e na própria cidadania. Vocábulos rudimentares conduzem fatalmente a raciocínios esquemáticos, cada vez mais distantes da complexidade e da sofisticação que só um domínio alargado das variações semânticas induz. Daí à visão do mundo e da vida a branco e negro, numa dicotomia simplista que favorece os demagogos de todos os matizes, vai um curto passo.

«A redução de vocabulário nos últimos anos tem sido dramática. Não apenas do vocabulário curto que, não há muito tempo, faria parte do dia-a-dia numa família medianamente instruída. Mas daquele que transportava uma tradição ancestral», alerta-nos Mário de Carvalho no seu excelente manual de escrita intitulado Quem Disser o Contrário é Porque Tem Razão, justamente galardoado em 2015 com o Prémio P.E.N. Clube para melhor ensaio. E o escritor concretiza, indo ao cerne da questão: «Se hoje muitos jovens não conseguem perceber um provérbio, isso acontece não somente porque o mundo rural desapareceu, mas porque se tem destruído a memória e ocultado a espessura da História. Uma das razões para ler é também a vontade de libertação, a expressão de um inconformismo que não aceita ficar encarcerado dentro dos limites do vocabulário básico.»

Já estivemos mais longe dos grunhidos monossilábicos como forma dominante de expressão oral. Não falta também por aí quem gostasse de os ver como matriz dominante da nossa escrita.

diccion