
A chulipa é o estádio supremo da arte futebolística. Foi no Estádio da Luz. De um lado o renovado esplendor da nação benfiquista, do outro a vecchia signora, a Juve, esse insidioso casamento de raposa e lobo.
É do calcanhar que quero falar. Conheci o calcanhar em Luanda. O calcanhar, perdição embora de Aquiles, é o pedaço milionário do nosso corpo. Ainda bem que me lembrei de Homero: na epopeia que é cada jogo de futebol, há coragem viril, entradas a dois pés, pé em riste, o furioso pontapé de 30 metros, bola parada no peito, fulgurante e matador golpe de cabeça, a paradinha, o canto directo: é isto o futebol, guerra de Tróia que desce ao relvado, quase o seu clássico, mas arrebatador arroz com feijão. Mesmo a trivela, essa unção do exterior do peito do pé que gera ao esférico o improvável e inescrutável arco que deixaria Euclides perplexo, ainda é, na sua sofisticação, ironia e suspensão do tempo, parte da gramática do futebol. Só o calcanhar é sumptuário.
O calcanhar é a linha vermelha em que o futebolista excede a mestria e se entrega ao prazer mais lúdico, sem desculpas. O golo pode ser o orgasmo, mas a chulipa é o momento em que se retarda o orgasmo e se isola a vida em puro prazer: o tempo explode e dois segundos sabem a eternidade. No jogo com a Juve, o Benfica, divino mistério e deleite feito clube, pintou na relva essa linha transcendente: os calcanhares benfiquistas, culminando no calcanhar do velocíssimo Ulisses a que agora se dá o nome de Rafa, roçaram o sublime. Disse roçar e podia dizer, se quisesse ser provocador, “friccionaram suavemente”!
Conheci o calcanhar em Luanda. Explico: foi nos jogos de juniores no campo de São Paulo: os miúdos africanos tergiversavam. De repente, esqueciam o resultado, as marcações e a táctica: o prazer do calcanhar, chulipa a fazer passar a bola sobre a cabeça do adversário, era mais saboroso e picante do que o consolador muzungué depois da noite de farra bem bebida.
Outro exemplo: Marilyn Monroe. Em Quanto Mais Quente Melhor, obra-prima de Billy Wilder, Marilyn faz do seu corpo o que quer, mostra e tapa, insinua e provoca; metido num apertado vestido preto e em cima de uns saltos altos, o posterior dela faz resfolegar um comboio no mais hiperbólico jacto de vapor que o cinema já viu. Quem está na sala de cinema – aconteceu-me, aconteceu-me! – levanta-se e grita: “Pára, pára, mais não, mais não!” São gritos desvairados e deslumbrados. E chega o momento em que Marilyn beija Tony Curtis. Eis o que quero dizer: Marilyn beija de chulipa. Tony Curtis é, no filme, um milionário, e os beijos de Marylin são sumptuários, de calcanhar. Ela beija já e só o prazer de beijar e Tony Curtis confessa que sente os dedos dos pés como se estivessem num barbecue a fogo lento.
O Estádio da Luz ardeu a fogo vivo. Há um centésimo de segundo em que Grimaldo e Aursness, numa saída, num aperto irrespirável dos adversários junto à lateral, inventam a calcanhar o eclipse do esférico. Mesmo na área da Juve, o mais armadilhado e letal pedaço do campo, nasceu a chulipa siamesa, passe de calcanhar, recepção de calcanhar, como se a bola fosse uma delicada peça de porcelana de Limoges. E volto ao golo: o passe é de João Mário, a perna direita de Rafa dá um passo contranatura, adiantando-se ao corpo, enquanto a perna esquerda se deixa ficar no ar, esquecida, diletante, para que o calcanhar esquerdo, feito Marilyn, beije o redondinho e voluptuoso esférico. Nada disto era preciso: foi só puríssimo desejo, pingo de luxúria num calcanhar de veludo.