
“Deslarga-me da mão!” Acabarão assim as hercúleas amizades masculinas? Protesto: os cineastas franceses Truffaut e Godard escreviam tão bem que nunca se separariam com um rasteiro e populista “deslarga-me”.
Encontraram-se num cineclube e saíram irmanados em hossanas: queriam e fizeram um cinema novo. Ficaram gémeos inseparáveis: pareciam unha com carne, mas um era a unha, o outro, a carne.
Imaginem que era a revolução. E foi, uma revolução fofa, bem vestida, de filhos-família: era o Maio de 68. Godard e Truffaut pararam até o Festival de Cannes. Era uma revolução de classe média alta. Classes A/B, vá lá C, que as classes D e E iam era a correr à mercearia. Mas sim, nas escadarias de Cannes, os dois irmãos inseparáveis acabaram ali com o Festival de cinema, nesse Maio de 68. Godard tomou-lhe o gosto. Quis acabar com o Festival de Teatro de Avignon. Havia jovens sonhadores, calças de seda, camisas de linho, aos gritos. Na rua, a gramar aquilo tudo, os opacos polícias de choque. Truffaut disse a Godard o que a bela e sofrida Anne Wiazemsky testemunhou: “Eu nunca estarei ao lado dos filhos da burguesia!”. E apontou: os filhos do povo estavam fardados, na rua.
Estremeceu a fraternidade. E foram duas soberbas cartas que, por fim, a escavacaram. Curta, panfletária, a de Godard, chama mentiroso a Truffaut e à sua “Noite Americana”, em estreia: “Tu dizes: os filmes são grandes comboios na noite, mas quem apanha o comboio, em que classe, e quem o conduz com o ‘bufo’ da produção ao seu lado?” E, a seguir, centra-se em si mesmo, enumera as suas angústias, ataca outros cineastas e acaba a pedir 10 milhões de francos a Truffaut para a produção do seu filme, cinco, vá lá!
A resposta de Truffaut, em 20 páginas, é um documento cruel, implacável na exposição do carácter de Godard. “Comportamento de merda”, chama-lhe Truffaut: nas relações amorosas, pela forma patética como quis seduzir uma actriz apaixonada por Truffaut, dizendo-lhe que François não a amava e se deitava com outra; nas relações de gratidão, pelo abandono a que votou, no hospital, Janine Bazin, musa da nouvelle vague, despedida da televisão por uma frase de Godard; “comportamento de merda” por ter chamado “porco judeu” a Pierre Braunberger, que lhe produzira o doloroso “Vivre sa Vie”, com Anna Karina.
Mas a longa carta é também um manifesto sobre a prática artística. Truffaut despe a mentira de “Tout Va Bien”, o filme de Godard com Jane Fonda, pretensa e última verdade sobre o cinema e o sexo. Denuncia o jogo duplo de Godard que se queixa do cinema de vedetas, mas é ele a procurá-las, para depois, caso de “Weekend”, filmar nua uma dessas actrizes, como se dissesse, “esta puta quis filmar comigo e vejam bem como a trato: é que há as putas e há as jovens poéticas.” Truffaut despreza também a cena de “Vent d’Est”, que ensina a fazer um cocktail molotov, lembrando que Godard fugiu a vir para a rua distribuir com ele o jornal “La cause du Peuple”, dirigido por Sartre, que a polícia então confiscava.
Truffaut dispara sobre a imagem subversiva de Godard que se põe num pedestal e é um falso depositário da verdade sobre a revolução, a política ou o amor. Acusa-o de filmar para a “esquerda elegante” de Susan Sontag, um narcisista revolucionário tipo Ursula Andress, que aparece e desaparece em flashes, mas instala à sua volta uma tenebrosa servilidade. E Truffaut remata: atitude de merda em cima de um pedestal.
Pode o pântano produzir a flor? Pode. Tal qual do comportamento de merda emerge a genialidade e a fulgurância!