
O cinema era o Avis. Um ano depois já se chamava Karl Marx. Juro que foi lá, à meia-noite, no Natal de 1974, que vi “Tomorrow”, adaptação de um conto de Faulkner. O artista, como ainda se dizia, era Robert Duvall, solitário agricultor que dá guarida a uma mulher tão grávida como abandonada.
Estava em Luanda, cidade em chamas, engajado no caminho das pedras da independência. Aos 21 anos sentia-me tão só quanto só se pode estar. A família fora um out of Africa que lhe dera. Nem pai, nem mãe, estava por minha conta. Sobravam, da herança colonial, uma dúzia de amigos cujas cabeças rolavam à velocidade da guilhotina na Revolução Francesa. Mortos pela guerra? Nem mortos, nem estropiados. Eram apenas nomes inconsoláveis que a ponte aérea para Lisboa abatia ao activo. Para nós, que ficávamos, passavam a indesculpáveis defuntos.
No meio desse fogo amigo e inimigo, nasceu, modesto mas abnegado, o Natal de 74, o meu primeiro e verdadeiro Natal angolano. Acolheu-me uma família africana, tripulada pelo cuidado e pelo amor de um inenarrável patriarca. Entre irmãos, irmãs e meio-irmãos seriam seis, mais primas e primos, pai e mãe, como só nas grandes sagas familiares. Eu, branca cara pálida, era só mais um filho. A geleira, como numa família lindamente mulata se chama a um frigorífico, era de todos: “Aqui não se pede, abre-se e tira-se.”
Vivíamos de esquemas, contrabandeando do Puto vinho, couves e bacalhau. Naquela Consoada tive a melhor das ceias. De vez em quando, as rajadas das AK escreviam pontos de interrogação nessa noite de uma estrela. O assobio de um morteiro não bastava para parar as conversas que se enchiam de promessas, juras e choros, ceia tão delicada e intensa. Os discursos, meu Deus, o gosto que tínhamos nos veementes discursos. Podiam apontar-nos uma pistola à cabeça e continuaríamos a discursar, engajados numa alegria feroz, vaidosa e dramática.
Não sei se no meio dos discursos, se na solidão em que encontrei Robert Duvall no cinema Avis, dei comigo a pensar: quem sabe se em vez do verdadeiro Cristo ser Marx – como diziam os nossos discursos e a ponta de cada espingarda – quem sabe se o verdadeiro Marx não será este Cristo anunciado por uma estrela tracejante no céu vermelho de África?
Pouco me interessava a resposta, tão inquieto fiquei com a pergunta.

Publicado no Expresso
O desejo com que fico de ir ver “Tomorrow”, eu que vivi na escuridão verdadeira de sem cinema durante para aí uns vinte cinco anos. E portanto ainda não me refiz do défice.
É até curioso como os tempos difíceis detêm essa beleza inenarrável de que as suas palavras nos aproximam. E por elas lhe sou grata.
Bem Haja.
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Escuridão de cinema é tão bonita expressão – mas com susto dentro. Eu não poderia. Ainda agora vou ao cinema uma vez por semana-
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Gosto do Duvall, ele ficou mais conhecido a partir do filme Apocalipse Now, mas eu já o conhecia da Perseguição Impiedosa do Arthur Penn. Creio que a primeira a parição dele é num pequeno papel no filme Na Sombra e No Silêncio baseado na obra da Harper Lee Não Matem A Cotovia. Creio que não vi Tomorrow, fica na lista de 2019.
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Certo, amigo Albertino. Mas este Tomorrow é filme velho, creio que de 1971
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É claro que podia. Ninguém deixa de viver por se abster do que não conhece. Nem o termo é abstinência.
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🙂 O que não se conhece, inventa-se. Tenho a certeza de que, se não tinha cinema, arranjou maneira de o inventar. Na minha aldeia, antes dos meus cinco anos, a minha avó e a minha mãe faziam com as mãos figuras que a luz da vela projectava como sombras na nua parede branca. Foi o meu primeiro cinema.
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:). A cinefilia não habitava o meu mundo nem o de meus pais e avós que não brincaram com as crianças. Mas admito que talvez a leitura e a liberdade de intensa brincadeira com outras crianças tenham substituído o cinema. A vida não é igual para todos, mas, na sua diversidade, vai puxando pelas mesmas coisas:). E olha, no fim, fazemo-nos homens.
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E é que nos fazemos mesmo.
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