A boca de Boris Vian

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Boris Vian arranca um sorriso genuíno a Miles Davis

Vejamos, é a boca de Boris Vian. Durante 15 dias não se lhe ouvirá um som, sequer um sussurrado ai. Morreu-lhe o pai. E agora, que já vos dei a notícia, acrescento: não morreu, mataram-no. Eis o que cala Boris Vian: o pai foi morto a tiro, por intrusos, em sua casa, a vivenda provincial da família.

Paul Vian era e não era o pai de Boris Vian. Herdeiro de uma pequena fortuna, dava festas de cem pessoas, prodigalizava aventuras. Merecia hedonicamente o dinheiro que tinha, semeando felicidade. O lendário colapso da bolsa de 1929 deixou-o descalço.

Descalço ou nu, não se encolheu: alugou a grande vivenda aos Menhuin, cujo filhinho seria o prodigioso violoncelista Yehudi Menhuin, e mudou-se para os anexos do caseiro. Poucos anos mais e voltaram as festas. Meteu tantos livros, teatro, música e boémia na cabeça de Boris, que já era o melhor amigo, o pai que, tivessem-no tido Salazar, Malcolm X ou Mao Tsé-tung, muitas chatices se teriam evitado. Eis o pai que dá lições de boémia, o pai a quem se encosta a cabeça adolescente.

Mas vejamos de novo a boca de Boris. Está colada a um trompete. Foi o pai arruinado que lho comprou numa Feira da Ladra. Por influência de Menhuin, quem sabe, Boris que estudou matemática, latim e grego, quer ser músico. Que outra coisa pode ser um miúdo com o reumatismo cardíaco que o médico lhe descobriu?

Agora olhem outra vez para a boca de Boris Vian, para o sorriso bonito, de tão gentil ironia, com que fala ao dono das Edições do Escorpião. O homem está, como eu, aflito com as contas da editora. A pandemia desse tempo fora a tropa nazi que deixara devastada a França, entretanto libertada. Vian casara com Michelle e vivia já em Paris. Tocava em hot clubes e conhecera Duke Ellington. Tivera um filho para quem escreveu uns “Contos de Fadas para Uso de Pessoas Medianas” e tinha na gaveta dois romances. “Queres um bestseller? Eu dou-te um bestseller!” disse ele ao editor escorpião.

E deu. Em dez dias, escreveu um policial, que assinou com o pseudónimo de Vernon Sullivan, para fazer justiça à trama e às personagens da cidade de Buckton, no sul dos Estados Unidos da América. O protagonista era um mestiço que, nesses anos 50, de segregação, se fazia passar por branco e se vingava, desenfreado, da morte do irmão, assassinado por ter dormido com esse tabu supremo, a mulher branca. “Cuspirei nos vossos túmulos” era o livro de cujas páginas transpirava violência com amarescente odor a sexo.

E vejam, já a boca de Boris Vian está em tribunal, acusado de ultraje aos bons costumes, por incitar adolescentes a actos de deboche e sadismo, até por o romance ter sido encontrado, aberto em página de incendiária violência, em cenário de crime, o de uma rapariga morta pelo amante num hotel de Montparnasse.

Autor do livro bandeira que é “A Espuma dos Dias”, em vida a boca de Boris não voltará a saborear mais nenhum êxito literário. A fina tristeza da morte do pai corre nele como rio subterrâneo. Afinal os assaltantes traziam a braçadeira da Resistência, parlamentaram com o pai, as mulheres da casa meteram-se pelo meio, e eles mataram-no com uma rajada. De que o acusariam?

E vejam o rictus feroz na boca de Boris Vian. Tem 39 anos e assiste ao visionamento do filme tirado de “Cuspirei sobre os vossos túmulos”. Levanta-se em cólera contra o que vê e uma síncope dá cabo do seu coração. Vai a enterrar no cemitério onde está o pai. Os coveiros estão em greve e têm de ser os amigos a baixar o caixão e a cobrir de terra o sorriso, boca e corpo de Boris Vian.

Crónica Publicada no Jornal de Negócios 

Harlem 1958

Harlem 1958

Eram 10 horas de uma manhã do Verão de 1958. Tipos que nunca tinham visto a luz do sol e que há quatro décadas enchiam de música, fumo, lendas, as noites e as wee hours de Harlem, começaram a aparecer de todo o lado.

A ideia nasceu na revista Esquire, cujo editor era Robert Benton, futuro realizador de cinema, que se lembrou de celebrar o que ele achava ser a golden age of jazz com uma fotografia de grupo. A encomenda caiu em cima do mais improvável executor, Art Kane, que nem fotógrafo profissional era, mas a quem Benton reconhecia talento e paixão pelo jazz.

Kane era pouco mais do que um miúdo e nunca tinha feito uma fotografia profissional. Miserável, não tinha nada, nem agência, e muito menos um estúdio. Caçou com gato: decidiu fazer uma foto de rua, no certíssimo cenário, uma rua de Harlem, casa e escadaria típicas do bairro. Conta a lenda, deve ser verdade, que andou a passar palavra entre os músicos para que aparecessem a uma hora que muitos nem sabiam que existia.

Vieram 58 músicos, com todos os estilos: bebop, swing, hard-bop, big band, dixieland. Alguns deles são dos criadores mais geniais do século XX: Dizzy Gillespie, Lester Young, Thelonius Monk, Sonny Rollins, Horace Silver, Art Farmer, Art Blakey, Charlie Mingus, Gerry Mulligan, Count Basie. Arrumaram-se como agora os vemos, Count Basie sentadinho ao lado da fila de miúdos do bairro que vieram assistir à festa, Gillespie o último à direita. Mas podem saber quem é quem nesta visita guiada.

E às 10 horas da manhã, Kane, mais nervoso do que noiva virgem em noite de deixar de sê-lo, disse olha o passarinho e clicou para a posteridade. Não deu conta que Willie “the lion” Smith, pianista virtuoso, mas cansado, se tinha sentado nos degraus da porta seguinte e ficado fora do enquadramento. Com 58 soberbos músicos, menos um, Art Kane acabava de fabricar “Harlem, 1958” um dos prodígios (tão simples) da iconografia do jazz.

Sopra-se no fumo da noite

billie

Devem ser as tan­tas da manhã. Esta mulher de cabelo apa­nhado, rosto limpo, sopra pala­vras com uma vibra­ção suave, dolente, alguns ris­cos de rou­qui­dão. E há homens escon­di­dos na noite: sopram à volta dela, perto e longe dela.

Balou­çam, ligei­ros, os brin­cos nos lóbu­los da mulher que sopra. Na boca dela desenha-se, fine and mel­low, a doçura noc­turna, per­dida, de um sor­riso. A mara­vi­lhosa iro­nia do seu olhar.

São estas as palavras que a boca de Billie Holliday sopra. Escreveu-as ela também.

My man don’t love me
Treats me oh so mean
My man he don’t love me
Treats me awfully
He’s the lowest man
That I’ve ever see
He wears high trimmed pants
Stripes are really yellow
He wears high trimmed pants
Stripes are really yellow
But when he starts in to love me
He’s so fine and mellow
Love will make you drink and gamble
Make you stay out all night long
Love will make you drink and gamble
Make you stay out all night long
Love will make you do things
That you know is wrong
But if you treat me right baby
I’ll stay home everyday
If you treat me right baby
I’ll stay home everyday
But you’re so mean to me baby
I know you’re gonna drive me away
Love is just like the faucet
It turns off and on
Love is like the faucet
It turns off and on
Sometimes when you think it’s on baby
It has turned off and gone

 

Dois vídeos íntimos

Deixem-me pôr as coisas de uma forma simples. As pessoas que vão ver neste vídeo estão na mais exacerbada e plena intimidade. Estão nus e em desembestada fruição. Têm coisas na boca: o americano Wynton Marsalis, a trompete, o francês Emile Parisien, um clarinete, o outro francês, mais idoso, Michel Portal, um velho sax. Que pena tenho de só ter conseguido roubar-lhes estes três minutos que aqui estão.
Se alguém descobrir os 10 ou 15 minutos que esta transgressora incursão durou, venha ela que se dão alvíssaras.

Isto é lindo, não é? É gozo, é prazer. Wynton é maravilhoso, os dois franceses são do melhor que há. Digo isto, e já me desminto, há outro francês tão bom ou melhor do que eles: tem o que tem nas mãos e dedilha. É, vejam lá, um acordeonista. Dá pelo nome de Vincent Peirani. Que músicos. E que alegria e invenção pode haver na música.

Ps – confirmando a minha total incultura musical, um leitor amigo, o Pedro Miguel Biu, corrigiu um erro meu na descrição dos instrumentos. Leiam, por favor:
Boa noite, só para esclarecer. No vídeo em que está o Wynton Marsalis, o francês Emile Parisien toca sax, neste caso um sax soprano que não tem curva como os demais; o outro francês, mais idoso, Michel Portal, toca clarinete, neste caso clarinete baixo, que é maior que os demais clarinetes, dado ser também o mais grave (enfim ainda há um clarinete contrabaixo, mas já praticamente sem uso).

Obrigado, Pedro Biu, pela simpática lição. Apareça sempre.

Os valentes álamos do Sul

Quantas vezes já voltei a esta canção? Volto sempre, porque embora seja uma volta grande, uma volta que vai de Lisboa à América, é uma volta que acaba sempre em África. Talvez porque tudo na minha cabeça acaba e começa sempre em África.

linchamento

Era novo e comu­nista. Abel Mee­ro­pol era um jovem judeu do Bronx. Dava aulas no liceu ali ao lado. Foi ele, nes­ses anos pós-crash, que escre­veu o poema.

Tinha visto a foto das árvo­res nos jor­nais. Não viu, mas adi­vi­nhou, o balanço que o doce vento devia dar a tão estra­nha fruta pen­dendo dos ramos dos valen­tes álamos do Sul. Mais tarde, tudo a convidá-lo ao sofri­mento, compôs a música.

O Café Soci­ety era uma cave, no nº1, She­ri­dan Square, em Grenwhich Vil­lage. Bil­lie Holi­day era a atrac­ção e can­tava para uma pla­teia branca e negra – uma rari­dade no final dos anos 30.

Foi o dono, Bar­ney John­son, que apre­sen­tou o imper­ti­nente comu­nista à can­tora negra. Abel can­ta­ro­lou para Bil­lie que, dizem, pare­ceu pouco impres­si­o­nada. O des­men­tido veio dois dias depois. A voz de Bil­lie estendeu-se a todo o com­pri­mento das pala­vras. Tão dei­tada como sofrida. Uma voz a roçar a resignação.

Na pri­meira noite em que Bil­lie can­tou “Strange Fruit” não houve encore no Café Soci­ety: a feli­ci­dade amarga da razão fechou os olhos, cer­rou as mãos. Não se aplaude uma can­ção des­tas, disse um dia Bob Dylan a Marty Scorsese.

Nin­guém quis gra­var “Strange Fruit” até que um dia Bil­lie foi ter com o tio de Billy Cris­tal (sim, esse mesmo) e a can­tou a cap­pella. O disco converteu-se no seu maior sucesso.

O lin­cha­mento dos negros era uma festa de famí­lia no Sul. Vinham homens, mulhe­res e cri­an­ças bran­cas ver os cor­pos dan­çar nos ramos das árvo­res. A voz de Bil­lie Holi­day encosta-se a uma lenta amar­gura para evo­car a his­tó­ria. A sem­pre ter­rí­vel história.

Southern trees bear strange fruit,
Blood on the lea­ves and blood at the root,
Black bodies swin­ging in the southern bre­eze,
Strange fruit han­ging from the poplar trees.

Pas­to­ral scene of the gal­lant south,
The bul­ging eyes and the twis­ted mouth,
Scent of mag­no­lias, sweet and fresh,
Then the sud­den smell of bur­ning flesh.

Here is the fruit for the crows to pluck,
For the rain to gather, for the wind to suck,
For the sun to rot, for the trees to drop,
Here is a strange and bit­ter crop.