Sim, sou marxista

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Gosto eu bem mais de Karl Marx do que todos os marxistas juntos. Anafado, cabelos desalinhados, que o faziam parecer um urso, vejam-no com as filhas, num picnic no Hyde Park: teriam comido ovos verdes e bolinhos de bacalhau se a condessa Jenny, sua mulher, ou Helene, a governanta, soubessem fazer ovos verdes ou bolinhos de bacalhau. Comeram, riem-se, correm pela relva até que Marx desafia as filhas a atacarem um castanheiro e limparem-no das maduras castanhas que o enfeitam. Atiram-lhe pedras e Marx um pau apanhado no chão. Roda-o com o braço direito e lança-o com uma força e um grito de Tarzan. Ri-se de possesso, as filhas com ele. Pagará o desabrido excesso: durante uma semana, de braço ao peito e pachos de água quente, não conseguirá escrever uma linha de “O Capital” ou de uma qualquer “Crítica à Economia Política”. Abençoado castanheiro.

Ouçam-no trovejar nas reuniões políticas em que se reúne com ajudantes de alfaiates, tipógrafos, encadernadores e tanoeiros numa miserável sala de Greek Street, no Soho, em Londres. Troveja Marx e a mim parece-me ouvir a combinação tonitruante dos meus amigos Pedro Bidarra e Henrique Monteiro, nas jantaradas do blog colectivo Escrever É Triste, uma espécie de Internacional literário-gastronómica com que tentamos imitar a Primeira Internacional, a que Marx deu gritos, gás e prosa.

E já volto às filhas. Marx, que devia na mercearia, perseguido por credores, incapaz de pagar a renda de casa, prendava as meninas, as suas Jenny, nome da mulher que deu a todas as filhas, com aulas de piano e de canto, desenho e línguas. Tê-las ido levado a debutar ao Baile da Ópera de Viena se lá vivesse e não na capitalista Londres que, magnânima, o recolheu, dando-lhe a liberdade que Berlim, Paris e Bruxelas lhe recusaram. Não conheço ninguém com tão apurado sentido de classe como Marx, nem em Cascais, e muito menos o meu amigo Pedro Norton, que é bem lá de casa, mas desenhou no peito, garrafais, as letras SLB, o que o autoriza, se for de tronco nu, a entrar na Festa do Avante, a única festa de debutantes que terá lugar em 2020.

Querem contradições? A casa das contradições é o peito de Marx: apreciem-lhe o gosto pelas boas garrafas de vinho do Porto que lhe mandava o seu amigo Engels; escutem esse estoirar a massa assim que um dedo dele aflora uma libra, que Engels lhe expedisse; espreitem o entalanço em que meteu Engels, obrigando-o a reconhecer a paternidade do filho que ele, Marx, fizera à governanta. Ora Engels, filho de um industrial, vivia com Mary Burns, operária, de incansável ardência irlandesa e ruiva – esta parte, sou eu a sonhar – e vivia em afrontosa maridança, o que fazia Marx e a sua condessa Jenny  revirarem os olhinhos. Pior, juntaram a irmã de Mary à festa, cobrindo aquela bela luta de classes com o véu francês que dá pelo nome de ménage à trois. Quando Mary morreu, de repente, aos 40 anos, Marx despachou o assunto com uma nota breve e descuidada, deixando o preconceito prevalecer sobre a gratidão que devia a Engels. Arrependeu-se e pediu-lhe perdão, depois.

E eis a fraqueza em que mais me identifico com Marx, quase meu kamba, se nos tivéssemos conhecido em Luanda: ele e eu queríamos enriquecer com dinheiro rápido e fácil. Em duas cartas, Marx jura ter jogado na Bolsa, em “fundos americanos e, em especial, em acções inglesas que estão a crescer como cogumelos este ano” tendo arrecadado 400 libras. A estes actos de guerra chama Marx “subtrair dinheiro ao inimigo”. É a minha luta marxista diária.

Crónica publicada no Jornal de Negócios

Um grande pontapé na biografia

Philip-Larkin
Philip Larkin

Tanto quero que se lixe o estruturalmente falecido Roland Barthes, como quero bem que nasçam cravos no nariz aos vigilantes politicamente correctos que não saem de cima, digamos assim dos artistas selvagens a ver se ninguém os f-f-frui.

Andava eu, todo jovem, a passar creme de Paris, linha Vincennes VII, na minha linda forma de me cevar nas artes, quando essa pecaminosa devassidão foi baratinada pela ideia barthesiana de não haver autor. Seria, simplifico eu, a linguagem que redigia o texto e lhe dava sentido, borrifando-se para as intenções do escrevente. E logo, tinto a alastrar em toalha branca, do escritor a coisa se espalhou ao pintor, ao cineasta.

Ora, isto é o mesmo que dar um pontapé no cu ao contexto biográfico. Zanguei-me: acho o pontapé no cu humilhante e eu já era de ameno tu cá, tu lá com o fraterno contexto biográfico.

Bêbado, William Burroughs deu um tiro nos miolos da mulher, a fazer com ela o jogo de maçã e seta de William Tell – é um acto cuja sombra sórdida acompanha cada linha da leitura de “Naked Lunch”. Jean Genet era ladrão. Alfred Hitchcock encostou à lúbrica parede chantagista o louro corpinho de Tippi Heddren. A T.S. Eliot e Virginia Woolf roía-os a acidez do anti-semitismo, e Patricia Highsmith disse, infame, que o Holocausto só era um Semicausto por ter liquidado apenas parte dos judeus.

Esta crápula danação biográfica, ao contrário do insidioso conselho da angélica brigada dos novos censores, não me afasta e até me aproxima das obras de irrecomendáveis criadores. Como o esplêndido Sol a bater no mar oscilante, nas obras cintilam reflexos de perturbação convulsa, às vezes assassina, como a de Caravaggio, ou a da menor romancista policial Anne Perry, que com uma amiga matou a própria mãe.

Nem todos os admiráveis poetas podem, como Tolentino Mendonça, ser convidados para o Vaticano. Se nos atrevemos a frequentar a inquietante caverna do humano, temos também de afrontar a negríssima luz de algumas sublimes, mas terríveis obras de arte. Luz que tanto sai de mãos eucarísticas, como de mentes misóginas, racistas, pedófilas, seja de um Polanski ou da nazi Leni, de Villon, Balthus, Larkin, Woody Allen. A biografia é um purgatório moral. Destemida mistura de céu e inferno, a obra de arte bate com estrondo a porta na cara a toda a moral